Como é de conhecimento de todes que acompanham minimamente o curso recente da política brasileira (caso não seja o seu, convém assimilar isso desde já como premissa elementar, #fikdik), o aparato midiático dominante do Sudeste (SP, RJ, MG e ES) encontra-se concentrado nas mãos de um reduzido conjunto de famílias ditas “tradicionais”. Suas fortunas e sua capacidade de influência derivam de origens variadas — legais ou não, mas majoritariamente antiéticas, quando não francamente sórdidas —, que incluem empresa colonial escravocrata, tráfico internacional, ditadura empresarial-militar, neoliberalismo predatório e cristianismo neopentecostal convertido em negócio.
Conglomerados como o Grupo Globo (Rede Globo de Televisão), Grupo Silvio Santos (SBT), Grupo Bandeirantes, Grupo Abril, Grupo Record, Grupo Folha-UOL e Grupo Estado (Estadão) são, hoje, empresas privadas de capital fechado, sob controle familiar direto, organizadas em esquemas sucessórios marcadamente hereditários e nepotistas. Suas vantagens competitivas não decorrem de excelência jornalística, mas da preservação de vínculos históricos com o poder político, a burocracia estatal, o aparato militar, setores empresariais estratégicos e redes religiosas (incluindo fraternidades iniciáticas) cuja opacidade desafia qualquer noção minimamente séria de transparência. Constituem, assim, um restrito conciliábulo no qual se acumula o capital simbólico da nossa — certamente diriam que não “nossa”, mas “deles” — nação.[1]
A grande mídia sudestina habituou-se, desde sempre, a exercer virtual monopólio sobre aquilo que convencionou chamar de “opinião pública”, bem como sobre a prerrogativa de pautar e orientar temas de alcance nacional. Isso se explica, em larga medida, pelo controle concentrado dos principais canais de comunicação que alcançam milhões de brasileiros diariamente. Soma-se a isso o fato de operarem como um oligopólio dotado de enorme poder econômico, jurisdição simbólica incalculável e obstinação em preservar a ordem vigente. Tal proeminência foi construída ao longo de décadas de relações promíscuas com o poder, sejam governos conservadores ou (neo)liberais, sempre em torno de agendas funcionais às classes capitalistas.
Não surpreende, portanto, que esse sistema midiático se arrogue o direito de definir o que é o Brasil. Cabe-lhe decidir o que integra o “nacional” e o que deve ser relegado ao “regional”; quais interesses são apresentados como “coletivos” e quais são rotulados como particularistas ou “populistas”; quais costumes, sonoridades, culinárias e modos de vida merecem chancela de brasilidade. Por extensão, estabelece-se o que passa a ser classificado como “nordestino”, “amazonense” ou “sertanejo”. Ao fim, determina-se quem pode falar em nome do país, quais vozes devem ser tratadas como marginais e quais posições serão enquadradas como inimigas.
Ao longo da história brasileira, esse poder foi reiteradamente colocado a serviço dos interesses mais retrógrados e espúrios. Opuseram-se à abolição da escravidão, apoiaram o golpe que resultou na Proclamação da República — regime que assegurou a hegemonia política do Sudeste sobre o governo federal por mais de quatro décadas —, lideraram campanhas contra o salário mínimo, o 13º salário e as férias remuneradas, antagonizaram sistematicamente a esquerda, deram sustentação ao golpe e à ditadura de 1964, tergiversaram diante do movimento Diretas Já e alinharam-se com entusiasmo às reformas neoliberais. Até hoje, atacam a CLT, desqualificam qualquer política de valorização salarial, destilam hostilidade contra o Partido dos Trabalhadores e oferecem guarida a qualquer figura da direita com chances eleitorais relevantes — pouco importa se nazista, fascista, bozista ou apenas oportunista.
Em diversos momentos, a mídia empresarial brasileira não demonstrou qualquer pudor em distorcer fatos, ocultar acontecimentos e inflar não-debates. Tornou-se célebre a declaração atribuída ao então âncora do Jornal Nacional, William Bonner, em 2005, segundo a qual o telespectador médio se assemelharia a Homer Simpson — personagem notório pela simplificação extrema do pensamento. A partir dessa premissa, a edição das notícias deveria privilegiar entretenimento e empobrecimento cognitivo. O mesmo Jornal Nacional noticiou uma grande manifestação contra a ditadura, nos anos 1980, como se fosse mera comemoração do aniversário da cidade de São Paulo. Mais tarde, interferiria sem pudor nas primeiras eleições presidenciais diretas, por meio da edição criminosa do debate entre Lula e Collor e da difusão de um factóide (o que hoje chamamos de “fake News”) que associava sequestradores do empresário Abílio Diniz ao PT.
A grande mídia sudestina também se destaca pela habilidade em amplificar apenas as vozes que lhe são convenientes. Em debates atravessados por dissenso legítimo, tende a enfatizar quase invariavelmente a posição do opressor, apresentada como única, racional e tecnicamente inevitável, sem qualquer menção ao contraditório. Temas como direito ao aborto, regulação da cannabis, marco temporal para terras indígenas, união civil entre pessoas do mesmo sexo e políticas de cotas raciais no ensino superior são tratados de forma unilateral. Na maioria dos casos, a defesa recai sobre a preservação dos privilégios da pseudoelite branca, capitalista e sudestina (fração social que prefiro denominar, sem rodeios, de escória capitalista). Espaço para divergência, simplesmente, não há.
No fim das contas, a grande mídia sudestina não informa: normatiza, enquadra e disciplina. Não exerce jornalismo: exerce poder. Seu poder não reside apenas na difusão de notícias, mas na capacidade de definir limites simbólicos, interditar vozes dissidentes e naturalizar privilégios como se fossem consensos nacionais. Opera como instância de vigilância ideológica, zelando para que nada ameace a hierarquia social que a sustenta. Seu compromisso não é com a verdade, o pluralismo ou o interesse público, mas com a reprodução de privilégios herdados, travestidos de neutralidade técnica. Ao definir o que é “Brasil”, quem pode falar e quais ideias merecem existir, esse aparato revela sua função real: conter a democracia, domesticar o dissenso e garantir que o país continue sendo administrado como propriedade privada de poucos — enquanto muitos seguem reduzidos à condição de plateia silenciosa.
Ao operar como guardiã autoproclamada do “interesse público”, a grande mídia sudestina funciona, na prática, como braço ideológico de uma (novamente, “pseudo”) elite estreita, hostil à democracia substantiva e refratária a qualquer redistribuição de poder, renda ou reconhecimento. Desvendar esse funcionamento não é exercício retórico: é condição mínima para compreender por que certos debates jamais chegam à mesa; e por que, quando chegam, já vêm decididos.
[1] Não é possível afirmar que esses grupos se reúnam formalmente como um parlamento ou cartel. Não há evidência documental que comprove algo dessa natureza. Ainda assim, é difícil ignorar que um conjunto tão restrito de atores sociais, com interesses amplamente convergentes, concentrado no eixo Rio–São Paulo e pertencente ao mesmo estrato social, tenda a adotar posições quase monolíticas em temas de interesse comum — como pautas trabalhistas, hostilidade à esquerda, reverência aos Estados Unidos ou subserviência ao capital financeiro.
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