[1] Texto elaborado em novembro de 2025, como parte das referências para o curso Gestão Estratégica, disciplina obrigatória do Bacharelado em Administração da UFGD.
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As diretrizes estratégicas são institutos organizacionais cuja adoção é ensinada nos programas de treinamento de negócios como etapa da formulação de estratégias empresariais. Na maior parte das referências aparecem como imperativo: é preciso que empresas elaborem declarações de visão, missão, propósitos e valores organizacionais, pois firma-se assim um sentido lógico para a gestão. Teoricamente, essas diretrizes teriam o poder de unificar trabalhadores e trabalhadoras, incutir comprometimento e motivação, bem como proporcionar convergência de ações e interesses dentro da organização. Não por acaso, grande parte das empresas divulgam, por meios oficiais, declarações formais de visão, missão, valores, ou afirmações equivalentes com nomenclaturas alternativas.
“Criar os melhores produtos do mundo e deixar o mundo melhor do que o encontramos” é a visão de futuro da Apple, empresa mais admirada em 2025 segundo a Revista Forbes. “Democratizar a iA [inteligência artificial], tornando-a acessível e benéfica para todos” projeta oficialmente a Microsoft. Por sua vez, a visão de “ser a empresa mais centrada no cliente do planeta”, segundo a Amazon de Jeff Bezos, carrega um tanto de ambiguidade, já que um parasita pode muito bem ser absolutamente centrado no cliente. Vamos registrar pontos para a criatividade.[1]
À primeira vista, as declarações de visão e missão de empresas, assim como suas longas e criativas listas de valores corporativos, são um persistente caso de autoengano e representação ilusória. As mesmas empresas que sonegam impostos, fazem negócios com entidades criminosas, se utilizam de lobbying para corromper políticos, endossam discursos de ódio, comercializam produtos perigosos e estão constantemente sob escrutínio público devido a denúncias diversas de má-conduta, poluição, assédio, entre ilícitos os mais inventivos, ostentam belíssimas diretrizes estratégicas.
A Enron — empresa norte-americana do ramo de produção e distribuição de energia que, em 2001, derreteu vergonhosamente depois de um bilionário escândalo de fraude contábil — afirmava pretender “tornar-se a principal empresa de energia do mundo criando soluções de energia inovadoras e eficientes para economias em crescimento e um ambiente melhor em todo o mundo”, a partir de valores como “respeito”, “integridade”, “comunicação” e “excelência”.
A empresa de consultoria/auditoria Arthur Andersen era responsável por atestar a lisura dos registros da Enron. Foi processada e condenada por sua participação na maquiagem de declarações financeiras da empresa que auditava e para qual prestava consultoria. Não por acaso a Arthur Andersen entrou em colapso e deixou de existir em 2002. Seus valores corporativos? “Integridade e ética”, “paixão pela excelência”, “liderança de mercado”. O negócio de consultoria da Arthur Andersen na verdade apenas mudou de nome, derivando a Accenture, que nos EUA já sofreu condenações por fraude em contratos com o governo federal.
A norte-americana Johnson & Johnson divulga um credo, o de “colocar as necessidades e o bem-estar das pessoas que serve em primeiro lugar”. No entanto isso não impediu que comercializasse por décadas talco infantil sabidamente contaminado com amianto, com devastadores efeitos cancerígenos. Está sendo condenada a pagar reparações em diversos processos: uma única ação nos EUA chega a montantes na ordem de mais de 50 bilhões de reais, fora petições em andamento por todo o mundo e acordos realizados em segredo.
A Vale, antiga estatal Vale do Rio Doce privatizada na década de 1990 por FHC, afirma que a companhia tem o papel de servir “[…] à sociedade ao gerar prosperidade para todos e cuidar do planeta. Por isso, nós existimos. Para melhorar a vida e transformar o futuro. Juntos”.
Em 2015 uma barragem com dejetos de mineração da Vale se rompeu em Mariana, MG, matando 19 pessoas e causando um desastre ambiental irreparável no Rio Doce (sim, o mesmo rio que originalmente batizava a empresa). Em 2019, uma barragem em Brumadinho, MG, se rompeu matando 272 pessoas e destruindo o Rio Paraopeba. Em ambos os casos, existem evidências de que a Vale tinha conhecimento prévio dos riscos e optou por não iniciar medidas preventivas, nem muito menos alertar as comunidades.
É longa a lista de corporações de negócios cujas práticas concretas se distanciam de suas diretrizes estratégicas. Custa crer que existam pessoas capazes de ler tais declarações sem desconfiança. Então, porque ainda hoje empresas gastam tempo e dinheiro para formulá-las e divulgá-las? Ademais, qual o motivo que essas práticas ainda são estudadas nos cursos de administração e outras ciências sociais aplicadas? Como se permitem compor o conteúdo de livros textos de formação em gestão como etapa necessária na formulação de estratégias? Afinal, alguém acredita naquilo?
As diretrizes estratégicas não são meramente mentiras escancaradas. Emergem como expressão de práticas efetivas. E, sim, refletem de fato as visões e missões das empresas, bem como seus valores. No entanto, não o fazem como registro de verdade objetiva, mas como expressão do que aquelas empresas pretendem, talvez, esconder, maquiar ou desviar a atenção.
A Amazon em 2021 expandiu sua visão para incluir compromissos nas relações de trabalho, afirmando pretender ser “a melhor empregadora do mundo” e “o lugar mais seguro para se trabalhar no mundo”. No entanto, a Amazon é conhecida mundialmente por pagar salários baixos, exigir longas horas sem adicionais, não incluir benefícios como planos de saúde, seguros ou alimentação, disseminar uma cultura de assédio moral no local de trabalho, realizar demissões em massa, bem como atuar de forma intimidadora e contundente para impedir quaisquer tentativas de organização sindical de trabalhadores. Sua visão sobre as relações de trabalho revela exatamente o que ela não é, não pretende ser e provavelmente opera para nunca alcançar.
A dialética das diretrizes estratégicas está no que aquelas declarações pretendem esconder. No ímpeto de tergiversar, as empresas se revelam.
Pode-se dizer que as diretrizes, enquanto declarações para o público externo, são manifestações fenomênicas de relações sociais concretas que não estão à mostra. Fenômeno, no sentido de algo que está em evidência à primeira vista, mas que esconde ao mesmo tempo que revela o que efetivamente acontece. Chamaremos o que está por detrás de “essência”. A essência das diretrizes estratégicas está nas relações sociais de produção, em liasons orientadas segundo o imperativo capitalista da valorização de capital. Escondida pelas diretrizes encontramos aquela compreensão sobre o mundo dos negócios que toda empresa evita divulgar abertamente: “faremos qualquer coisa por mais lucros”.
No plano da essência, pode-se inferir ao menos três funções simbólicas para as diretrizes estratégicas: ideológica, hegemônica e manipulatória.
Ideologicamente, as diretrizes tem o papel de ocultar o fato de que empresas são espaços de conflito, onde se trava todos os dias uma luta entre classes sociais e suas frações de interesses específicos. Essas declarações tentam descrever as organizações empresariais como coletivos de trabalho cujos esforços convergem para uma finalidade comum. Daí, acionistas, gestores, trabalhadores, comunidade do entorno, aparecem como que comprometidos entre si de maneira harmônica para o benefício compartilhado, mascarando o fato que esses tais “stakeholders” têm interesses estruturalmente divergentes e estão, na verdade, travando um debate, senão uma guerra, pela partilha da renda, valor e comunidades ali produzidas.
Ademais, a sustentação da hegemonia burguesa na sociedade capitalista funciona por meio de uma amálgama de coerção e consenso. Pois bem, as diretrizes estratégicas, ao veicular objetivos e propósitos contra os quais não se pode se posicionar diretamente — afinal, quem não quer uma “iA benéfica para todos”? —, assumem um papel no estabelecimento de consensos circunscritos aos interesses das frações capitalistas. Assim, empresários desejam que os trabalhadores internalizem as expectativas do capital expressas nas diretrizes, mesmo que evidentemente falaciosas, como parâmetros de controle auto infligido.
Também é preciso mencionar que as diretrizes estratégicas procuram se firmar como um tipo de antídoto para a alienação. Na medida em que no capitalismo trabalhadoras e trabalhadores não dominam o conhecimento completo sobre seu trabalho, nem o fruto de seu esforço, sequer seriam capazes de compreender o funcionamento da tecnologia por detrás de suas ocupações, encontram-se alienadas. Alienação que é objetiva, visto que trabalhadoras e trabalhadores efetivamente não são donas de seu próprio tempo, não controlam o uso de seus corpos e mentes durante a maior parte do dia; mas também subjetiva, visto que travam uma relação distanciada com aquilo que ocupa todo seu tempo e esforço, que é o produto do trabalho.
Alienação, por sua vez, se desdobra em estranhamento — trabalhadoras e trabalhadores não se enxergam identificadas com aquilo que produzem, daí tampouco com o que fazem, por fim estranham-se consigo mesmas — e reificação, ou seja, perda da compreensão da realidade de entorno como resultado de relações entre pessoas, de laços sociais.
“Reificação” é um termo derivado do latim “res”, que significa “coisa”, algo inanimado, sem vida ou personalidade, que pertence a, que é parte da propriedade de alguém que, por sua vez, possui efetivamente existência e personalidade plenas. “Reificação” significa “coisificação”, um conceito que explica a transformação de relações concretas entre pessoas para relações entre objetos, técnicas ou processos, os quais aparentam assumir autonomia e objetividade. Por exemplo, a burocratização — criação de regras de conduta entre cargos, visando profissionalismo, impessoalidade e formalidade — é uma construção reificada. Na organização burocrática, o que aparenta dominar, existir de maneira plena, não são as pessoas, mas as regras, hierarquia e cargos, que assumem protagonismo e centralidade.
Dessa maneira, trabalhadoras e trabalhadores são alienadas do produto que fazem, do processo de trabalho (que não controlam), de sua própria essência humana (criatividade) e de suas colegas (que se tornam concorrentes por vagas, bônus e promoções). A trabalhadora alienada, estranhada de si mesma, cujas relações são coisificadas, perde conexão de propósito com o trabalho. Daí, não encontra motivação, adoece mental e fisicamente, pode até dissociar, o que para o capitalista se expressa como perda de comprometimento e produtividade.
A formulação de diretrizes estratégicas são uma tentativa de mitigar os efeitos da alienação por meio do estabelecimento de um falso propósito. Se a jornada é exaustiva e mal remunerada, ao menos persegue-se uma visão de longo prazo que se apresenta como que para o benefício daquele coletivo. Se o trabalho parece moralmente questionável, produzindo efeitos negativos no meio ambiente natural ou comunidade, está-se fazendo em nome de uma missão social que é positiva e nobre. Se a organização perpetra corrupção, lobbying, práticas desleais de competição, espionagem, tudo isso tem o alívio de se estar respaldado por valores universais, elevados e sublimes. Essa é a função manipulatória das diretrizes.
Não se trata, portanto, de dizer meramente que as diretrizes estratégicas são declarações falsas, simples mentiras deslavadas. Missão, visão e valores, mesmo que sabidamente enganosas, exageradas e, é preciso reconhecer, cafonas, piegas, ridículas até, cumprem uma função de sustentação subjetivo-simbólica das relações capitalistas para o controle (subsunção) e aproveitamento abusivo (exploração) do trabalho. Ao mascarar luta de classes, firmar o consenso burguês em torno do direito de explorar e se apropriar do trabalho alheio, bem como funcionar como antidoto contra alienação, essas diretrizes contribuem para a continuidade da empresa como instituição dominante das sociedades, da burguesia como classe hegemônica, do capital como estrutura onipresente de dominação e opressão em escala global.
[1] Da mesma forma, a visão de futuro da Nvidia deixa uma margem de trabalho mais aberta. Afinal, “proporcionar um mundo onde todos possam experimentar o poder da iA” pode significar desde uma utopia de felicidade plena por meio da tecnologia, como um planeta destruído pela Skynet. Um tanto de ambiguidade é capaz de salvar uma meta, ora veja.
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