Poder, Lei e Gestão[1]

Ciência Política, Direito Administrativo e Administração Pública


[1] Texto com fins didáticos, elaborado em junho de 2023 como referencial complementar da disciplina Administração Pública do Bacharelado em Administração da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).


A administração só foi reconhecida como campo autônomo de saber (diferente do direito, paralelo à ciencia política) muito tardiamente, em meados do século XX Isso, muito embora ocupe um lugar de destacada importância na cultura ocidental desde a revolução industrial inglesa nos séculos XVII e XVIII. Como desde então e até hoje vive-se em sociedades cujas principais instituições são econômicas — dedicadas à produção, realização ou distribuição de valor —, tais como bancos, empresas e mesmo grandes produtores rurais, a gestão exerce ali (aqui!) um papel estruturante. Isso porque é por intermédio de gestão que bens e serviços são produzidos, bem como as riquezas são distribuídas.

Da mesma forma, a administração pública só muito recentemente tem sido reconhecida como um campo de saber que mereça atenção dedicada. Mesmo diante do fato de que há mais de 200 anos os Estados Nacionais burgueses tenham se firmado como as instituições legítimas de exercício da política, desde a representação até a dominação. O porquê desse reconhecimento tardio é algo aberto para debate (alguns diriam que as comunidades humanas tem dificuldades em avaliar criticamente aquilo que é importante demais para sua constituição), mas o fato é que só nas últimas décadas o “campo de públicas” tem atraído atenção mais aprofundada.

Nesse processo de autonomização da administração pública como uma parte da ciência da administração, foi preciso estabelecer limites e debates com outros campos cujos interesses historicamente se constituíram como concorrentes. Em principal destaca-se o direito administrativo e a ciência política como saberes sistematizados acerca de preocupações próximas às da administração pública. No entanto, muito embora esses três campos de saber tangenciem um ao outro, na prática possuem atribuições particulares, distintas.

Neste pequeno escrito pretende-se debater, então, sobre essas sobreposições, limites e especificidades dos campos do direito administrativo, ciência política e administração pública, para destacar o rol de atribuições particulares deste último.

Partindo do debate com maior nível de abstração, pode-se então iniciar essa argumentação com a ciência política. Esse ramo de saber se dedica aos aspectos da interação coletiva humana que se referem à origem, manutenção e usufruto de poder, bem como às fontes e manifestação dos interesses dos atores sociais (indivíduos, grupos, organizações, países etc.). Poder[1] diz respeito aos limites de ação, decisão e acesso que um ator social possui na relação com seus pares, concidadãos e outros atores sociais; do que pode ou não pode fazer, obter ou controlar; seja em termos de bens materiais (objetivos), ou imateriais (subjetivos). Já os interesses[2] correspondem à agenda, a o que os atores sociais pretendem fazer, obter ou controlar, bem como por meio de que estratégias o fazem.

Pois bem, um sistema social complexo como um país chega à uma lista de objetivos e metas por meio da interação (nem sempre harmônica) entre os diversos poderes e interesses dos atores sociais que ali coabitam ou concorrem (sejam nacionais ou estrangeiros). É da prática diária da política que emergem as aspirações sociais amplas. Essas aspirações sociais muito raramente são claras, objetivas, consensuais e atemporais. Em verdade, como muitos interesses são irreconciliáveis e os poderes estão distribuídos de forma desigual, as aspirações coletivas normalmente se mostram contraditórias, flutuantes, contingenciais e difusas.

A ciência política, portanto, se ocupa dos processos, instituições, mecanismos, costumes por meio dos quais um sistema social complexo articula a interação entre poder e interesses, que aparecem como conflitos, negociações e compromissos. Em nossa sociedade contemporânea, o palco, o espaço por excelência, a arena onde essas interações se dão é o Estado. Não se trata de dizer aqui nem que não haja política em outras instâncias de interação social, pois sim, há na igreja, na empresa, na família e assim sucessivamente; nem tampouco que o Estado seja uma instituição apenas (meramente) política, pois que assume também papéis econômicos, ideológicos, culturais, progressistas, entre outros.

O direito administrativo, por sua vez, diz respeito ao ordenamento da instituição. Envolve as normas e leis que disciplinam as relações da administração pública, assim como os princípios jurídicos do funcionamento e a organização do Estado. Se trata de uma subárea do direito público interno, este o qual versa sobre as questões de direitos e deveres quando numa relação desigual, onde o público (coletivo) tem preponderância sobre o privado (indivíduo), normalmente concernentes ao, mediados pelo Estado. A chave para a especificidade do direito administrativo está, aqui, nesses termos: normas, leis e, sobretudo, princípios jurídicos.

Esse ramo jurídico tem por objeto o direito, como não poderia deixar de ser, o instituto social que estabelece o que os atores podem e não podem fazer em dada relação formal, assim como aquilo que lhes é de direito usufruir, mais o que lhes é esperado como dever. Dessa maneira, compõe o direito administrativo os fatos (costumes, normas, leis e ações) concernentes aos direitos, deveres e litígios entre os atores sociais envolvidos no âmbito do funcionamento dos processos de Estado, assim como nas entidades, autarquias, empresas públicas e fundações que o compõem. Em outras palavras, o direito administrativo regula e normatiza a ação do Estado na persecução das aspirações coletivas de uma nação.

Sendo assim, o que cabe à administração pública propriamente dita?

Quando se trata de administração pública, assume-se que estão dados (i) os objetivos coletivos a serem alcançados, assim como (ii) os limites, direitos e deveres dos atores sociais envolvidos diretamente com o funcionamento dos processos de Estado para perseguição desses objetivos. Competem à administração pública, portanto, as formas específicas de planejamento, implementação, controle e correção de políticas, programas e ações com o intuito de atingir aqueles objetivos respeitando os limites do direito administrativo. Esse subcampo da administração contribui, portanto, com o como fazer, com as técnicas, modelos e premissas de gestão e articulação de fatores de produção para proporcionar os efeitos esperados da ação estatal.

Existem algumas maneiras diferentes de classificar e categorizar as ações da administração pública. Uma das mais conhecidas consiste em separar as políticas de Estado das políticas de governo, por meio do critério da perenidade. Uma política de Estado corresponderia aos objetivos de longo prazo, estruturais, que a administração pública deve perseguir independente do ciclo político e das mudanças de governo; são exemplos: estabilidade macroeconômica, desenvolvimento, segurança interna, soberania nacional, entre outras; essas políticas não devem ser descontinuadas, pois seriam objetivos perenes. Por outro lado, uma política de governo diz respeito a objetivos transitórios, concernentes às premissas e agendas dos representantes que estão no poder em um dado momento, como a política fiscal, políticas educacionais, política de segurança pública etc.

Outra maneira de classificar as ações da administração pública separa as políticas de acordo com sua natureza. Nesse sentido, dividem-se em políticas sociais e políticas econômicas. As políticas econômicas visam estruturar a produção e distribuição de riqueza, sendo compostas por políticas macroeconômicas (cambial, fiscal e monetária) e políticas microeconômicas (industrial, de inovação, de exportação etc.). Já as políticas sociais tratariam de estruturar a oferta de bens e serviços comuns, de interesse coletivo, como política de saúde, educação e segurança pública, bem como políticas de transferência de renda, seguridade laboral, transporte e movimentação, entre outras.

As políticas públicas, portanto, materializam os objetivos mais gerais de uma nação em termos de processos de gestão — planejamento, organização, direção e controle — dos recursos à disposição. Isto observando o rol de regras e institutos fornecidos pelo direito administrativo, seus princípios e limites. Claro, a relação entre política, direito e gestão também é pautada por conflitos, negociação e compromissos, pois que os atores sociais envolvidos igualmente constituem em si mesmos grupos legítimos de interesse sobre os rumos do Estado, fazem parte da nação. São, portanto, instâncias interdependentes, em constante fricção e cooperação, contraditórias como são contraditórios entre si os diversos grupos sociais que compõem um país.

Referências

DENHARDT, R. B.; CATLAW, T. J. Teorias da administração pública. Tradução: Noveritis do Brasil. 2. Ed. São Paulo: Cengage Learning, 2017.

MEIRELLES, H. L. Direito administrativo brasileiro. 42. Ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

PARSONS, C. Introduction to political science: how to think for yourself about politics. Boston, US: Pearson, 2016.


[1] As origens do poder são diversas, pois correspondem ao que uma coletividade assume (livre ou impositivamente) como que tenha potencial de conferir destaque ou proeminência a um ator social em relação aos demais. Assim, podem ser origens de poder bens materiais (terras, capital, dinheiro), títulos honoríficos ou acadêmicos, ocupação de cargos oficiais (juízes, promotores, senadores), competências e habilidades distintivas etc.

[2] Os interesses tem duas fontes principais: (i) as aspirações materiais (objetivos) dos atores sociais e (ii) os valores morais, éticos, filosóficos etc. (subjetivos) que tais atores assumem como seus. Esses interesses normalmente se materializam numa agenda — que tanto pode ser uma proposta estruturada de programação das instâncias coletivas de interação, como um rol difuso de aspirações incoerentes entre si, mas mais comumente num ponto intermediário entre esses extremos — que estrutura sua ação social.


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