A perspectiva norte-americana de ação pública segundo Woodrow Wilson: Estado, governo e administração

Esse texto analisa a concepção de Woodrow Wilson sobre Estado e Governo, argumentando que sua obra constitui uma inflexão paradigmática no pensamento político e administrativo nos Estados Unidos da América (EUA), à luz das demandas estruturais do capitalismo monopolista que então se formava. Wilson propôs a substituição do modelo mecanicista de Estado formulado pelos assim chamados Pais Fundadores dos EUA, por uma visão orgânica evolutiva, que implicava reinterpretar a Constituição, fortalecer o Poder Executivo e desenvolver uma administração pública profissional, eficiente e autônoma. Com base em três dos principais escritos de Woodrow Wilson — O Estudo da Administração (2005 [1887]), Constitutional Government in the United States (1908) e The New Fredom (1913) —, mais referências adicionais, esse trabalho examina os fundamentos teóricos e institucionais da proposta wilsoniana, suas implicações duradouras na política doméstica estadunidense, economia política, relações internacionais e administração pública.

A seguir o trabalho se divide em cinco seções dedicadas a: (i) breve introdução acerca do contexto político no qual emergem os trabalhos de Woodrow Wilson; (ii) exposição da noção wilsoniana de Estado orgânico; (iii) relação entre governo, administração e administração pública; (iv) implicações do paradigma wilsoniano; e (v) algumas considerações para análise do papel estrutural da contribuição de Woodrow Wilson para a reconfiguração produtiva do capitalismo global.

Introdução

Woodrow Wilson (1856-1924), jurista, historiador, cientista político, acadêmico, representante político no parlamento e vigésimo oitavo presidente dos EUA, emerge como figura de destaque na redefinição do pensamento político norte-americano no início do século XX. Sua perspectiva sobre governo e Estado, forjada em meio à Era Progressista — nos EUA, período entre final do século XIX e primeiro quartel do século XX, marcado pela ascensão de um movimento de reformadores com intenções ditas modernizadoras e progressistas —, representou uma ruptura com a filosofia de Estado limitado, então desenhada na Constituição norte-americana.

A transformação dos EUA, de uma república agrária em potência industrial no final do século XIX, revelou a insuficiência do modelo político-administrativo herdado do século XVIII. O arcabouço institucional concebido sob o liberalismo clássico mostrava-se inadequado diante das novas demandas sociais e econômicas despertadas pela industrialização, pela concentração de poder nas corporações e pela corrupção endêmica nos governos locais. O movimento progressista emergiu, assim, como uma reação contra essas disfunções, defendendo a intervenção estatal como instrumento de correção das falhas de mercado e promoção do interesse público. A solução, para esse grupo, residia na aplicação da ciência, da eficiência e da expertise tecnoburocrática ao Estado e administração pública, utilizando o poder do governo federal como principal instrumento de reforma para alcançar o bem-estar coletivo.

Nesse contexto, Wilson ofereceu uma crítica sofisticada ao constitucionalismo originário dos EUA, especialmente contra a doutrina de checks and balances. Para Wilson, a fragmentação do poder, concebida para conter a tirania, tornara-se um obstáculo à ação efetiva do governo. Segundo o autor, essa doutrina limitava a cooperação, enrijecia a tomada de decisão, esvaziava a capacidade de uma liderança dar rumos estratégicos para o Estado, bem como aumentava disfuncionalmente o tempo de resposta do governo diante de contingências e ameaças. A proposta de Woodrow Wilson visava superar o paralisante equilíbrio de forças e conferir ao Estado um caráter adaptativo, dotado de maior capacidade de intervenção, apto em responder às exigências de um capitalismo em acelerada transformação.

1. Concepção Orgânica de Estado

A base da teoria política de Wilson está na concepção orgânica do Estado. Ele rejeitava a metáfora do governo como uma máquina formada por peças rígidas, estática, cuja eficiência dependeria apenas da ação isolada e prodigiosa de cada parte fechada em si mesma. Procurou substituir essa premissa por uma concepção que equiparava a instituição Estado ao um organismo vivo, o qual se desenvolve em interação com seu ambiente histórico. Segundo Wilson,

The trouble with the theory is that government is not a machine, but a living thing. It falls, nor under the theory of the universe, but under the theory of organic life. It is accountable to Darwin, not to Newton. It is modified by its environment, necessitated by its tasks, shaped to its functions by the sheer pressure of life. (Wilson, 1908, p. 56).

Essa concepção implica em compreender o Estado como uma entidade cambiante e mutável, cuja estrutura deve evoluir com as transformações sociais. A constituição, portanto, não poderia ser um instrumento rígido, mas uma referência dinâmica, suscetível de crítica e adaptação. Tal leitura, chamado de “constitucionalismo vivo”, conferiu legitimidade teórica à expansão das competências federais e à centralização do poder no Executivo, permitindo ao Estado regular setores antes considerados de âmbito, interesse e domínio estritamente privados.

O corolário lógico de um Estado ativo é um governo inovador. Wilson redefine o propósito do governo para além da mera proteção da propriedade e manutenção da ordem. Em sua visão, o poder econômico concentrado das grandes corporações representava uma ameaça maior à liberdade individual do que o poder estatal. Portanto, caberia ao governo intervir ativamente na economia para “limpar e retificar os processos de livre competição” garantindo assim igualdade de oportunidades, um princípio central de sua agenda política.

Para Wilson, o Estado é a expressão institucional da vontade coletiva, dotado de organicidade e racionalidade própria, capaz de orientar o desenvolvimento nacional. O governo, por sua vez, é o conjunto de funções diretivas do Estado, o poder de formular políticas e direcionar a ação pública. Enquanto o Estado constituí uma entidade política perene, o governo é seu órgão motor e adaptativo, incumbido de responder às transformações sociais. Em Wilson, a administração pública assumiria um papel mais técnico, circunscrito à espera da operacionalização.

2. Governo, Administração e Administração pública

Woodrow Wilson pode ser arrolado entre os autores pioneiros do estudo sistemático da administração como um campo de conhecimento autônomo. Em O Estudo da Administração (Wilson, 2005), publicado originalmente em 1887, Wilson distingue entre os conceitos de governo, entendido como um processo político de deliberação e decisão sobre os fins coletivos, e administração, concebida como o domínio técnico e instrumento responsável pela execução daqueles fins. Em sua análise, na medida em que a sociedade se complexifica, o Estado se diferencia e a empresa ganha dimensões nacionais, o problema da gestão se apresenta, obrigando o estudo sistemático de como usar recursos de forma racional.

O governo, em seu sentido político, expressa a vontade popular e define os grandes desígnios do Estado; a administração é a função racional que transforma tais desígnios em ação organizada. Já a administração pública representa o corpo institucional e professional encarregado dessa execução — um sistema de competências, regras e procedimentos orientados por critérios de eficiência, neutralidade e mérito.

Em Wilson, “governo” reúne duas funções que contemporaneamente aparecem separadas: (i) governança, ou seja, da articulação entre atores fora do Estado; e (ii) estratégia, no sentido de estabelecer direção e coerência aos processos internos e tomada de decisão.

A noção de estratégia em Wilson parece situada entre as abordagens PROCESSUALISTA e SISTÊMICA no modelo de Richard Whittington.

Essa distinção funda a “dicotomia política-administração”, que tinha a pretensão de proteger a racionalidade técnica da administração contra as pressões partidárias e o clientelismo. Nas palavras de Wilson:

O campo da administração é um campo de atividades apolíticas. Êle está afastado da pressa e lutas da política; sob alguns aspectos mesmo êle se mantém afastado do controvertido terreno do estudo constitucional. É uma parte da vida política sòmente na medida em que os métodos do escritório comercial são uma parte da vida social; (Wilson, 2005, p. 358).

A profissionalização do serviço público, que vinha a substituir o modelo de patronagem — típico do Estado norte-americano do século XIX (spoils system) — por um mecanismo meritocrático, representava condição necessária para a consolidação do Estado moderno, segundo Wilson. Ao isolar a esfera administrativa da arena política, poder-se-ia alcançar a eficiência necessária para gerir as complexas tarefas regulatória e de prestação de serviços que se exigia do Estado a partir de então. Assim, a administração pública tenderia a se firmar como instrumento técnico para implementação legítima de decisões políticas.

3. Implicações do Paradigma Wilsoniano

O desenho teórico-prático elaborado por Wilson ensejou implicações profundas e duradouras na reconfiguração das instituições americanas no século XX.

No que concerte à política e à administração pública, a visão de Wilson contribuiu para legitimar um tipo de Estado administrativo. Wilson propôs e engendrou a criação de agências com corpo técnico especializado (como o Federal Reserve e a Federal Trade Commision), implementou uma doutrina de liderança presidencial, que conferia ao Presidente o papel de interprete da vontade nacional e fomentou a já mencionada profissionalização da gestão pública. Isso contribuiu para consolidar o Poder Executivo como centro de gravidade do sistema político, deslocando a lógica do Estado do Poder Legislativo para a Gestão.

A perspectiva wilsoniana ainda contribuiu para a consolidação do Estado como ator regulador fundamental na economia de mercado. A agenda batizada como “new freedom” institucionalizou a maior participação federal na correção de falhas de mercado, promoção da competição e proteção de atores hipossuficientes diante da empresa, como consumidores e trabalhadores. O modelo de capitalismo regulado representou um afastamento em relação às políticas de laissez-faire do século XIX e estabeleceu precedente para as atuações em cada vez maior escala que se seguiriam, como, por exemplo, o New Deal de Roosevelt.

Ademais, Wilson também projetou uma concepção de Estado racional e moralmente orientado para a arena global, contribuindo para a perspectiva de internacionalismo liberal. A ordem internacional não deveria ser governada pelo equilíbrio de poder, mas por princípios como o direito (rule of the law) autodeterminação dos povos e segurança coletiva. A Liga das Nações — uma proposta especificamente desenhada por Woodrow Wilson para ordenar o mundo após a Primeira Guerra Mundial — foi a tentativa de institucionalizar essa visão, visando criar uma estrutura administrativa supranacional para mediar conflitos e prevenir a guerra. Embora tenha fracassado em seus intentos, se estabeleceu ali um arcabouço ideológico para a política externa estadunidense no século XX, justificando as pretensões hegemônicas dos EUA na promoção da democracia e da ordem liberal global.

4. Considerações para uma Análise da Contribuição de Woodrow Wilson

O papel que Woodrow Wilson cumpriu na consolidação da hegemonia estadunidense no século XX não deve ser compreendida meramente em termos de expressão moral ou idealista de liderança global, mas como movimento histórico da transição do Estado capitalista. Essa leitura pode ser ilustrada a partir de três dinâmicas: (i) da natureza do Estado como condensação material das relações de poder entre classes e frações de classe internas; (ii) do papel do Estado em garantir as condições materiais e institucionais para a reprodução do capital; (iii) do papel particular que os EUA exerceram no contexto de caos sistêmico internacional que caracterizava, então, o ocaso da hegemonia inglesa e a disputa inter-imperialista pela liderança do capitalismo global.

I

No que diz respeito às relações de poder nos EUA, a contribuição de Wilson foi em auxiliar na recomposição hegemônica da burguesia norte-americana. Diante de tensões entre o capital financeiro emergente e o capital produtivo industrial, entre elites locais e elites corporativas, e entre integração interna e a projeção de influência internacional, a centralização de poder no Executivo federal proporcionada por Wilson consolidou a capacidade do Estado em mediar e equilibrar interesses contraditórios. Ao assegurar a unidade política do bloco no poder, o Estado wilsoniano alinhava ações tanto para enfrentar o crescente movimento operário, como para firmar posição na política externa por meio de uma transnacionalização regulada.

Wilson aparece como um dos arquitetos do Estado ampliado do século XX, em sua manifestação imperialista e além, sobretudo ao combinar coerção econômica, direção ideológica e legitimidade moral sob a aparência de um projeto civilizatório. Primeiro para dentro, mas também para fora. Nesse sentido, Wilson contribuiu para que o Estado assumisse uma posição de autonomia relativa, firmando defesa dos interesses gerais da acumulação capitalista, mesmo quando em contradição com aspirações particulares, transitórias e conjunturais de frações da burguesia.

II

Ainda assim o Estado não é uma entidade autônoma, mas uma forma social derivada das contradições da acumulação capitalista, com funções diretas na reprodução de capital. A centralização de poder no Executivo, assim como a burocratização administrativa promovidas por Woodrow Wilson, constituíram mecanismos de racionalização do Estado burguês, concebido como instância funcional da acumulação ampliada. Estado grande, liderança presidencial federalizada, agências tecnocráticas, tudo aquilo subsidiava a grande empresa, o consumo de massa, a formação do complexo industrial militar e a internacionalização de capital.

Dessa maneira, o projeto de Woodrow Wilson operou adicionalmente como resposta orgânica à crise de legitimação e de acumulação que se desenvolve no último quartel do século XIX. Crise a qual caracterizava a transição capitalismo concorrencial de liderança inglesa para o capitalismo monopolista a partir dos EUA. A retórica moralista do “livre comércio”, “autodeterminação”, e “democracia global” expressava, em linguagem jurídico-política, a necessidade estrutural de reorganizar as condições de reprodução do capital.

III

Aquela crise sinalizadora, no último quartel do século XIX, anunciava o início do fim da liderança inglesa sobre o capitalismo global (descenso que se consolidaria após a crise de 1929). O vinculo orgânico entre a pequena firma capitalista individual e um Estado concorrencial liberal exauria sua vantagem competitiva à medida em que a industrialização e as instituições burguesas se espalhavam pela Europa e Américas. A emersão de players com escala para rivalizar no plano global — Alemanha, França, EUA — empurrava o mundo capitalista para um contexto que Giovanni Arrighi chamou de “caos sistêmico internacional”.

Naquele momento histórico, os EUA já avançavam na montagem de uma capacidade industrial sem precedentes sob a configuração da grande empresa capitalista. No entanto, para que a organização empresarial verticalmente integrada pudesse efetivamente se apresentar como alternativa de ganhos extraordinários para o capital circulante internacional, necessitava de uma forma-Estado, um aparato superestrutural à altura. Essa perspectiva se materializou na proposta de Wilson: Estado centralizado, profissionalizado, munido de agências especialistas, capaz de intervenção econômica e controle social amplo, bem como pronto para oferecer subsídio institucional e financeiro para a consolidação de empresas de porte extraordinário.

Em última instância, o Estado wilsoniano tratou de consolidar esforços da acumulação em torno dos setores mais dinâmicos, assim como em favor na nova estrutura de formação e realização de mais-valor materializada na grande empresa de alcance nacional. Os aparatos regulatórios e de proteção a partir do Estado, de um lado proporcionariam legitimidade, de outro uma base previsível de ordenamento institucional para a tomada de decisão. Pacificação dos interesses das frações capitalistas, estruturação de um Estado ajustado para a grande empresa e projeção dos EUA como liderança do capitalismo mundial, dando início a um novo ciclo sistêmico de acumulação, são talvez as principais consequências associadas ao projeto político e econômico de Woodrow Wilson.

O chamado “século americano” emerge daquele contexto como fase superior da forma-Estado capitalista, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, caracterizado: pela internacionalização institucional de seus mecanismos de dominação; pela presença militar em escala global, mas sem exercer arbítrio direto sobre diferentes nações; e pela onipresença da grande empresa transnacional. Wilson, de certa forma, antecipa a transformação do Estado nacional em um “Estado ampliado”, que combina regulação interna e governança global. Assim, o legado de Woodrow Wilson não se apresenta apenas político, mas ontológico: seu projeto ajuda a redefinir o Estado como forma funcional do capital em escala mundial.

Referências

Arrighi, Giovanni (1996). O Longo Século XX: Dinheiro, Poder e as Origens de Nosso Tempo (Trad.: V. Ribeiro). São Paulo: Editora Unesp; Contraponto.

Hirsch, Joachim (2010). Teoria Materialista do Estado: Processos de Transformação do Sistema Capitalista de Estado (Trad.: L. C. Martorano). Rio de Janeiro: Revan.

Nasser, Reginaldo M. (2013). Woodrow Wilson e a idéia de ordem hemisférica. Cena Internacional, 8(2), 9-28.

Poulantzas, Nicos (2000). O Estado, O Poder, O Socialismo (Trad.: R. Lima. 4ª ed). São Paulo: Paz & Terra.

Wilson, Woodrow (1908). Constitutional Government in the United States. New York: The Columbia Universiy Press.

Wilson, Woodrow (1913). The New Freedom: A Call for The Emancipation of The Generous Energies of a People. New York: Doubleday, Page & Company.

Wilson, Woodrow (2005 [1946]). O estudo da administração. Revista do Serviço Público, 56(3), 349-366.


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