Eles acreditam mesmo naquilo? Missão, visão e valores como dispositivo discursivo[1]


[1] Texto elaborado em novembro de 2025, como parte das referências para o curso Gestão Estratégica, disciplina obrigatória do Bacharelado em Administração da UFGD.

No mundo dos negócios, adotar declarações de missão, visão e valores (MVV) — as assim chamadas “diretrizes estratégicas” (Lobato et al, 2009, p. 61) — pode ser considerado praxe. Livros-texto de formação em administração estratégica quase sempre arrolam as MVV entre seus temas, assim como empresas de variados portes frequentemente encontram espaços em suas peças de comunicação, relatórios e sítios na internet para listar onde pretendem chegar, seus propósitos idealizados na vida social, bem como que marcadores de comportamento moral serviriam de balizas para suas ações. Mais que meros construtos enganosos, as diretrizes estratégicas cumprem funções no plano ideológico do modo de produção capitalista.

De um lado, sim, missão, visão e valores operam como um tipo de véu para ocultar as nuances de exploração subjacentes às relações capitalistas de produção. Nesse sentido, ocultam as contradições da luta de classes, firmam como consenso a opinião (e interesses) das frações dominantes, além de mitigar os efeitos negativos da alienação na produtividade do trabalho. No entanto, para além dessas funções mais objetivas, as MVV aparecem na sociedade burguesa como tecnologias discursivas de poder, produzindo ativamente a realidade na qual as empresas transitam, enquanto desenham as condições e propriedades da vida subjetiva não apenas dos trabalhadores, mas de todos os atores sociais que as orbitam.

As MVV, portanto, não apenas mentem sobre o funcionamento das empresas e do capitalismo, mas constroem e elaboram uma realidade ao redor desses processos; uma realidade na qual suas contradições não sejam apenas toleradas, mas consideradas como fonte incontestável da razão, ou mesmo a Razão em si.

Na medida em que, segundo Foucault (1979), o poder não corresponde necessariamente a um estoque, mas a uma dinâmica de exercício constante de influência em redes relacionais difusas, as MVV podem ser consideradas um mecanismo político. Poder deriva da capacidade de costurar verdades, papéis e posturas, ao mesmo tempo em que se desenham dispositivos sutis de enquadramento e disciplina que não emergem exclusivamente da força de quem impõe, mas também da aquiescência, concordância e mesmo luxúria de quem se integra.

No mundo dos negócios, os valores aparecem como dispositivos discursivos que comunicam para o coletivo de trabalho o que se espera por performance, por meio do que se pode alcançar pertencimento, obter acesso e prazeres. Assim, firmam características do bom funcionário — com valores elevados, expectativas performáticas e limites implícitos —, enquanto insidiosamente estabelecem a autodisciplina e a vigilância de si como padrões mínimos de adesão. Esses padrões então tem o potencial constituir, ou atrair, corpos funcionais dóceis, que não apenas obedecem, mas desejam se conformar aos padrões. Dessa forma, a missão pode se tornar parte estruturante da subjetividade do ser funcionário, enquanto a visão opera como uma norma que julga a insuficiência desse ser e a necessidade constante de mais performance. As MVV funcionam, portanto, como um regime de verdade, de um conjunto de verdades funcionais no âmbito das relações intrafirma.

As declarações de missão, visão e valores (MVV) funcionam como uma micronarrativa, um encadeamento quasi lógico de significados e significantes que conferem valor e representam a realidade num sentido particular. Assim, tem o potencial de unificar as interpretações alternativas daquele contexto de relações em um script controlado, segundo os interesses das frações no poder. Ao impor uma única história, a do sucesso corporativo, à uma realidade que concretamente subsiste eivada por histórias diversas, fragmentadas e contraditórias — do funcionário com burnout, do cliente insatisfeito, do impacto ambiental negativo, do assédio abafado entre machismo e misoginia, entre tantas —, simplifica essa realidade, fantasia papéis e ressignifica subjetividades ali implicadas. De um lado, silencia vozes contrárias, de outro, produz um padrão de relações que reforçam seus objetivos e interesses.

Ora, como Jacques Derrida (1991) permite inferir, um texto quase nunca se amarra a um significado fixo, mas sim é delimitado pelo que exclui, por suas fronteiras. Os valores, parte componentes das diretrizes estratégicas, se constituem como o que se conhece por “significantes flutuantes” ou “vazios”. Palavras como “excelência”, “integridade”, “sustentabilidade” e “respeito” são intencionalmente vagas. Elas não têm um significado concreto, pois sua função não é significar, mas funcionar. Assim, “integridade” não quer dizer de fato uma verdade moral, mas sim destaca que a gestão tem o poder de decidir qual o critério de integridade no contexto da firma: geralmente, um imperativo de “não agir contra o interesse da empresa” ou “não criticar a gestão”, mesmo que gestão e empresa se encontrem comprometidas com práticas ilegais ou abusivas.

A amplitude dos valores se percebe, portanto, não necessariamente no que se diz, mas mais explicitamente naquilo que fica de fora. O que foi excluído grita por detrás do dito; se o valor é “agilidade”, o que está sendo reprimido? “Reflexão”, “cautela”, “temperança”, “ponderação”, tudo aquilo que é sacrificado em nome da agilidade; da mesma forma, se o valor é “foco no cliente”, o que está sendo marginalizado? Pode ser “foco no bem-estar do funcionário” ou “foco nos limites naturais do planeta”, tudo aquilo que importa menos que “o cliente” — mesmo que “cliente” não seja o foco de verdade, mas sobretudo o que o cliente possui, seu tempo de vida convertido em meio de circulação, em dinheiro. Como isso não pode ser dito diretamente — afinal, não é de bom tom dizer “destruiremos a natureza, assediaremos trabalhadores e utilizaremos racismo, misoginia e xenofobia para reduzir o valor do trabalho e lucrar mais” —, diz-se algo como “criar valor para os acionistas”.

Por sua vez, a missão se reveste do poder de estabelecer um rol estruturado de suposições de causalidade e funcionamento de mundo, na forma de signos e símbolos (simulacros) de dissimulação que tomam o lugar da própria realidade. Dessa maneira, os atores se comportam e respondem a estímulos dentro dessa narrativa hiper-real, como se a realidade em si. Tal qual afirma Jean Baudrillard (1991), “a simulação […] é a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real.” (p. 8) e “assim, vivemos por toda a parte num universo estranhamente semelhante ao original — as coisas são aí dobradas pelo seu próprio cenário.” (p. 20).

As MVV aparecem como um simulacro perfeito. A empresa não precisa ser de fato ética; ela só precisa ter um valor chamado “ética” e agir da maneira que quiser, não importa, já que a declaração de valor substitui a prática, simula uma realidade preferível, programável, controlável. Uma companhia de negócios pode destruir rios — o que corresponde à realidade concreta do Rio Doce depois das ações da Vale —, mas, se seu compromisso é que “na Vale, a preocupação com o meio ambiente está presente em todos os nossos projetos e operações ao redor do mundo”, o simulacro materializado na declaração torna-se mais real do que o próprio rio obliterado. As MVV não são um mapa do território empresarial; elas são uma representação cartográfica que toma o lugar e substitui o território.

O que se pode afirmar em síntese é que a função das MVV é performativa: são atos de fala que, ao serem enunciados, produzem a realidade que nomeiam; se não de forma concreta, pelo menos no que concerne a estruturação das relações sociais necessárias para assegurar os interesses e poderes das frações dominantes. As declarações de missão, visão e valores então se constituem como dispositivos de poder que produzem subjetividades, disciplinam comportamentos e substituem a complexidade caótica da vida organizacional por um simulacro limpo, ordenado e, acima de tudo, controlável. Uma construção hiper-real na qual o modus operandi empresarial, capitalista, não apenas se justifica, mas se desloca até a posição de referência racional, moral e ética de forma incontestável.

Referências

Baudrillard, Jean (1991). Simulacros e simulação (Trad.: M. J. da C. Pereira). Lisboa: Relógio d’Água.

Derrida, Jacques (1991). Margens da filosofia (Trad.: J. T. Costa & A. M. Magalhães). Campinas, SP: Papirus.

Foucault, Michel (1979). Microfísica do poder (Trad.: R. Machado). Rio de Janeiro: Edições Graal.

Lyotard, Jean-François (2009). A condição pós-moderna (Trad.: R. C. Barbosa. 12. Ed.). Rio de Janeiro: José Olympio.

Lobato, David M., Moysés Filho, Jamil, Torres, Maria Cândida S. & Rodrigues, Murilo R. A. (2009). Estratégia de empresas (9. Ed.). Rio de Janeiro: Editora FGV.


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