Boa fração da vida em sociedade hoje se dá no espaço privado das empresas. Do virtual ao real, do entretenimento ao trabalho, do nascer ao morrer. Pode-se dizer que cada empresa, cada organização pública ou privada, é um espaço de socialização, um lugar onde a comunidade se desenvolve. Não se tratam de meros recintos de produção de bens e serviços, mas também de manifestação do eu e dos outros, dos laços e da interação. No entanto, ao mesmo tempo que a empresa serve como catalizadora de experiências coletivas, também funciona como palco de diferentes processos de opressão.
O primeiro e mais evidente é a EXPLORAÇÃO DO TRABALHO. As funcionárias e funcionários normalmente são empregados por um salário fixo, pré-estabelecido, em troca de que se coloquem a disposição para determinada jornada de trabalho (pela lei, até 8 horas diárias, no máximo 44 horas semanais, com um dia de descanso remunerado). Nesse período em que ficam a disposição da empresa, a gestão procura utilizar de sua força de trabalho para criar valor num montante que cubra o salário, os benefícios e ainda produza um excedente. É exclusivamente desse valor à mais, dessa mais-valia, que surge o lucro. Explorar o trabalho significa utilizar das pessoas como se fossem coisas, partes de uma máquina, mercadoria de consumo intermediário, para atingir uma finalidade particular.
Para que isso seja possível, a gestão empresarial tenta manter a força de trabalho ocupada pelo maior tempo possível, com o maior grau factível de engajamento e comprometimento. Assim, utiliza-se de mecanismos de controle da atenção, normas e procedimentos padronizados para melhor utilização de tempo, movimentos e recursos, sistemas de recompensas objetivos (prêmios em dinheiro ou bens) e subjetivos (distinções simbólicas, títulos e honrarias), bem como um aparato repressor de desvios, tais quais impedimentos de perseguição de interesses pessoais (controle de celulares, acesso restrito a internet, impedimento de conversas entre trabalhadores), restrições a liberdade de ir e vir (tempos programados de descanso, alimentação e satisfação de necessidades fisiológicas) e mesmo aparatos de convencimento e opinião. Daí vem a ideia de “vestir a camisa” da empresa, o que significa que o trabalhador deveria se comprometer 100% com o objetivo de produzir valor excedente para formar lucro, muitas vezes até trabalhando fora do expediente com recursos próprios.
Ao lado dessa forma de opressão, somam-se aquelas subjacentes que, embora não contribuam diretamente para a formação de lucro, são funcionais à exploração.
Também já é bem conhecida a HIERARQUIA entre trabalhadores. Na maior parte das empresas, as relações de trabalho são estruturadas por meio de cadeias de comando e supervisão. Essas estruturas partem da premissa de que a separação entre as funções de gestão (atividade intelectual) e produção (atividade manual) proporcionaria um ganho de produtividade. As funções de gestão compreendem os processos complexos de análise e tomada de decisão, enquanto que os trabalhos manuais, por sua vez, são divididos em atividades simples, repetitivas e mentalmente desestimulantes. Apesar de muitas evidências empíricas terem demonstrado, ao longo das décadas, que essa premissa tende a ser falsa, ainda assim as empresas são altamente hierarquizadas. A hierarquia leva a um sistema de castas, onde pessoas são classificadas como inferiores e superiores por conta dos cargos que ocupam.
Curiosamente, as funções consideradas mais simples são aquelas que produzem valor, pois que diretamente ligadas à transformação de matérias-primas em bens e a prestação de serviços. Essa divisão de trabalho auxilia a empresa a (i) substituir facilmente os trabalhadores (é mais fácil treinar novos trabalhadores em funções simples), (ii) controlar diretamente as ações, modos de trabalho e, talvez até, as formas de pensar dos colaboradores, e (iii) manter um monopólio da tecnologia de produção. Tudo isso serve para diminuir a importância dos trabalhares e, por conseguinte, o preço pago pela força de trabalho, permitindo que a empresa remunere a maior parte dos empregados com salários muito baixos e alcance lucros maiores.
Paralelamente, as DIFERENÇAS DE GÊNERO da sociedade se reproduzem nas empresas, com efeitos particulares. Muitas pesquisas demonstram que as mulheres ocupam uma posição inferior na vida corporativa. Em média, a remuneração das mulheres é um montante abaixo ao dos homens. Além disso, a participação de mulheres dos quadros de gerência e supervisão é desproporcionalmente menor de que as dos homens. E ainda, quando ocupam os mesmos cargos, mulheres normalmente recebem menos que homens, independente de equivalências de formação e experiência. Isso sem mencionar que, em sua maioria, empresas são ambientes nos quais as mulheres se encontram em situação de fragilidade e perigo, sujeitas à diversas modalidades de violência simbólica, psicológica, física e sexual.
Além disso, a cultura empresarial é, na maior parte dos casos, MACHISTA. Os valores e comportamentos valorizados na empresa, como liderança, proatividade, arrojo, inovatividade e capacidade empreendedora, normalmente são associados a priori como pertencentes ao universo masculino. As mulheres que apresentam tais características são, muitas vezes, taxadas como “masculinizadas”, perpetuando um sexismo simplista e infantil. Soma-se a isso o fato de que as estruturas organizacionais não estão preparadas para atender as demandas particulares das mulheres, como a sazonalidade do ciclo menstrual, a maternidade, a amamentação, sequer a disponibilidade de produtos de higiene feminina em banheiros.
Essa posição inferiorizada da mulher na empresa é funcional à exploração. Na medida em que são subvalorizadas, muito embora sejam igualmente produtivas, são capazes de proporcionar ainda mais excedente e maiores lucros. Por outro lado, a desassistência de suas necessidades particulares significam menores custos de produção e manutenção. E não se pode deixar de notar que a instituição empresa surge e se desenvolve no seio da cultura ocidental capitalista, herdeira da tradição judaico-cristã, que historicamente é pautada por valores machistas. A empresa também pode ser considerada parte funcional do patriarcado e, ao mesmo tempo, se utiliza da posição inferiorizada da mulher para lucrar mais.
O mesmo efeito pode ser observado quanto a QUESTÕES ÉTNICAS. Na medida em que a organização empresarial capitalista é uma instituição derivada da cultura ocidental, a partir da Europa, sobrevivem nela os típicos expedientes racistas de dominação e subjugação das etnias negras, nativas, asiáticas etc. Em termos práticos, pesquisas demonstram que mesmo em países de maioria nativa americana, latina ou negra (como nas Américas do Sul e Central, ou na África), os indivíduos identificados como pertencentes à etnia europeia branca ocupam a maioria dos espaços de poder, melhores cargos, assim como recebem em média melhores remunerações e têm estatisticamente mais chances de se desenvolver pessoal e profissionalmente.
A pecha não-oficial de cidadãos de uma categoria inferior outorgada à indivíduos pertencentes a etnias não-brancas serve para desvalorizar o preço de seus trabalhos, independente de sua capacidade produtiva. Da mesma forma, os racismos estrutural e institucional — estrutural por que (i) se reproduz nos usos e costumes da sociedade assimilados por indivíduos na dinâmica de aculturação, institucional por que (ii) se encontra enraizado em normas e procedimentos formais e informais das organizações burocráticas, no aparatos de segurança pública, na escola, no Estado — contribuem em última instância para a produção de excedente. Por outro lado, a própria empresa se firma como um mecanismo estrutural-institucional de segregação e exploração das etnias não-brancas.
Além dessas questões mais amplas, as organizações empresariais se valem de outros processos de opressão para impulsionar os ganhos. DIFERENÇAS REGIONAIS, como no caso brasileiro da relação Sul-Sudeste/Norte-Nordeste, se perpetuam na prática empresarial tanto para segregar e desvalorizar, como também no tocante a atenção (ou falta de) dada a aspectos culturais e comportamentais das diferentes regiões. Da mesma forma, DISCRIMINAÇÃO DE ORIGEM SOCIAL aparece na organização empresarial na ocorrência de sistemas subjetivos de preferência que privilegiam indivíduos oriundos de famílias tradicionais, ou bem relacionados com autoridades. Ainda pode-se levar em conta os mecanismos de CONSTRANGIMENTO PSICOLÓGICO, que se encontram associadas à relações contraditórias e projeções simbólicas radicadas na hierarquia de mando e controle, fazendo emergir dinâmicas de assédio funcional, moral e até mesmo sexual.
Em suma, essas e outras dinâmicas de opressão na empresa são responsáveis por episódios (eventos isolados) ou processos (práticas reiteradas) que levam ao, ou melhor, produzem sistematicamente, sofrimento. Em muitos casos as pessoas são sutilmente preteridas, têm oportunidades limitadas, ou são vítimas de práticas de violência simbólica que diminuem sua confiança, colocam em risco seu equilíbrio emocional ou rebaixam seus potenciais. No entanto, também coexistem práticas de violência concreta, como os trabalhos análogos a escravidão, as abordagens violentas dos aparatos não-oficiais de segurança, a gestão que utiliza deliberadamente do assédio e do constrangimento como forma de motivação, ou mesmo, e talvez mais frequentemente, a exigência constante pelo aumento do ritmo e da intensidade do trabalho. Tudo isso resulta, ao final, em enfermidade e dor.
A assim chamada cultura corporativa se eleva sobre práticas de controle, submissão e jugo, que não apenas são extensão dos costumes sociais de opressão, como também compreendem dinâmicas opressivas próprias. O ambiente empresarial é um espaço de violência que atinge praticamente a todos, mas notadamente, vitima com maior intensidade aqueles que socialmente já se encontram em situação de vulnerabilidade. Nas costas daqueles menos favorecidos, mais socialmente marginalizados, as empresas se erguem para acumular bilhões.
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