A administração segundo uma lógica burocrática exerce papel central na sociologia weberiana, sobretudo no que concerne a abordagem do estado capitalista realizada pelo sociológico alemão. O que se compreende por teoria da burocracia em Weber não se assemelha a um modelo organizacional, mas sim aparece como expressão do processo histórico de racionalização. Diferentemente de Hegel, para quem a história remonta ao devir finalístico no qual o Espírito Absoluto toma consciência de si mesmo por meio e na forma da Razão, Max Weber parte da noção de que a racionalização é reflexo da dinâmica secular de desencantamento do mundo. Desencantamento este que se realiza no desenvolvimento científico.
Pedra angular da civilização capitalista, a administração burocrática funciona como a articulação de fatores de produção e tecnologias por intermédio do emprego de métodos científicos. Nesse sentido, na sociologia weberiana a administração burocrática expressa a dinâmica de racionalização em termos de ordenamento das relações sociais sob a égide exclusiva dos objetivos, com implicações políticas, econômicas, organizacionais e mesmo psicossociais. Nesse escrito, toma-se por objetivo, portanto, refletir acerca da relação entre o Estado capitalista e a administração burocrática em Weber. A partir daqui esse trabalho se divide em quatro seções: (1) uma discussão dos conceitos e da relação entre burocracia e capitalismo na perspectiva weberiana; na sequência, uma (2) exposição de três dos fundamentos de análise weberiana que são funcionais para esse debate, notadamente racionalização, tipos legítimos de dominação e tipos ideais; para então se estabelecer uma (3) caracterização das categorias explicativas do tipo ideal burocrático, segundo Weber; por fim, breves (4) notas sobre personalidade burocrática e administração do Estado.
1. Burocracia e Capitalismo
Administração burocrática e Estado formam, em Weber, uma totalidade, fruto do capitalismo. Max Weber toma o cuidado, em sua caracterização, de não reduzir capitalismo à ganância ou mera compulsão por acumulação. Em seus trabalhos, a sociologia das relações econômicas goza de status central, na medida em que a compreensão das sociedades ocidentais não poderia se furtar de abarcar a estruturas e relações de produção e distribuição de riqueza. No entanto, diferentemente da perspectiva marxista, aos quais é atribuído uma tendência de superestimar a determinação do econômico sobre o social e simbólico, Weber abordava o capitalismo de maneira compreensiva, como um processo paralela e complexamente econômico, simbólico, relacional, cultural e mesmo religioso.
O capitalismo em Weber é a busca sistemática e metódica por um ganho, ou lucro, continuamente renovado, por meio do arranjo de forças produtivas segundo uma ordem calculista. O cerne do capitalismo seria a racionalidade, manifesta no cômputo de capital e custos, na capacidade de contabilizar fatores segundo o objetivo da valorização e acumulação de riqueza. Nesse sentido, o capitalismo é uma dinâmica política, de formação de poder, que se expressa materialmente numa ordem econômica e organizacional, complicações sociológicas.
Essa organização econômica racional depende de precondições sociais e institucionais específicas para se estabelecer, como a separação entre patrimônio da empresa e doméstico, a existência de trabalho formalmente libre (que pode ser contratado e contabilizado como custo) e a aplicação de tecnologia de forma científica e sistemática para obtenção de eficiência. Entre processos históricos e condições materiais, Weber destaca a formação de um “espírito capitalista” que estaria, de certa forma, vinculado ao conjunto de valores protestantes: uma ética de trabalho disciplinada e ascética, na qual o labor é visto como uma vocação e o reinvestimento do lucro, em vez do consumo conspícuo, um imperativo moral.
A ordem econômica capitalista, para se viabilizar, depende de um aparato administrativo. As burocracias — em Weber, notadamente exemplificadas pelo Estado moderno e pelas empresas — são estruturas de relações sociais, teleológicas (ou seja, governadas por, ou para, uma finalidade), dedicadas ao ordenamento racional do trabalho. A função do aparato burocrático é, em última instância, proporcionar a previsibilidade necessária para o cálculo e a racionalidade do capital. Nesse sentido, entre capitalismo e burocracia se dá uma relação de “afinidade eletiva”, na medida em que um fortalece o outro.
São quatro as maneiras por meio das quais a burocracia exerce sua função estabilizadora:
- Cria um ordenamento jurídico racional, fundamenta em leis abstratas e regras fixas, que mantém as ações do Estado previsíveis. Assim, empresários podem investir e planejar a longo prazo, pois que contratos serão honrados, direitos de propriedade protegidos e mesmo impostos obedecerão a normas claras, não o arbítrio incerto de um autocrata.
- Garante impessoalidade, na medida em que age sine ira et studio (sem ira nem paixão), aplicando as mesmas regras a todos. Dessa maneira minimiza clientelismo e o favoritismo típico de sistemas patrimoniais, criando um ambiente de concorrência formalmente equitativo, ou ao menos governando segundo forças/leis impessoais do mercado.
- Centraliza a administração, ao unificar sistema monetário, padrões de pesos e medidas, leis de regulação das relações de trabalho, convenções comerciais e transacionais, assim como de informações etc.
- Monopoliza o uso da força, de um lado pacificando o território e coibindo o recurso à violência como alternativa de resolução de conflitos de interesses, de outro, firmando a segurança patrimonial das transações e a integridade física de pessoas e ativos.
Pode-se afirmar, portanto, que a burocracia funciona como um invólucro organizacional que confere ao capitalismo estabilidade e previsibilidade institucional para que possa se desenvolver.
2. Fundamentos da análise weberiana
Antes de se enveredar por uma aproximação com a teoria da burocracia em Weber, é necessária uma breve reflexão sobre algum dos pontos fundamentais de sua sociologia. Aqui, especificamente, contribuem as noções de tipo ideal, tipos legítimos de dominação e processo de racionalização.
Na sociologia weberiana, a noção de TIPO IDEAL funciona como um recurso metodológico. O tipo ideal funciona como uma construção conceitual unívoca — dotada de uma explicação única e pretensamente livre de ambiguidade — que acentua certas características de um fenômeno social para fins de análise comparativa. Descrito sob um conjunto de dimensões prévias, o tipo ideal pode ser utilizado como uma referência analítica, a fim de mensurar e compreender uma ocorrência singular e histórica (empírica, por assim dizer) em termos de sua aproximação ou distanciamento com aquele modelo puro.
Um tipo ideal não deve ser visto como um modelo prescritivo — portanto, não há em Weber uma sugestão de como uma burocracia deveria se comportar, por exemplo —; tampouco se trata de uma descrição exaustiva da realidade (não descreve organizações existentes ou estudos de caso). Os tipos ideais funcionam como balizas explicativas, não como médias, nem exemplos, nem muito menos abstrações, mas como padrões de funcionamento ideal.
Para compreender capitalismo, por extensão a administração burocrática, faz-se necessário entender o compromisso de legitimidade da sociedade capitalista, nos termos de uma dominação por intermédio da razão. Weber descreve a dominação como a maneira por meio da qual se obtém concordância com um desígnio específico, por parte de um indivíduo ou grupo social. A obediência a uma ordem decorre, por sua vez, de uma amálgama de exercício de força (violência) e convencimento (aquiescência), subsidiada pela percepção, por parte de quem segue, da legitimidade de quem promulga o comando. São identificados pelo autor três TIPOS IDEAIS DE DOMINAÇÃO LEGÍTIMA — carismática, tradicional e racional-legal —, cada qual suportada por um aparato administrativo específico.
A dominação carismática se fundamenta na devoção, por parte de um grupo, a um indivíduo que apresenta qualidades excepcionais, em diálogo com o arcabouço simbólico partilhado por aquele coletivo como exemplo de virtude. Santidade, heroísmo, eloquência, ordenações reveladas em comunhão com o divino, funcionam como substância para a legitimação da liderança nesse caso. O aparato administrativo se forma por discípulos e seguidores, escolhidos por sua afinidade com o líder. Normalmente esse aparato carece de hierarquia formal, carreira ou competências técnicas definidas. Trata-se de uma forma de poder muito dependente do carisma, por isso inerentemente instável, quer internamente, quer no âmbito sucessório.
Por sua vez, a dominação tradicional está baseada na crença de virtude das tradições estabelecidas por um coletivo, assim como na percepção de que aqueles que ocupam o poder refletem legitimamente os valores e princípios tradicionais. Numa estrutura tradicional, o quadro administrativo é composto por indivíduos na posição de compromisso de lealdade para com o líder. Os cargos são outorgados para reforçar tais compromissos (prebendas), enquanto que a lealdade pessoal suplanta a competência técnica, mérito ou esforço.
Já a dominação racional-legal se assenta no compromisso para com a capacidade de ordenamentos estatuídos, assim como o direito, em prover o interesse coletivo. Nesse sentido, são legítimos aqueles que, por meio dessas regras, são designados ao exercício da liderança. A obediência não devido a um particular, independente de suas qualidades ou vícios, mas sim a um ordenamento impessoal. É nesse contexto de dominação que a burocracia encontra sua expressão mais pura. Nesse caso, o aparato administrativo é composto por funcionários especializados, nomeados com base na competência, os quais operam segundo regras formais e explícitas.
Em resumo, a legitimidade da dominação carismática repousa sobre o líder, sobre sua capacidade de encantamento coletivo. A legitimidade da dominação tradicional deriva dos costumes arraigados que se perpetuam historicamente moldando relações sociais. E a legitimidade na dominação racional-legal se ergue de um conjunto de leis formais, impessoais e públicas, percebidas pelo coletivo como capazes de proporcionar seus interesses e aspirações.
Por conseguinte, cumpre discutir a dinâmica de RACIONALIZAÇÃO que, segundo Weber, culmina nas sociedades ocidentais capitalistas. Pode-se afirmar que a noção de racionalização representa, no edifício sociológico de Max Weber, um papel estrutural. Racionalização refere-se ao processo histórico, alegadamente sui generis do mundo ocidental, por meio do qual a vida social, antes guiada pela tradição, religião e magia, passa gradativamente a ser organizada com base em cálculo, eficiência, previsibilidade e controle.
Antes a compreensão de mundo dependia da exposição à forças e humores afins do nível do imponderável — deuses, magia, costume, eclesiástica — e, portanto, à uma realidade fantástica da qual quase nada se compreendia objetivamente acerca dos mecanismos de funcionamento. Porém, por meio da ciência e da razão, de acordo com Weber, o mundo foi gradativamente se tornando conhecido, a compreensão acerca da realidade foi se desgarrando das narrativas sobrenaturais, desencantando a relação homem-natureza. Na medida em que as explicações acerca do funcionamento dos fenômenos naturais foi se avolumando, produzindo efeitos práticos, bens tecnológicos, comodidades concretas, as sociedades humanas foram se racionalizando.
A burocracia é, para Weber, a manifestação organizacional por excelência desse processo de “desencantamento do mundo”, por meio do qual a lógica instrumental e a racionalidade formal passaram a se sobrepor a outras formas de pensamento e ação social. A racionalidade em Weber não é unidimensional, mas sim um fenômeno multifacetado que se manifesta em diferentes matizes. Ao estudar o trabalho no sociológico alemão com o objetivo de compreender sua concepção de burocracia, normalmente se concentra em duas mais importantes: (1) a esfera da ação social — o substrato de comportamento e motivação dos indivíduos —; e (2) a esfera dos sistemas sociais, das lógicas de funcionando das ordens coletivas, tais quais o direito, a economia etc.
Uma ação social pode ser racional (i) em relação aos fins (se justifica ao gerar um efeito) ou (ii) em relação a valores (se justifica ao manejar um princípio de julgamento). No âmbito de um sistema social, essas diferentes atitudes se manifestam como: (iii) racionalidade formal (ou instrumental), a qual se materializa na padronização de regras, previsibilidade de condutas, mecanismos de ajudes e de controle; trata-se de uma racionalidade voltada para a eficiência, mensurabilidade objetiva e impessoalidade das decisões administrativas. Por sua vez, uma (iv) racionalidade substantiva se orienta segundo valores, finalidades outras, éticas, políticas religiosas; compreende o ajuste da ação a um arcabouço moral, ético ou axiológico (justiça social, equidade, solidariedade).
Segundo Weber, a tensão central da modernidade, ou melhor, da sociabilidade capitalista, decorre da hipertrofia da racionalidade formal. Na medida em que o cálculo de objetivos suplanta o critério de valores, a ação racional produz efeitos irracionais, como, por exemplo, a contração do salário que dilapida a capacidade de consumo, ou a demissão que redunda em sofrimento, insegurança e desestabilização social. Num certo sentido, o ápice da racionalização tende à irracionalidade.
3. Categorias Explicativas do Tipo Ideal Burocrático
O tipo ideal de burocracia em Weber é uma construção teórico-analítica voltada para a compreensão de como dominação racional-legal que caracteriza a modernidade se manifesta em termos organizacionais. Trata-se de um modelo de referência, composto por um conjunto de atributos interdependentes que asseguram uma pretensa superioridade técnica da racionalidade formal/instrumental. Sobretudo em termos de eficiência, precisão, previsibilidade das ações administrativas e controle. Os atributos do tipo ideal de burocracia, segundo descritos por Weber, podem ser resumidos como: (i) impessoalidade; (ii) formalidade; (iii) profissionalismo.
A impessoalidade é o princípio segundo o qual as relações dentro da burocracia, assim como entre a burocracia e o público, devem se basear nas regras e competências dos cargos, não em vínculos pessoais, simpatia ou interesses privados. Dessa forma, assegura-se (a) igualdade formal entre indivíduos e situações, tratados, portanto, de maneira uniforme; (b) previsibilidade das decisões, que seguem um padrão uniforme segundo critérios claros; (c) proteção contra favoritismos.
Essa impessoalidade depende da existência de um conjunto de regras explícitas, claras, objetivas, estáveis e de conhecimento público. Toda a atividade administrativa deve estar regulada por normas escritas e procedimentos definidos, assim como materializada em ações documentadas. O formalismo se manifesta no predomínio da escrita, ensejando: (a) clareza e precisão; (b) controle e fiscalização; assim como (c) continuidade administrativa, na medida em que a memória organizacional se apóia num rol de procedimentos e decisões documentadas.
Por sua vez, o profissionalismo ressalta a preeminência da decisão assistida por competência técnica. O atributo profissionalista das burocracias se expressa como: (a) estrutura escalonada de hierarquia funcional, que garante que as ações serão supervisionadas; (b) requisito de competência técnica para ocupação de uma função, o que também confere legitimidade ao poder na estrutura burocrática; (c) divisão do trabalho, atribuições fixas e especialização; (d) investidura de poder e competência ao cargo, à função, não à pessoa que o ocupa.
É preciso reafirmar que essa construção metodológica, o tipo ideal de burocracia, não deve ser assimilada como uma prescrição, mas sim como modelo de comparação. Nesse sentido, alguns trabalhos posteriores aos de Weber procuraram fazer esse esforço comparativo, proporcionando análises críticas das burocracias concretas, tanto no sentido de revelar (i) disfunções das burocracias, como criticar (ii) efeitos sociais de sua hegemonia. Pesquisas como as de Amitai Etzioni, William Roth, Phillip Selznick e Robert Meton, são exemplos já bastante conhecidos desses esforços.
Etzioni propôs uma “teoria da conformidade”, analisando organizações a partir de duas variáveis principais: (i) tipos de poder utilizados pela liderança (coercitivo, remunerativo e normativo) e os tipos de envolvimento dos participantes (alienatório, calculista e moral). A descrição weberiana de burocracia se encaixaria num modelo de poder remunerativo (por meio de salários e promoções), que gera envolvimento calculista por parte dos colaboradores. Adicionalmente, Etzioni evidencia as tensões inerentes à estrutura burocrática, especialmente o conflito inescapável entre as necessidades da organização (disciplina, controle, eficiência etc.) e as necessidades da personalidade humana (autonomia, criatividade, satisfação, entre outras).
Por sua vez, William Roth partiu da premissa de que as burocracias tais quais descritas segundo o tipo ideal weberiano seriam inerentemente rígidas e, portanto, representavam um entrave à inovação e eficácia. Sobretudo em contextos sociotécnicos de maior complexidade ou tendendo a mudanças. Roth argumentou que a estrita aderência à regras fixas, comunicação verticalizada e hierarquia rígida — características por ele consideradas típicas das burocracias — impediriam que organizações aprendessem com seus equívocos, diminuindo sua capacidade adaptativa. Muito embora as burocracias pudessem ser eficientes em ambientes estáveis, seriam invariavelmente desafiadas em contextos mais dinâmicos.
Já Phillip Selznick ressalta que burocracias, mesmo sendo concebidas como tecnologias sociais de racionalização de processos, sofrem influencias de dinâmicas sociais, políticas e culturais, tanto internas como externas. Tais dinâmicas redundariam em adaptações de práticas e processos de gestão que, em última instância, proporcionariam um “deslocamento de objetivos”. Selznick ainda sugere que organizações burocráticas passam por um processo de “institucionalização”, como que assumindo um conjunto de valores para além da eficiência técnica. Num sentido geral, as burocracias seriam construtos sociais de significados, lealdades e normas, terminando por assumir papéis simbólicos na sociedade capitalista.
Por fim, o trabalho de Robert Merton focalizou o quando as características estruturais das burocracias — impessoalidade, formalismo, profissionalismo — teriam o potencial de gerar consequências opostas à racionalização. Para Merton, a excessiva internalização das normas e procedimentos levaria burocratas a desenvolver uma “personalidade ritualista”, para a qual o cumprimento das regras passa a ser um fim em si mesmo. Isso resultaria em rigidez, resistência à mudança e desumanização das relações de trabalho e para com o público. Merton produz uma longa lista de disfunções burocráticas, em consequências das quais as burocracias falhariam em atingir seus objetivos de forma eficaz.
4. Sobre a Personalidade Burocrática e o Estado
Engana-se, porém, que Weber ignorou os efeitos comportamentais da convivência em organizações burocráticas. Em sua exposição, sugere-se que o tipo de indivíduo que emerge da burocracia moderna é produto de um processo estruturante de racionalização de conduta. Esse sujeito seria moldado pela lógica de disciplina na obediência formal e neutralidade emocional, características que decorrem diretamente da racionalidade instrumental. O burocrata, treinado para agir de modo impessoal e previsível, subordinando o julgamento pessoal e os valores substantivos à regras e procedimentos da organização, certamente incorreria em ações disfuncionais.
Do ponto de vista comportamental, esse tipo humano tenderia a internalizar o dever e o controle como princípios morais. A obediência, nesse caso, se transforma em hábito; a conformidade em virtude. A racionalidade formal passaria a exigir a supressão de afetos e convicções, engendrando uma personalidade metódica, calculista e emocionalmente contida. Weber descreve esse processo como a formação de uma “gaiola de ferro”, na qual o indivíduo em particular — e, por extensão, toda a sociedade em geral — se encontra aprisionado pela própria racionalidade que deveria libertá-lo. O resultado é um agente eficiente, mas desprovido de autonomia moral e criatividade, um “especialista sem espírito” e um “hedonista sem coração”.
Micropoliticamente, esse indivíduo atua com previsibilidade e lealdade organizacional, assegurando a estabilidade e a continuidade do sistema burocrático. Entretanto, em escala social, a multiplicação desse tipo de personalidade tende a ensejar uma sociedade regida pela obediência e pelo formalismo, na qual o valor da ação é medido por sua adequação técnica, não por seu sentido moral. Assim, a burocracia produz o indivíduo ideal para seu funcionamento — eficiente, disciplinado, racional —, mas também um sujeito alienado, incapaz de transcender o próprio sistema que o forma.
Na administração burocrática do Estado, o predomínio desse tipo de indivíduo — disciplinado, tecnicamente competente e emocionalmente neutro — tem o potencial de produzir um aparato administrativo altamente eficiente, previsível e estável, mas também rigidamente formalista. A internalização da obediência e do dever assegura a continuidade das rotinas e a execução impessoal das normas, reduzindo a arbitrariedade pessoal e fortalecendo a racionalidade legal. Contudo, esse mesmo traço psicológico gera o risco de inércia e alienação institucional: a burocracia tende a transformar os meios — regras, procedimentos, controle — em finalidades. O resultado pode ser um Estado administrativamente eficaz, porém limitado em sua capacidade de inovação e sensibilidade social; no qual a racionalidade técnica suplanta o juízo político e moral.
Considerações Finais
Max Weber, em seu esforço para compreender a sociedade contemporânea — de seu tempo, é preciso destacar — enxergou nas burocracias o elemento estruturante das relações, quer materiais, simbólicas, políticas, entre outras. Na relação de troca recíproca, dialógica poder-se-ia dizer, entre administração burocrática e capitalismo, Weber identifica o próprio sentido da modernidade: controle, previsibilidade, ordem. Não expressa, porém, esse sentido de maneira apologética, mas sim como traços de uma dissonância latente e crescente, entre a totalidade substantiva do ser social e a aridez cognitiva da racionalidade instrumental das organizações burocráticas.
Essa dissonância, que aparece aqui e ali como as “disfunções” de Merton, os “deslocamentos de objetivos” segundo Selznick, ou mesmo o “mal-estar” em Freud, projeta no trabalho de Weber uma sombra soturna. Nem liberalismo, nem revolução socialista, nada parece poder escapar da apostasia da razão, exceto talvez uma improvável reorientação de valores com ênfase na racionalidade substantiva e, talvez, um novo horizonte de sentido. Weber, porém, não coloca essa possibilidade em decorrência teórica, mas sobretudo como uma débil esperança. O processo de racionalização e desencantamento do mundo tenderia, segundo seus escritos, a se intensificar.
Quem imaginaria que, no século XXI, estaríamos vivendo o pior de dois mundos?
Referências
Mommsen, W. J. (2021). The Age of Capitalism and Bureaucracy: Perspectives on the Political Sociology of Max Weber (2ª ed). New York, US; Oxford, UK: Berghahn.
Motta, F. C. P. (2010). O Que é Burocracia. São Paulo: Brasiliense.
Weber, M. (2000). Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva (Trad.: R. Barbosa; K. E. Barbosa. 2ª ed.). Brasília, DF: Editora UNB.
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