… ou, um preâmbulo até os porquês do bolsonarismo hoje
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Acredito ser lícito dizer que a trajetória de Jair Messias Bolsonaro na presidência da República Federativa do Brasil é de conhecimento geral e até senso comum. Ainda assim, como preâmbulo para discutir os porquês da persistência da base de apoio do ex-presidente, proponho uma brevíssima recapitulação de fatos e destaques. O intuito aqui é ilustrar uma discussão posterior, a ser publicada no blog, sobre a permanência e impermeabilidade do movimento bolsonarista. Antes, precisamos de um pouco de história. Me permitam, por favor.
Em meados de 2018, a candidatura de Jair Messias Bolsonaro para a presidência da república era tratada como piada. O ex-presidente Lula estava em cárcere ilegal, vítima de um conluio de lawfare entre o Dep. de Estado dos EUA, a força-tarefa da Operação Lava Jato e o então juiz federal Sérgio Moro. No lugar de Lula o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, encabeçava a campanha do Partido dos Trabalhadores junto a candidata a vice Manuela d’Ávila do PCdoB. O opositor “sério” era Geraldo Alckmin, que saíra candidato pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), junto Ana Amélia (Progressistas) como candidata a vice presidenta, numa coligação de oito partidos que lhe dava extenso tempo de TV, sólida (futura?) base parlamentar e quase certeza de vitória. O resultado é história. Alckmin sofreu vergonhosa derrota chegando apenas em terceiro lugar no primeiro turno. No segundo turno Bolsonaro venceria Haddad.
As diferenças entre os candidatos não poderiam ser maiores. Alckmin e Haddad são figuras políticas de grande verniz intelectual, fala conciliadora, formação acadêmica de respeito, atuação profissional ilibada. Ancorados em diferentes plataformas políticas — o primeiro à direita, o segundo à esquerda —, naquela campanha representavam propostas de gestão consistentes, com objetivos claros e fundamentadas em análises sistemáticas da realidade brasileira. Bolsonaro, por sua vez, não tinha sequer um esboço de projeto. Estruturou sua campanha em uma base de mentiras e desinformação. Não participou de nenhum debate televisivo. Chega a ser compreensível, aliás, visto que normalmente é incapaz de formular sentenças completas, apresenta raciocínio errático e figura agressiva, além de um background tão pobre quanto chulo.
Bolsonaro, militar reformado de baixa patente (capitão), ao longo de sua trajetória na política iniciada ainda na década de 1980 colecionou polêmicas e condutas desprezíveis. Foi preso pelo exército por conta de uma ação de insubordinação. Depois, planejou um atentado à bomba contra a caserna. Reformado, tornou-se político, primeiro vereador do Estado do Rio de Janeiro, depois deputado federal, sempre com uma atuação parlamentar insignificante. Na Câmara de Deputados, legislativo federal, entre 1991 e 2019, se alinhou às representações mais fisiológicas, esteve filiado em nove diferentes partidos, todos herdeiros do grupo político que apoiava a Ditadura Empresarial-Militar de 1964. Por todo esse tempo se manteve na sombra da irrelevância.
Antes de 2018, sua atitude mais conhecida foi quando proferiu voto a favor do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff em 2016. De posse do microfone, em plena Câmara dos Deputados, Jair Bolsonaro finaliza seu pequeno pronunciamento dizendo “[…] pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim.” Não apenas sentenciou culpada uma senhora competente, honesta e inocente de todas as acusações, como fez apologia ao crime bárbaro e hediondo que a Presidente da República sofrera quando sequestrada pela ditadura. Bolsonaro mostrava suas credenciais em poucas, mas significativas (abjetas e ultrajantes), palavras.
Ali, poderia ter se encerrado a sua trajetória. Num plenário coerente, certamente seria alvo de processo disciplinar por quebra de decoro, depois entregue à justiça comum por apologia ao crime. Nossa vida teria sido outra. Mas a história não é contada pelas oportunidades perdidas, certo?!
A presidência de Bolsonaro foi puro caos. O desalinho econômico do primeiro ano — todos os indicadores sociais pioraram, com retração de investimentos, desemprego, inflação e piora das contas públicas —, se juntava a um cenário político em franco desequilíbrio. Bolsonaro não tinha base parlamentar, não era afeito a negociação e tinha chegado ao poder com o discurso antissistêmico, prometendo “acabar” com (se possível, “fuzilar“) a tal “velha política”. A maior parte dos projetos que o governo apresentava eram rejeitados; os profissionais escolhidos para primeiro e segundo escalão não apresentavam competências mínimas para o exercício de suas funções; a gestão era errática e ilógica. A única coisa que funcionava era a agenda de desmonte dos aparatos de regulação setorial, trabalhista, ambiental e econômica. O governo Bolsonaro estava empenhado apenas em estabelecer contextos regulatórios que favorecessem empresários, crime organizado, grileiros, mineradores ilegais, entre muitas outras parcelas da escória da iniciativa privada brasileira.
Em 2020 o Brasil foi atingido pela pandemia global de Covid-19. A maneira como o governo lidou com a crise sanitária, desde o princípio, causou estranhamento, indignação, repulsa até. Ao invés de usar a crise a seu favor para se posicionar como um tipo de salvador, Bolsonaro adotou, pelo contrário, uma postura negacionista, anti-vacina, utilizando o governo federal para desarticular e sabotar iniciativas dos Estados no combate a pandemia. Sob a gestão Bolsonaro, a vacinação foi protelada e desincentivada, faltou insumo de atendimento de urgência por todo o país (oxigênio, EPIs, equipamentos de respiração), dinheiro foi desviado em operações fraudulentas por seus apoiadores. Isso tudo enquanto o presidente fazia aparições públicas sem máscaras, expondo seus próprios apoiadores ao risco da Covid-19. Estudos demonstram que algo em torno de 400 mil mortes no Brasil teriam sido evitadas se as ações do governo seguissem as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Pressionado pela inoperância do combate a pandemia, por uma economia em franco declínio, assim como diante da percepção de que seu grupo político não era capaz de administrar o Estado, Bolsonaro se tornou presa fácil para a “velha política”. No Congresso, sob o escrutínio de Rodrigo Maia (presidente da Câmara entre 2019-2021), depois de Artur Lira (2021-2023), haviam 158 pedidos de impeachment contra Bolsonaro sob diversos motivos — quebra de decoro, crime de responsabilidade ao defender propaganda da ditadura militar, aparelhamento político das forças de segurança pública para, por exemplo, retardar as investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco, ou encerrar investigações contra si mesmo e seus filhos nos casos de rachadinhas, até sabotagem do combate a pandemia, entre muitos outros —, todos procedentes, documentados e de ampla divulgação pública.
Sem apoio, Bolsonaro foi obrigado e comprá-lo. E isso custou muito caro. Sob o governo Bolsonaro, os partidos fisiológicos herdeiros da ditadura empresarial-militar — chamados pela alcunha de “Centrão”, por não serem nem de esquerda (obviamente), nem pertencerem àquela direita mais programática[1] — se articularam em uma frente obstinada por controlar o orçamento público. Credita-se a Artur Lira a criação do Orçamento Secreto, um sistema de empenho de dotações de gastos do governo federal para destinos (Projetos, Estados e Município) indicados por parlamentares, por meio de ementas ao orçamento federal, que não tinham registro do autor do pedido de emenda, nem registro do destino do dinheiro. Da parcela discricionária do orçamento público — algo em torno de 160 bilhões anualmente, que o Poder Executivo pode investir —, estima-se que aproximadamente 40 bilhões estão até hoje sob controle do Parlamento.
Aquela eleição de 2018, é consenso entre analistas, não se deu sob condições normais. A coligação de Bolsonaro praticamente não tinha tempo de TV, era fundamentada em políticos sem expressão, não tinha estrutura, sequer um plano de governo, lembremos. Ainda assim, chegou a milhões de pessoas. Como? Seguindo uma estratégia de mobilização em redes digitais inaugurada nos EUA sob a coordenação de Steve Bannon para a campanha de Donald J. Trump. Bannon, um ativista do supremacismo branco (racista, anti-imigração, islamofóbico, misógino e economicamente liberal) norte-americano, criou uma estrutura reticular de grupos, canais de transmissão e fóruns em redes sociais como Discord, Telegram, ou Whatsapp, para disseminação de narrativas conservadoras, teorias conspiratórias e informações falsas sobre instituições, opositores políticos e mesmo conhecimentos científicos. Tudo isso multiplicado por influenciadores digitais, um exército de usuários falsos e a conivência das grandes empresas de tecnologia. No Brasil, a estratégia ganhou a alcunha de Gabinete do Ódio, elegeu o Bolsonaro, continuou operando durante sua presidência e até hoje funciona nos porões da internet.
À medida que se aproximavam as eleições de 2022, Bolsonaro carregava baixa popularidade, pecha indelével de gestor incompetente, estava isolado internacionalmente (Joe Biden havia vencido as eleições nos EUA derrotando Donald Trump em 2020) e tinha entregue o Estado nas mãos do Parlamento, nas mãos de Artur Lira. Estava claro que não se reelegeria. Por isso mesmo, desde 2021 iniciou um achaque contra as instituições, sobretudo tentando questionar a lisura do processo eleitoral, criticando o Supremo Tribunal Eleitoral (TSE), levantando dúvidas acerca da segurança das urnas eletrônicas e atacando pessoalmente Ministros do Supremo Tribunal Federal que serviam como Presidentes do TSE. Na iminência da derrota, a estratégia do presidente Bolsonaro foi descreditar o mecanismo democrático que o levou ao poder, não porque acreditasse de fato naquilo — relatórios de seus próprios correligionários e apoiadores atestavam a segurança do sistema eleitoral —, mas porque precisava pavimentar uma forma de se manter no poder.
Em 2022 Bolsonaro foi derrotado. Perdeu no primeiro e no segundo turno, enquanto o adversário recebeu a maior votação individual da história da democracia brasileira. Isso, mesmo tendo gasto mais de 200 bilhões de reais em ações eleitoreiras, aparelhado a Política Rodoviária Federal (PRF), engajado a Agência Brasileira de Inteligência (ABIM) em práticas ilícitas, realizado campanha eleitoral muito antes os limites legais, entre muitas outras arbitrariedades. Tentou roubar a eleição e mesmo assim perdeu. E havia um fator a se considerar, Bolsonaro e seus asseclas haviam cometido muitos crimes ao longo de quatro anos, a grande maioria deles documentados, inclusive em áudio e vídeo. Era dado como certo que, uma vez fora do poder, Bolsonaro e sua coalização enfrentariam processos judiciais que potencialmente os levariam para a prisão.
Em desespero, no Palácio do Planalto foi elaborado um plano para assegurar a continuidade do governo de Bolsonaro: uma plot dramática de assassinato para virar a mesa do resultado eleitoral. O já famoso Punhal Verde e Amarelo reunia um protocolo para envenenar, sequestrar e assassinar o Presidente Eleito Lula, seu Vice, Geraldo Alckmin, assim como o Presidente do STF, Alexandre de Morais. Isso foi discutido no círculo interno do governo que terminava, com transmissão de documentos, minutas e aportes financeiros. Talvez porque parte da cúpula militar não se engajou no golpe, talvez por conta da grande visibilidade internacional de um caso como esse, ou por ter se escolhido um caminho diferente, como veremos adiante, os assassinatos não foram levados a cabo. Mas, é preciso dizer, o então presidente da república cogitou, planejou e iniciou uma operação para se manter no poder por meio de crime capital. Não deixa de ser irônico, note-se, que a solução para escapar da prisão tenha sido exatamente o que os levou a serem processados, julgados e finalmente condenados.
Na mesma noite em que os resultados do segundo turno foram divulgados, caminhoneiros, muito provavelmente incitados por empresas de logística, iniciaram uma paralização em lockdown fechando fluxos de mercadorias para tentar reverter o resultado das eleições. Pari passu, inúmeros apoiadores do presidente derrotado iniciaram vigílias nas imediações de destacamentos militares do exército, aeronáutica e marinha, realizando protestos contínuos por intervenção militar e ruptura do regime democrático. Financiados por empresários, contraventores, até mesmo personagens ligados ao tráfico internacional de entorpecentes, incitados por atores do governo que terminava e com a conivência das forças armadas, os acampamentos golpistas durariam até as primeiras semanas de janeiro de 2023.
Ainda em dezembro de 2022, no dia da diplomação do Presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, uma turba de delinquentes realizou uma série de atos de vandalismo na capital federal. O hotel que hospedava o presidente precisou ser cercado por grupos de elite da Polícia Federal para garantir sua segurança. Mais tarde, naquele mesmo mês foi descoberta e desbaratada uma tentativa de atentado à bomba no Aeroporto de Brasília.
Bolsonaro depois alegaria que todos esses acontecimentos teriam ocorrido sem sua participação ou interferência. Mesmo que seja verdade, fica muito evidente a contribuição do clima de delinquência institucional, ódio e aspiração golpista criado pelas inúmeras declarações do ex-presidente que, em última instância, empoderaram as frações golpistas da sociedade brasileira.
Todo esse caldo golpista culminaria no fatídico domingo de 8 de janeiro de 2023. Exatos 8 dias da posse de Lula, centenas bolsonaristas que ainda acampavam em frente ao Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano em Brasília, se dirigiram para a Praça dos Três Poderes. Suas fileiras haviam sido infladas por caravanas vindas de todo o país, financiadas por empresários e personalidades ligadas ao agronegócio, até mesmo por políticos e prefeitos a partir de desvios do erário. Lá, auxiliados por destacamentos das forças especiais do Exército disfarçados à paisana, escoltados à distância por agentes da Polícia Militar do Distrito Federal, invadiram e depredaram os edifícios que representam os Poderes da República. Uma verdadeira barbárie, sistemática, articulada entre parcelas do militarismo e financiada por atores privados.
O objetivo era, aparentemente, causar uma situação de comoção e tumulto que obrigasse o recém empossado Presidente Lula a evocar o mecanismo de outorga às forças militares da responsabilidade de uma ação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Uma vez no controle da segurança da capital, acreditava-se que, por sua vez, os militares poderiam usar a posição como pretexto para um golpe de Estado. O Governo não caiu na armadilha, orquestrou uma resposta civil e, no dia seguinte, conseguiu iniciar prisões que enfim dispersaram os acampamentos golpistas. Novamente, Bolsonaro negaria participação, muito embora tenham sido encontradas provas diversas do envolvimento de seu gabinete naquela plote ridícula.
Uma vez Bolsonaro fora do Palácio do Planalto, foragido nos EUA, começaram a aparecer novos indícios de seu envolvimento em crimes diversos. Sob suas ordens, houveram situações de descaminho de bens de valor em viagens internacionais, desvios de patrimônio da União, apropriação indébita e comercialização de joias e artefatos que haviam sido oferecidos como presentes por governos estrangeiros, falsificações de documentos, adulteração de registros oficiais, tráfico de influência, até mesmo ataques hackers sob a conivência da presidência da república, entre diversos envolvimentos em situações duvidosas. Todos esses fatos, para além de alegados, se descobriram subsidiados por documentos, registros, transações escusas e conversas registradas. Um volume de provas em tal monta, às claras, que se supõe que o presidente estava certo de sua permanência no poder; tão certo que não se deu ao trabalho de mascarar aqueles atos.
É impressionante o quanto a história do Bolsonaro presidente, do bolsonarismo como movimento, é cercada por ilícitos. Por que, então, mais de 1/4 (25%?) da população brasileira ainda apoia o presidente? Como é possível associar a esse indivíduo um discurso de honestidade? O que subsidia a permanência da força política de uma claque tão degenerada?
Essa é uma questão para mais adiante…
[1] O “Centrão” não é de centro. Os políticos que circulam nessas legendas dantes marginais são aqueles que chegaram na política partidária com o duplo projeto de (i) amealhar riquezas pessoais e (ii) disseminar uma agenda muito peculiar, dita “conservadora”. Muitos fazem parte do que chamamos da tríade de bancadas retrógradas, as bancadas do Boi, da Bala e da Bíblia. São representantes de fazendeiros, grileiros, empresas de armas, assim como oriundos de igrejas evangélicas, que amalgamam o pior em termos de agenda anti-civilizatória. Se pretendem “conservadores” porque, de fato, tem por objetivo manter as relações sociais que os levam ao poder e à riqueza. Assim são refratários a políticas de cotas, transferências de renda para população mais pobre, assim como detestam ciência, universidades e intelectuais progressistas que normalmente se ocupam de denunciar relações de opressão. Enfim, pretendem conservar o Brasil numa teia de relações medievais, na expectativa de continuarem a ser privilegiados. Não são de centro, digo novamente, mas de extrema-direita, não aquela ideológica, fascista (isso fica com o Bolsonaro), mas uma extrema-direita autocentrada, egoísta, que pretende usurpar o Estado e acumular riqueza.
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