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A presidência de Jair Messias Bolsonaro foi um momento vexatório da República Federativa do Brasil, uma nação, registre-se, já acostumada a vexames e vergonhas em escala nacional. Bolsonaro nos mergulhou em um nível subterrâneo de desgoverno, corrupção e intenções patrimonialistas, do qual enfrentamos, até hoje, sérias dificuldades para nos reerguer. As instituições patinam, figuras públicas tóxicas se multiplicam e a sensação de perene risco coletivo perdura. Contudo, o bolsonarismo segue relevante, o que me leva a questionar o porquê dessa impermeabilidade à crítica. Qual o motivo que leva Bolsonaro a alcançar tanta popularidade? Talvez a resposta não seja única nem agradável, mas ensaiemos algumas hipóteses.
Por que o bolsonarismo faz sucesso entre muitos idosos (não todos, perceba-se)? Tenho sérias suspeitas de que o efeito do declínio cognitivo tenha um papel em alguns casos, muito embora se possa atribuir a maior influência ao distanciamento histórico da ditadura e à conhecida “síndrome dos anos dourados”.
E entre pessoas pobres ou em condição de vulnerabilidade? Certamente, a baixa escolaridade pode figurar como um fator, somada ao difícil exercício da crítica por parte de quem está imerso em uma rotina exaustiva e sacrificante.
E por que o bolsonarismo viceja entre médicos? Formação sociológica incipiente, miopia de hiperespecialização e rancor, muito rancor contra o programa Mais Médicos e contra o fato de que pessoas pobres, sob os governos do PT, obtiveram acesso a serviços que antes eram privilégios dos ricos (e dos médicos).
No meio religioso (sobretudo o cristão), por que existe o bolsonarismo? Faz sentido? Podemos recorrer aos limites cognitivos e à baixa escolaridade endêmica, mas penso que a resposta se relacione sobretudo ao fato de que, nas igrejas, opera-se um contrato de relação institucional alienante que garante a adesão das “ovelhas”. Muitos (não todos, note-se) seguem o que dizem seus clérigos, dado que a lógica da igreja é a terceirização da crítica.
E por que muitos pastores, padres e clérigos seguem o bolsonarismo? Temo que, entre muitos, por oportunismo, associação suspeita por benefícios pessoais ou baixa capacidade de empatia.
Políticos? O mesmo que se aplica a padres, pastores e clérigos.
Em suma, descontando a claque ideológica — o núcleo da “intelligentsia” de extrema direita, sobre a qual André Barrocal sugere um CID, Rita Almeida descreve um tipo de delírio coletivo, enquanto para Betty Milan seria ‘simples’ perversidade, em uma longa lista de diagnósticos —, a adesão popular a esse projeto parece decorrer da soma de (i) aflição diante da complexidade do mundo, (ii) sensação de estar perdendo no jogo da vida e (iii) uma máquina ideológica capitalista que, por meio da escola, da igreja e do entretenimento, massifica uma visão individualista de mundo.
A baixa cognição e a escolaridade insuficiente (ou demasiadamente especializada) fazem com que os indivíduos não consigam compreender por que suas vidas não melhoram; faltam-lhes ferramentas para perceber o conluio capital-Estado, não entendem a luta de classes, têm dificuldades para notar as formas sutis de exploração do trabalho e não possuem um filtro crítico de ideologia minimamente funcional.
Os aparatos que poderiam contrabalançar essa condição, a Educação e a Mídia, estão organizados de modo capitalista, controlados por empresários que não escondem sua intenção de moldar o mundo (as pessoas) à sua imagem e semelhança. As escolas (sobretudo as particulares, consideradas ‘melhores’, mesmo não o sendo) são acríticas, a mídia é enviesada, simplista e, em muitos casos, mal-intencionada. E o entretenimento aproveita o momento de descanso do trabalhador para inculcar sub-repticiamente os valores que a classe capitalista deseja que eles assimilem: antissindicalismo, individualismo, empreendedorismo, soluções fáceis e imediatas para problemas complexos e estruturais.
Como resultado, a maioria das pessoas não dispõe de ferramentas de proteção cognitiva, análise crítica ou autonomia intelectual.
Nesse contexto, os problemas difíceis são quase automaticamente rejeitados como sequer válidos, como se forçar o cérebro para avaliar alternativas de mudança social causasse dor física. Esperam, não por acaso, que outra pessoa lhes apresente a solução. Assim, assimilam a religião, porque é mais fácil pensar em uma dinâmica criador-inimigo do que analisar as múltiplas causalidades das condições que os afligem.
Da mesma forma, quando apresentados a um inimigo fácil de culpar, identificar e odiar — por ser indefeso, minoritário e diferente —, como a ‘esquerda’, os LGBTQIA+, os judeus, os imigrantes latinos etc., abraçam a solução. O perigo é sempre o Outro. Sobretudo se essa construção for emoldurada por aqueles valores massificados pelos aparatos religiosos, educacionais e midiáticos.
Sem querer alienar as pessoas de direita (mas já o fazendo, tenho certeza), é preciso dizer: a adesão ao bolsonarismo não parece ser muito mais do que fruto de burrice, medo, frustração, ódio ou oportunismo. Em muitos casos, tudo isso junto.
‘Não parece ser muito mais’ aqui não denota que eu acredite ser este um problema menor, fácil de solucionar. Pelo contrário, essas emoções simples, negativas, quase como reações automáticas, têm uma força muito grande para engendrar comportamento. Ademais, combater suas origens é algo muito difícil (utópico? Não!), porque suas causas são estruturantes na sociedade capitalista. Não é por acaso que o capital trabalhe tão ativamente para consolidar um consenso em torno dessas soluções imediatas. A verdade é que, no afã de explorar mais para lucrar, o capital buscou ativamente capturar o trabalhador em uma gaiola de anencefalia sociopolítica.
Anencéfalos, porém, tornam-se instáveis. Em um contexto assim, vive-se constantemente sobre um fio estendido em um abismo: o fascismo. Quando Brecht disse que “a cadela do fascismo está sempre no cio”, estava fazendo mais que uma metáfora arguta, mas expressando uma verdade daquelas que tendem ao absoluto: estelionatários, maldosos, pessoas apodrecidas por dentro (daquelas que não se importam em se refestelar sobre uma pilha de corpos), hipócritas, todos estão constantemente à espreita de uma oportunidade para cravar suas presas na sociedade. Uma população emburrecida é uma vítima fácil.
Assim, o capitalismo constrói a sua própria ruína. Para tentar se manter no poder, degrada o aparato cognitivo das pessoas, corrói suas mentes, autonomia e autoestima. Cérebros vazios, porém, podem ser ocupados pelos vermes que, em última instância, têm o potencial de levar um coletivo humano à extinção: chamaremos, novamente, esses vermes parasitas de fascistas. Tudo isso por ganância, para ter o que não precisam, para ostentar, por simples ódio; em suma, reflexo de algum desequilíbrio psicossociobiológico que os leva a praticar o mal por prazer. O próprio capitalismo perece no processo, tenha certeza.
Seria bom, se não nos arrastasse consigo.
O bolsonarismo resiste por culpa do capital. Foram empresários que trabalharam para emburrecer o povo, tolher o fruto de seu trabalho, seu tempo e, por fim, sua vontade. São aqueles mesmos empresários que abraçaram os Bolsonaro, deram-lhes voz, financiaram seus arroubos golpistas e, mesmo depois de tudo, continuam a sonhar secretamente em encampar um fascista com toda aquela disposição para a gestão e controle malthusianos da população (enquanto lhes entrega a chave dos cofres da República). O bolsonarismo é mais um sintoma do capitalismo, talvez um carcinoma, algo maligno, que se alimenta da força vital das pessoas. Oxalá encontremos a cura!
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