Os Porquês da Escaramuça contra a Estabilidade dos Servidores Públicos

Vira e mexe os tais reformistas do Estado — os impolutos e virtuosos defensores da eficiência — voltam sua atenção contra a estabilidade dxs servidorxs públicos. O argumento normalmente gira em torno de uma lógica simples: a estabilidade causaria ineficiência, pois não haveria um incentivo forte para com o qual os trabalhadorxs se comprometessem, operando assim em níveis sub-ótimos de produtividade. Concluem que acabar com a estabilidade dos servidores contribuiria para um Estado melhor, mais eficiente e justo.

Todo esse argumento é falacioso, em muitas camadas. Vamos desvelar os problemas?

Em primeiro lugar, temos que debater o elefante na sala. Alguém realmente acredita na ameaça como princípio de gestão? É preciso uma enorme ausência de empatia e desinformação para sugerir que um tipo de opressão agressiva, a possibilidade eminente de demissão, serve como incentivo. Talvez, num nível muito preliminar, alguns ganhos de produtividade surjam, mas a constante situação de incerteza pode levar ao desenvolvimento de doenças funcionais, como estresse, ansiedade, até mesmo depressão, todas estas condições comprovadamente contraproducentes.

Nesse caso, é preciso dizer, o inimigo da estabilidade acredita que, se um(a) trabalhador(a) quebrar — e elxs sempre quebram, mais que isso, traumatizam, perdem confiança, adoecem irremediavelmente, porque pessoas não são máquinas — será possível substituir no mercado. Isso também é falacioso. O tipo de trabalho normalmente exercido no Estado requer competências complexas, que são desenvolvidas ao longo dos anos por meio de uma demorada formação, bem como através de experiências não tão simples de serem replicadas. Trabalhadorxs muito capacitados não se encontram à disposição no mercado, não se formam da noite para o dia e, portanto, não são facilmente substituíveis.

Produtividade se alcança num ambiente de trabalho saudável, não o contrário. As investigações mais recentes sobre produtividade demonstram que está relacionada com um rol muito amplo de fatores, desde a manutenção de um clima organizacional favorável, mais a percepção de sentido do trabalho, convergência de interesses entre a organização e os trabalhadores, subsídios higiênicos (conforto físico, acústico, visual, térmico, de segurança e para o atendimento de necessidades básicas), remuneração adequada, além de prêmios e incentivos complexos, entre outros. A manutenção de um sistema de ameaça com a perda do trabalho não é compatível com a produtividade em nenhuma das dimensões listadas.

Outro aspecto a se considerar é como a estabilidade funciona como proteção contra corrupção. Primeiro, se xs servidorxs não fossem estáveis, estariam expostos a ingerências por parte de superiores, que podem utilizar da ameaça do desemprego como forma de persuasão no sentido de aderir uma prática antiética ou mesmo criminosa. Segundo, xs servidorxs estáveis são menos propensxs a aderir a um esquema de corrupção — uma das circunstâncias que constituem a possibilidade de demissão por justa causa do servidor estável é o envolvimento com atividades criminosas —, pois correm o risco de perder seus benefícios; alguém que pode ser demitido por motivos fúteis, se sentirá mais à vontade para compensar o risco com benefícios irregulares. Ainda, xs servidorxs estáveis tendem a denunciar com mais frequência as situações irregulares, pois que não temem represálias de políticos, superiores ou particulares.

Por fim, a estabilidade serve para garantir a continuidade de gestão. Um dos problemas que podem surgir caso xs servidorxs não fossem estáveis se observaria nas passagens de governo. É de se esperar que, a cada ciclo político, tendo havido a (justa e necessária) alternância de poder, o novo governo monte uma equipe de trabalho alinhada com suas perspectivas, opiniões e interesses. Nesses casos, se os servidores não fossem estáveis, haveriam demissões em massa a cada novo governo, atrapalhando a continuidade do serviço público. E isso é um problema por quê?

Em primeiro lugar, por conta da quebra de memória organizacional. Ao longo do tempo, por meio da repetição do trabalho e de circunstâncias contingenciais, uma organização acumula competências decorrentes da experiência. Muitas dessas competências se mantêm no plano subjetivo, já que a “memória organizacional” é composta daquilo que está mapeado e documentado (práticas e processos objetivamente descritos), mais aquilo que é compartilhado como aprendizado ainda não documentado. Ao mudar a equipe de trabalho, toda essa experiência subjetiva se perde, fazendo com que a nova equipe cometa erros evitáveis, não cumpra prazos, sequer compreenda o sequenciamento de tarefas, o que pode gerar retrabalho e colocar em risco a continuidade de processos.

Segundo, as políticas de Estado seriam abandonadas. Política de Estado é um tipo de objetivo a longo prazo da sociedade, que o Estado deve perseguir perenemente, como saúde pública de qualidade, preservação do meio-ambiente natural, aumento da qualidade da educação pública, entre outros. Quando xs servidorxs são estáveis, grande parte de seus esforços se voltam para essas metas que extrapolam governos. Porém, se o ciclo de emprego estiver vinculado ao ciclo político, xs servidorxs sem estabilidade darão ênfase às políticas cuja temporalidade se limite ao curto prazo. Afinal, precisam de resultados concretos para justificar, a cada dois anos, o referendo público, desprivilegiando assim esforços e investimentos de maturação longa.

Esses problemas de certa forma já acontecem nas mudanças de governo no Brasil, dado o elevado número de cargos de confiança ocupados por pessoas que não fazem parte do corpo de funcionários de carreira dos órgãos. Por conta disso, muitas das políticas são descontinuadas, não têm tempo de maturar e gerar os efeitos positivos esperados, assim desperdiçando recursos públicos, investimento e esforço.[1] Se xs servidorxs não fossem estáveis, seria muito pior. A cada ciclo político as mudanças seriam drásticas, o que diminuiria a qualidade de gestão de modo geral, bem como impossibilitaria a manutenção de políticas de Estado, gerando ineficiência no uso de recursos da coletividade.

Diante de todas essas desvantagens, por que existe ainda quem defenda a extinção da estabilidade dos servidores?

A resposta para essa pergunta é muito mais profunda do que meramente o modismo da época. Tudo bem, estudiosos superficialistas — assim como economistas liberais — adotam premissas falaciosas de entendimento do funcionamento do Estado, muito porque estão copiando o que “especialistas” de outros países dizem e fazem. É chique falar que entende e prega a Nova Administração Pública (New Public Management), porque é “nova”, não “velha”, porque é “management”, porque não é “burocrática”. Muitos dos ministradores de curso estão nesse patamar de estultícia, reproduzindo por comportamento de manada o que sequer entendem completamente. Mas há causas profundas para a discussão.

O debate sobre o fim da estabilidade do servidor público compõe a agenda dessa tal New Public Management (NPM). A NPM surge no final do século XX como parte acessória da estratégia neoliberal, este um movimento da classe capitalista rentista para reprogramar Estado, empresas e sociedade de modo que todas instituições humanas lhes enviem o máximo da riqueza que disponham. O objetivo oculto da NPM é reduzir o investimento do Estado, para que os recursos públicos sejam destinados exclusivamente ao pagamento de juros, assim privatizando o fundo público de capital controlado pelo Estado.[2]

Além desse objetivo mais geral, o fim da estabilidade de servidores também atende a expectativas mais transitórias dos interesses empresariais. Primeiro, as empresas querem os trabalhadores capacitados do Estado para serem explorados por baixos salários, aumentando assim sua capacidade de valorizar investimentos. Além disso, muitos empresários desejam que os servidores não sejam estáveis, para que possam corrompe-los com mais facilidade, seja com propinas, por meio de políticos sob sua influência, ou mesmo ameaças.[3] Ao final, toda essa discussão esconde os interesses de capitalistas e rentistas contra toda a sociedade, tentando eliminar a estabilidade de servidorxs que funciona com uma linha de defesa contra ingerência e corrupção.


[1] Por exemplo, mesmo sofrendo com uma crise energética sem precedentes, o governo FHC em oito anos (1994-2001) não fez nenhum investimento na estrutura geradora, pois a maturação desses investimentos geraria dividendos para governos que não seriam os seus. Obras de grande vulto foram totalmente abandonadas. Só nos governos PT que se retomaram esforços de investimento em infraestrutura, mesmo correndo o risco de que seus esforços fossem amealhados por outros governos. Como de fato aconteceu, quando o governo Bolsonaro tentou reivindicar autoria da transposição do Rio São Francisco, obras que, por conta de sua complexidade e vulto, perpassaram todos os governos petistas.

[2] O “fundo público” é uma reserva coletiva de recursos, sob controle do Estado, reunido pelo esforço da população em termos de recolhimento de impostos (fundo monetário), investimentos em infraestrutura (fundo de capital) realizados no passado, bem como o corpo de servidores altamente capacitados (capital intelectual).

[3] Além disso, os empresários pequeno-burgueses nutrem, ideologicamente, um repúdio contra o Estado; afinal, é o poder público que os impede de escravizar pessoas, que exige que não destruam a natureza ou poluam o ar, que estabelece salários mínimos, responsabilidades sobre o que acontece com o trabalhador no local de trabalho, que impede que ofereçam produtos perigosos ou enganosos; o empresário pequeno-burguês odeia o Estado, porque é o Estado que disciplina suas tendências antiéticas e criminosas em nome do lucro. Portanto, quando alguém defende o fim da estabilidade dxs servidorxs públicos, no limite está defendendo os interesses da minoria que pretende se apropriar (de preferência indebitamente) dos bens e serviços públicos, poluir, escravizar e enganar para fazer dinheiro.


Descubra mais sobre Administração Crítica

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Os comentários estão encerrados.

Site criado com WordPress.com.

Acima ↑