O Estado em Marx

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Nesse breve ensaio, nosso objetivo é o de refletir acerca da concepção marxiana de Estado. Partimos da crítica comumente realizada de que em Marx a instância política seria determinada pela estrutura econômica e, portanto, ensejaria uma noção simplista e superficial de Estado. Na minha opinião, a premissa de que o processo político numa sociedade capitalista seria reflexo das contradições no âmbito das relações sociais de produção não significa, por si só, uma concepção simplista do sistema político. Primeiro, porque Marx nunca estabelece que essa relação seria de causalidade, mas sim uma dialética — portanto, histórica, ontologicamente entrelaçada e co-constituída (LeFebvre 2009) —, segundo, pois a instância política acompanharia a diferenciação e a complexidade da infraestrutura, num contexto de mútua determinação. É esse último argumento que desenvolvemos a seguir.

Uma das primeiras e mais conhecidas formulações acerca do Estado na obra de Marx que fora efetivamente publicada em vida, de forma organizada pelo próprio autor, se encontra no texto elaborado junto a Engels publicado em 1948, o Manifesto Comunista (Marx ; Engels 2007). Naquele panfleto, elaborado como um tipo de posicionamento dos autores para a então chamada Liga dos Justos (Zizek 2019), Marx e Engels defendem que

[…] a burguesia, com o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.

Karl Marx & Friedrich Engels (2007: 42)

Esta é uma afirmação que reverberou na história e na ciência, pois que alimentou tanto os ideários revolucionários como a sanha dos detratores. Isso enquanto contribuía para iniciar uma das mais fecundas tradições de análise sociopolítica das ciências humanas, não podemos deixar de lembrar (Lamb 2015).

Diante da evidente simplificação dessa caracterização, há que se destacar que: (i) o Estado capitalista do século XIX não apresentava o complexo desenvolvimento que vemos na contemporaneidade, em diferentes formas jurídicas, pulverizada estrutura burocrática e amplitude de ação (Mascaro 2013); ademais, (ii) a forma moderna do Estado estava em franco desenvolvimento, só inteiramente instalada na verdade em um número limitado de nações europeias e talvez nos EUA e, ainda assim, de certa forma coexistindo com instituições, costumes e interesses herdados do antigo regime (Hobsbawm 2015); (iii) o texto do Manifesto em si fora elaborado como um panfleto, com função política, de agitação, mais do que como tratado científico (Martin 2015).

O termo “burguesia” representa ali uma abstração que já então reunia numa simples categoria os interesses decorrentes uma ampla variedade de formas de valorizar e acumular riqueza, distribuídas em diversas posições e instâncias do circuito do capital. Não se pode presumir, nem mesmo no contexto do Manifesto…, a ideia de um Estado que não representasse essa diversidade. Tanto o é que mais adiante, no mesmo texto, essa burguesia é caracterizada por “revolucionar incessantemente os instrumentos de produção”, dissolver “todas as relações sociais antigas”, profanar “tudo que é sagrado”, induzir o surgimento de “novas demandas […] novas necessidades”, imprimir “um caráter cosmopolita à produção” e invadir “todo o globo terrestre” (Marx & Engels 2007: p. 43). Ou seja, por conta da natureza particular de sua atividade, a própria burguesia se diferencia na medida em que seus negócios se espalham por diferentes e cada vez mais amplos contextos, mercados e níveis de alcance.

O Estado como “comitê de negócios comuns de toda a classe burguesa” (Marx & Engels 2007: 42) não constitui, por isso apenas, uma instituição homogênea ou determinista. Tanto o é que o próprio Marx, anos antes do Manifesto…, em sua Crítica a Filosofia do Direito de Hegel (Marx 2010), desnuda que a especificidade do Estado em Hegel como manifestação do espírito absoluto, que criaria por sua ação o sujeito, nada mais poderia ser do que uma inversão do fato de que os sujeitos — a sociedade civil — fazem surgir o Estado, não como projeto deliberado de ação, mas como expressão de relações que se pretendem universais.

Daí decorre que, se o Estado é expressão jurídico-política das relações sociais concretas, das contradições entre classes e interesses diversos, constitui-se como um processo histórico por natureza. Não poderia ser, portanto, algo monolítico enquanto tal, dadas as diferentes dinâmicas históricas que resultaram em Estados também distintos. E não o é de fato, na medida em que Marx ali nega a concepção hegeliana de que há uma identidade entre o Estado como espírito absoluto e a sociedade política. Se a sociedade política expressa a dinâmica das relações sociais, ela não é a expressão de todos os interesses sociais, mas tão somente dos interesses que tem possibilidade, oportunidade e interesse de se expressar no Estado, pois que assumem posições dominantes nas sociedades.

Tampouco esse Estado dominado pelo capital pode ser visto como uma instituição cartoonescamente antagônica aos demais interesses que compõem a estrutura social. Na medida em que a acumulação capitalista é resultante do circuito de inversão de capital, produção, realização e distribuição de mais-valor, o Estado necessariamente tem de assumir funções ecléticas. Primeiro, (i) assegura juridicamente a propriedade privada do capital e a livre iniciativa econômica (Marx 2013), também (ii) mantém um aparato de ajustes, pesos e contrapesos em situações de crise no circuito do capital (Marx 2013. Harvey 2011), ao mesmo tempo em que (iii) assume função ideológica de sustentação das representações capitalistas de mundo (Althusser 1970) e (iv) contribui diretamente para a valorização e acumulação de capital, seja no âmbito da institucionalização e suporte da acumulação por desapossamento (Harvey 2004), seja exercendo função objetiva na acumulação ao atuar como comprador de bens e serviços, tomador de dívidas e investidor em infraestrutura (Hirsch 2010).

Assimo, o Estado precisa não apenas assegurar os negócios do capital diretamente — com um aparato jurídico, garantias e proteções —, como indiretamente, formando trabalhadores, mantendo infraestrutura, garantindo o consumo e mesmo realizando investimentos. Nesse processo, dialoga com diversas frações capitalistas, bem como trabalhadoras, se diferenciando na medida em que se complexifica a própria atividade capitalista; ou seja, ao passo que integra os demais interesses a seu escopo de ação, desde que de maneira funcional à acumulação e valorização de capital num sentido geral.

Essa questão se mostra evidente n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Marx 2011), na medida em que nesse trabalho o autor torna evidente todo o rol de maquinações, enfrentamentos e conluios da classe burguesa com o intuito de expulsar, ao menos de forma relativa, o jacobinismo de qualquer participação significativa no Estado francês. Luís Bonaparte, a despeito da imagem pública da qual gozava, presta o caríssimo serviço de consolidar o que interessava da revolução burguesa excluindo a participação das frações trabalhadoras. Nesse sentido, tanto oferece uma saída para um cenário político de incerteza, como, no contexto das guerras franco-prussianas, articula para reprimir violentamente a Comuna de Paris (Hobsbawm 2015).

É interessante notar que, em Marx (2011), o Estado francês, marcado por um desenrolar instável do cenário político pós-revolucionário, é mesmo assim caracterizado pelas contradições decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas sociais naquele país. Em outras palavras, na França de meados do século XIX a turbulência política se mostrava o resultado da coexistência de interesses contraditórios no seio das classes dirigentes, entre pequeno-burgueses, o grande capital que se formava, resquícios da classe nobiliárquica, enquanto enfrentavam as demandas também contraditórias de trabalhadores citadinos e camponeses.

A sustentação de uma figura política aparentemente anacrônica como a de Luís Bonaparte era, para Marx (2011), reflexo da penetração heterogênea das formas capitalistas de produção, distribuição e acumulação de valor. Ao mesmo tempo em que as instâncias de representação política de então, naquele contexto, grosso modo pareciam se desgarrar da interesses sociais e assumir vida própria, formando a aparência de um Estado apartado da sociedade civil, como se fossem instâncias distintas de ação social (Marx 2011).

No Manifesto […] (Marx and Engels 2007), percebe-se que, mesmo que o Estado seja caracterizado como um espaço de defesa dos interesses burgueses, esses interesses são apresentados de tal forma complexos, que não se poderia conceber um Estado simplista. Da mesma forma, quando de sua crítica à concepção hegeliana do direito e do Estado, Marx (2010) deixa claro uma visão de Estado histórica, decorrente de fricções entre classes que não aparecem, nem mesmo ali, de forma unívoca. Se o Estado ali é histórico, os devires das diferentes sociedades capitalistas seriam necessariamente distintos.

Isso também fica mais evidente n’O 18 Brumário […] (Marx 2011), quando o autor elabora um quadro geral de consolidação do Estado burguês na França de então, eivado por interesses conflitantes, contradições internas às classes e interferência de interesses estrangeiros. Em Marx, o Estado é um processo histórico que funciona como expressão e manifestação das contradições de interesses e visões que emergem dos conflitos (conluios e negociatas) entre as classes sociais e suas frações; o Estado está em constante transformação, na medida em que aquelas relações sociais são também dinâmicas e históricas, seja por efeito de suas fricções e escaramuças, seja por conta do desenvolvimento das forças produtivas sociais.

A meu ver, portanto, a suposição de que a noção marxiana de Estado é determinista não passa de uma ilação ingênua, ou, talvez na maior parte dos casos, resultante de uma amálgama de desconhecimento e desfaçatez. Dada sua riqueza, atualidade e capacidade explicativa, urge a retomada de seu estudo, compreensão e, porque não (?), aprimoramento.

Referências

Althusser, L. (1970). Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado (Trad.: J. J. de M. Ramos). Lisboa: Editorial Presença.

Harvey, D. (2004). The ‘New’ Imperialism: Accumulation by Dispossession. Socialist Register, 40, 63-87.

Harvey, D. (2011). O Enigma do Capital: e as Crises do Capitalismo (Trad.: J. A. Peschanski). São Paulo: Boitempo.

Hirsch, J. (2010). Teoria Materialista do Estado (Trad.: L. C. Martorano). Rio de Janeiro: Revan.

Hobsbawm, E. J. (2015). A Era do Capital, 1848-1875 (Trad.: L. C. Neto). Rio de Janeiro: Paz & Terra.

Lamb, P. (2015). Marx and Engels’ Communist Manifesto. London, UK: Bloomsbury.

LeFebvre, H. (2009). Dialectical Materialism (Trad.: J. Sturrock). Minneapolis, US: University of Minneapolis Press.

Marx, K. (2010). Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (Trad.: R. Enderle & L. de Deus). São Paulo: Boitempo.

Marx, K. (2011). O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Trad.: N. Schneider). São Paulo: Boitempo.

Marx, K. (2013). O Capital: Crítica da Economia Política (Trad.: R. Enderle). São Paulo: Boitempo.

Marx, K. & Engels, F. (2007). Manifesto Comunista (Trad.: Á. Pina). Boitempo: São Paulo.

Martin, J. (2015). The Rethoric of the Manifesto. In Carver, T. & Farr, J. The Cambridge Companion to the Communist Manifesto. Cambridge, UK: Cambridge University Press.

Mascaro, A. L. (2013). Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo.

Zizek, S. (2019). The Relevance of the Communist Manifesto. Cambridge, UK: Polity.


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