Os Estados Unidos da América são uma ditadura?

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Oito anos atrás avisávamos que Donald Trump era um aspirante a ditador, fascistóide e com sinais de narcisismo megalomaníaco. 

“Sinthoma” de uma nação adoecida, Trump ressoa como o legado do experimento social que ousou transformar cidadania em consumismo. Nos primórdios da hegemonia estadunidense, pode ter parecido brilhante orientar todo um país para comprar desenfreadamente. Ganhou-se (muito) dinheiro com isso. Mas, à custa de algo muito precioso para a estabilidade social: senso crítico, compreensão de mundo e compromisso coletivo.

Muitos norte-americanos parecem existir numa bolha de mediocridade, num presente contínuo sem passado e sem futuro no qual a única forma de expressão é o comprar, a única coisa que importa é o indivíduo. Nisso, a percepção é de que substituem até as mais delicadas relações sociais por mercadorias, escolhem pessoas, amantes e políticos tais quais produtos dispostos em prateleiras: com descaso, imediatismo e superficialidade.

Os sinais de adoecimento coletivo eram já gritantes décadas atrás. Tiroteios em escolas nunca foram atos de “lobos solitários”, mas a expressão de uma cultura de inferiorização simbólica e hiper-competitividade que, sim, impulsiona o trabalhador ao limite da autoexploração, mas não sem deixar um rastro de insanidade e desequilíbrio; tudo isso com armamentos à disposição como doces na banca de jornal.

O racismo, que, é verdade, a branquitude estadunidense carrega como herança da Europa, está institucionalizado na defesa hipócrita da liberdade de expressão e nos aparatos de repressão treinados para enxergar peles pretas como inimigos. É quase delirante imaginar que uma pessoa possa, até mesmo de uma tribuna, púlpito ou microfone, professar em alto e bom tom a pretensa (mentirosa, vil e estúpida) suposição de superioridade racial.

Os muitos cultos a personalidades — a esportistas, pop-stars, atores, bilionários — denotam a incapacidade do individualismo exacerbado em compreender o contexto de formação como fator decisivo de sucesso. Assim, foi possível tanto criar marcas e padrões de consumo vinculados a idolatria moderna, como por outro lado transferir a culpa pelo insucesso social, profissional, material e simbólico para o próprio trabalhador. Afinal, “se eles puderam, com trabalho duro, chegar até onde chegaram”, pensam, “eu também poderia” e concluem: “como não, a culpa é minha”.

É na sensação de culpa que as ditas igrejas (eu prefiro “máfias”) cristãs se refestelam. O cristianismo enlatado, como experiência de consumo finca ali suas garras. Diante da crescente sensação de culpa pelo insucesso, igrejas neopentecostais se mostraram hábeis em associar evangelho cristão e prosperidade como necessários entre si. O vazio existencial do consumo, das relações superficiais, é preenchido pela vivência na igreja.

Naqueles antros construídos para enganar, as pessoas encontram os vínculos perdidos (não verdadeiras, note-se, mas simulacros superficiais), bem como promessas de reversão do infortúnio. As relações são falsas, pois que interessadas na adesão ao compromisso de sustentação material da estrutura da igreja, com dinheiro e trabalho “voluntário”; quem não concorda, está no mundo, longe de “deus”, vai para o inferno. E se a prosperidade não vem, é porque não empenhaste fé o suficiente, dízimos e ofertas desafiadoras, trabalho árduo.

O consumidor da fé misteriosamente se transforma em mercadoria exaurida pela própria igreja, esvaziado de autonomia intelectual, completamente dedicado e alienado de si mesmo. Ali, são treinados para focar e entender apenas o simples, efêmero e raso; nada pode ser complexo. Indivíduos esvaziados, oprimidos até por si mesmos, dedicados ao consumo de maneira acrítica, adestrados por igrejas que se propõem a substituir senso crítico por obediência cega.

Não à toa a política nacional se organiza como espetáculo. Precisa aparecer superficial para ser assimilada como consumo; com elementos narrativos para garantir o envolvimento do espectador. Um plot twist aqui, um segredo fácil de ser descoberto ali, uma apoteose, as vezes um retorno triunfante. Verte-se em palco, para o quê a performance e a aparência da política valham mais do que a essência de projetos, interesses e compromissos. Não por acaso o Presidente é um personagem, um bufão, onde perfídia e pastelão se encontram para expressão e exploração do puro ódio latente na sociedade.

Claro, isso no âmbito limitado da escolha coletiva. Não é porque políticos são selecionados a partir de uma persona superficial que não sejam, no íntimo de suas escolhas e alinhamentos, figuras complexas. A espetacularização da política não suprime o jogo de interesses materiais que, obviamente, caminha nos meandros concretos da política tradicional. Nos bastidores, os poderes tradicionais da política americana tratam tudo como business as usual.

Big techs, wall st., complexo industrial militar, entre tantos outros setores, se equilibram para arrancar o máximo dos trabalhadores, do Estado, bem como instrumentalizam a mais formidável força militar da história para impor seus interesses sobre o resto do mundo. A velha arrogância do império, da certeza de suas certezas, é também a ferramenta da intolerância racista que ataca países periféricos como simples quintal de onde podem tirar o que quiser.

Trump funciona como o mais perfeito representante de uma elite apodrecida e odiosa. Não por acaso caminha lenta e inexoravelmente em direção ao autoritarismo, com pitadas de violência, ódio racial e nonsense.

Todos os sinais estavam lá: mentira, corrupção, assédio simbólico, achaque institucional, racismo… os avisos caíram em ouvidos surdos e, agora, os EUA estão sob o controle cada vez mais firme de um lunático. Pior, de um lunático que representa seu povo, cujos arroubos verborrágicos, ameaças ensandecidas, comportamento caótico e desvario lógico correspondem exatamente ao que a maioria população é, pensa, pretende e deseja. O verdadeiro sonho americano.

Pode-se dizer que, hoje, os EUA são uma ditadura autocrática. Com tudo que uma ditadura pode oferecer(?): polícia política (ICE), dados e informações manipuladas, inimigos imaginários (imigrantes), campos de concentração fora do país para depredar garantias legais de suas vítimas (El Salvador), expurgo de livros e ataques a universidades, genocídio terceirizado (Gaza) e um megalomaníaco autoritário (Trump) para carregar uma culpa que, na verdade, é de oligarcas e de parcelas de uma população entre o atônito e o anestesiado.

Alguém duvida de quais serão os próximos passos?


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