[1] Texto com fins didáticos, elaborado em julho de 2023 como referencial complementar da disciplina Administração Pública do Bacharelado em Administração da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Não é possível contornar uma verdade: o Estado é uma das instituições dominantes de nosso tempo. Muito provavelmente A instituição dominante; embora seja possível argumentar que empresa e capital são competidores extraordinários nessa disputa. Talvez por isso o Estado receba tanta atenção, suscite reações as mais viscerais, assim como seja objeto de tamanho escrutínio por cientistas, grupos de pesquisa, think tanks e instituições de renome, presença e projeção internacional. As teorias sobre o Estado são muitas, provenientes das mais variadas matizes intelectuais, algumas seculares, milenares até.
Um mapeamento das diferentes formas de interpretar o Estado seria uma tarefa difícil, senão ingrata, talvez impraticável, tanto porque são muitas as teorias à disposição, como também porque são muitos os diferentes Estados em suas especificidades culturais, institucionais, trajetórias históricas e composição de interesses. Ainda assim, nesse breve texto o objetivo é tratar das teorias contemporâneas do Estado que, de alguma forma, transitam no meio político brasileiro. O intuito aqui é oferecer uma contextualização funcional dessa instituição tão formidável, que possa subsidiar reflexão e debate sobre o tema. Claro, não se pretende uma lista fechada, muito menos exaustiva, e sim um ensaio de possibilidades como espelho de uma nação enorme, complexa e contraditória.
Optou-se por abordar teorias contemporâneas para que se pudessem ser enfatizadas as características do Estado hoje, em sua expressão historicamente mais próxima do tempo presente. Ainda assim, dentre estas escolheu-se focalizar aquelas abordagens que, de alguma forma, são mais importantes segundo dois critérios: (i) capacidade de reunir um rol de pesquisadores e intelectuais de renome e; (ii) representar parcelas sociais concretas na composição da sociedade. Em ambos os critérios a realidade histórica tomada como espelho foi o Estado brasileiro.
Parte-se da premissa aqui que cinco aportes teóricos se apresentam como mais destacados, tanto na academia brasileira, como representantes de parcelas sociais concretas de nossa sociedade: pluralismo, liberalismo, institucionalismo, abordagem da dependência e perspectiva decolonial. Cada qual atrai um contingente formidável de pesquisadores, assim como pode ser claramente vinculado a grupos de pressão e interesses que compõe essa nação tão peculiar.
O pluralismo surgiu nos EUA na primeira metade do século XX, como uma forma de interpretar uma sociedade composta por diversos interesses, que pressionam o Estado em nome de suas agendas (assim chamados grupos de pressão). Para a perspectiva pluralista, o Estado funciona como uma arena de disputas, onde esses interesses negociariam suas diferenças para chegar a consensos ou compromissos programáticos. No Brasil, essa perspectiva é assumida em grande parte pelas classes médias urbanas das maiores cidades e capitais, parcelas sociais com maior escolaridade, normalmente assumindo inclinações progressistas e aspirações civilizatórias. Suas pautas se voltam para educação pública de qualidade, segurança, mobilidade urbana e empregos de maior complexidade/rentabilidade.
Por sua vez, o que se convencionou chamar de liberalismo é a forma assumida pela estratégia de ação política coordenada pelas elites econômicas, empresariais e atores do setor financeiro dos países centrais (Europa e EUA, mais especificamente). Sua versão hodierna, neoliberalismo, ganhou protagonismo a partir do último quartel do século XX, se firmando como a ideologia dominante no cenário internacional a partir de então. Partem da premissa de que o mercado não deve sofrer interferência do Estado; assim, é preciso reduzir ao mínimo os gastos governamentais, restringir políticas sociais e quaisquer benefícios para a população em geral. A principal função do Estado neoliberal seria garantir estabilidade de mercado e rentabilidade de investimentos privados. Para tanto, sugere-se uma gestão pautada no que chamam de tripé macroeconômico: política fiscal restritiva, metas de inflação (controlando a taxa básica de juros) e câmbio flutuante. No Brasil, o liberalismo é defendido por grandes empresários, capital internacional presente no país, setor financeiro e parcelas do agronegócio dependentes do comércio exterior.
Dentre as alternativas estudadas aqui, a perspectiva institucionalista é talvez a menos representante em termos de volume de interesses no bojo da sociedade, no entanto se mostra muito presente na academia e outros espaços intelectualizados. Desde economistas heterodoxos, passando pelo campo da administração pública, ciência política, sociologia e direito, a perspectiva institucional é normalmente assumida como a interpretação mais moderna e refinada de Estado e política. Por isso mesmo seus princípios e conceitos encontram enorme eco no funcionalismo público de alto nível, este o qual exerce uma influência não negligenciável no desenho e operacionalização de políticas públicas; isso, mesmo num Estado largamente orientado segundo a perspectiva neoliberal.
A ideia fundamental do institucionalismo é que o Estado seria um conjunto complexo de instituições, cuja dinâmica é histórica e evolucionária. Instituições são mecanismos sociais de indução de comportamento individual e coletivo, que funcionam como normas de conduta, valores e modelos cognitivos de explicação da realidade; as instituições surgiriam como respostas a problemas práticos da sociabilidade, alcançando legitimidade ao mitigar seus efeitos; se tornariam mais e mais complexas com o tempo, desde que capazes de dirimir problemas sociais concretos; quando essa capacidade se exaure, novas instituições mais refinadas podem surgir para as substituir. Nesse sentido, o próprio Estado seria uma instituição, com objetivo de mediar as fricções de interesse numa sociedade complexa.
Em meados do século XX alguns pesquisadores sul-americanos intuíram que, ao contrário do que afirmava a ciência social de então, a condição de subdesenvolvimento dos países da América Latina não era resultado de sua incompetência, ou de ter largado depois na corrida pela modernização. Pelo contrário, seria a existência de países desenvolvidos, ricos, que induziria o subdesenvolvimento de um conjunto de nações-satélite ao seu redor, num tipo de dominação centro-periferia. Os países do centro dependeriam dos países periféricos, onde explorariam recursos naturais, trabalho barato (que é superexplorado),[1] commodities e outras riquezas; ao mesmo tempo, as nações periféricas dependem dos países centrais para aquisição de bens tecnológicos, vender suas produções de commodities e garantir uma mínima estabilidade geopolítica; há, portanto, uma dialética da dependência entre centro e periferia. Essa é a premissa básica da teoria da dependência.
A sugestão dessa perspectiva é de que, para que a relação de dependência possa se sustentar no espaço-tempo, os países centrais precisam assumir posturas imperialistas. Em outras palavras, buscam controlar tecnologias com maior valor agregado, além de manter excepcional capacidade militar, cooptar políticos, empresários e formadores de opinião dos países periféricos para que defendam seus interesses e mesmo financiar pesquisas acadêmicas e instituições de ensino para que produzam justificativas pseudocientíficas para seus interesses. No Brasil, a interpretação dependentista do Estado circula sobretudo entre instâncias de organização coletiva da classe trabalhadora, como partidos políticos de cunho popular, sindicatos, assim como alguns movimentos sociais e organizações não-governamentais.
A perspectiva decolonial, por sua vez, analisa os efeitos a longo prazo da colonização, argumentando que as instâncias políticas dominantes nos países da América Latina derivam patologicamente do esquema metrópole-colônia de outrora. Na medida em que a formação das nações sul-americanas se deu sob o longo domínio colonial, suas leis, normas, valores e mesmo autoimagem se encontram até hoje marcadas por complexos de inferioridade, deslumbramento com o Norte rico, alienação das origens tradicionais e descompromisso nacional/local, entre outros processos. Por conta disso, os Estados na América Latina (o Brasil inclusive) se mostram apenas nominalmente soberanos; seus modos de organização, institucionalidades, normas de conduta, são todas alienígenas, criadas como cópia malfeita daquelas da metrópole com o simples intuito de reproduzir sua subalternidade. Trata-se de um Estado em situação de colonialidade.
A colonialidade é, portanto, a condição subalterna de uma nação que foi historicamente colonizada. A coloniadade no Brasil apareceria nos maneirismos comportamentais e normas sociais implícitas talhadas para excluir e marginalizar largas parcelas da população. Negros, povos originários, minorias não-alinhadas aos conjuntos de valores ocidentais (patriarcado, heteronormatividade, racismo e capitalismo), são conscientemente subrepresentados nas instâncias privadas e públicas de tomada de decisão. Esses espaços são quase exclusivamente ocupados pelas frações sociais alinhadas aos valores das antigas metrópoles. No Brasil, a perspectiva decolonial vem ganhando cada vez mais adesão junto a movimentos sociais ditos identitários, assim como povos originários, quilombolas e outras associações de excluídos e marginalizados. Há também um crescente interesse sobre a perspectiva decolonial na academia e universidades.
| Quadro 1 – Teorias Contemporâneas do Estado no Brasil, uma matriz comparativa | |||||
| Perspectiva teórica | Pluralista | (Neo)Liberal | Institucional | Dependentista | Decolonial |
| Concepção de Estado | Arena | Mínimo | Instituição histórica | Periférico | Em situação de colonialidade |
| Fração social no Brasil | Classes médias progressistas | Empresários e agronegócio | Acadêmicos, servidores públicos | Trabalhadores e sindicatos | Povos originários, movimentos sociais |
| Pesquisadores principais no Brasil | Eli Diniz; Renato Boschi | Economia Ortodoxa | Bresser-Pereira; Paulo Gala | Marini; Cardoso e Faletto | Ballestrin; Akotirene; Paulo Freire |
| Conceitos-chave | Grupos de Pressão; Consenso | Tripé macroeconômico; Mercado | Instituição; Legitimidade; isomorfismo | Centro-Periferia; Imperialismo | Colonialidade; Necropolítica |
O quadro 1 acima apresenta uma matriz comparativa entre as teorias contemporâneas do Estado no Brasil aqui tratadas. Se percebe que, muito embora essas perspectivas sejam diferentes, algumas irreconciliáveis entre si, sobrevivem conjunta e contraditoriamente no espaço político brasileiro. Ao representarem distintos grupos de interesses concretos e agendas orgânicas de ação social, fazem parte (não necessariamente de forma equivalente) no Estado, o qual as acomoda tanto subjetivamente (em foros deliberativos), como objetivamente (por meio de órgãos, agências, políticas públicas e normas específicas).
Assim, o Estado se constitui como um mosaico de interesses, interpretações e agendas em conflito. Mas, não um mosaico plenamente representativo, pois que enviesado pela distribuição desproporcional de poderes entre classes, grupos de pressão e interesses corporativistas. Também por conta desse dado, entender um processo social tão singular solicite mais que um esforço, talvez mais que um detour, mais que uma visão em paralaxe, mas sim um verdadeiro arsenal teórico-epistemológico que não carregue consigo preconceitos. Dito de outra forma, a compreensão do Estado exige abertura para esse — talvez mesmo para um ainda maior — rol de aportes teóricos tão diversos e contraditórios entre si. Afinal, o Estado não é um monolito, mas o reflexo institucional-legal-econômico de uma sociedade histórica em franca transformação.
Referências
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 11, p. 89-117, maio/ago. 2013.
BOBBIO, Norberto. Primeira parte: pluralismo. In: BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Tradução João Ferreira. 4. ed. Brasília: Editora UNB, 2006. pp. 13-33.
HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. Tradução Adail Sobral, Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
HODGSON, Geoffrey. A evolução das instituições: uma agenda para pesquisa teórica futura. Econômica, v. 3, n. 1, p. 97-125, jun. 2001.
KOLING, Paulo José. Teorias da dependência: abordagens sobre o desenvolvimento latino-americano. Diálogos, v. 11, n. 1 e 2, p. 137-165, 2007.
[1] A superexploração do trabalho é um conceito proposto por Ruy Mauro Marini, para quem o excesso de contingente trabalhador na periferia tornaria possível que empresários e capitalistas remunerassem empregados com salários menores que o mínimo necessário para reproduzir a classe trabalhadora.
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