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Os estudos organizacionais são um campo vasto e contraditório, marcado por disputas políticas, que reúne diferentes perspectivas de interpretação e análise da realidade, seus objetos (as organizações) e do próprio campo em si. Cada diferente abordagem aparece influenciada por contextos, compromissos teleológicos, backgrounds filosóficos, estruturas cognitivas e aspirações particulares de seus propositores. Isso resulta num mosaico rico, complexo e multifacetado de conhecimentos, métodos, técnicas e saberes, assim como de diferentes posicionamentos, compromissos e agendas.
Na história de pensamento do campo se encontram muitos esforços de investigação para a sistematização dos estudos organizacionais. Por exemplo, a classificação em diferentes narrativas realizada por Michael Reed em seu capítulo no Handbook de Estudos Organizacionais (Reed, 2010), a proposição de matrizes epistêmicas no artigo de Ana Paula Paes de Paula Para Além dos Paradigmas nos Estudos Organizacionais (Paes de Paula, 2016), as diferentes visões de organização e gestão que aparecem no trabalho de Astley e Van de Ven Debates e Perspectivas Centrais na Teoria das Organizações (Astley & Van de Ven, 2005) e as camadas de compromisso crítico segundo Thomas Klikauer em Critical Management as Critique of Management (Klikauer, 2018).
Dentre esses esforços, o modelo em quatro paradigmas sociológicos da análise das organizações elaborado por Gibson Burrell e Gareth Morgan ainda na década de 1970 é dos mais referenciados, porque não dizer reverenciado, na academia. Embora tenha sofrido com críticas ao longo dos anos, esse modelo continua até hoje a influenciar a maneira por meio da qual as pessoas imersas nesse campo se enxergam, como observam ADM e EOR um grande espaço de saberes e debates sobre organização e gestão em torno de premissas metogológico-epistemológicas e axiológico-teleológicas.
O livro no qual os quatro paradigmas da análise organizacional são apresentados, Sociological Paradigms and Organizational Analysis (Burrel & Morgan, 2019), nunca foi traduzido para a língua portuguesa. Essa barreira linguística por vezes tem sido um impedimento para sua disseminação; sobretudo entre estudantes de graduação no Brasil, os quais poderiam facilitar em muito seu desenvolvimento acadêmico e profissional ao serem expostos a essa valiosa sistematização do campo desde cedo. Por conta disso, nesse texto decidi fazer uma breve exposição em linhas gerais da proposta de sistematização realizada por Burrell e Morgan, tentando me manter o mais fiel possível ao que acredito ser a intenção dos autores.
O objetivo com esse texto didático é, portanto, auxiliar estudantes em sua formação, assim como professores em suas aulas, oferecendo uma exposição sintética do que acredito serem as principais contribuições do trabalho de sistematização realizado por Gibson Burrell e Gareth Morgan (2019). Dessa maneira, a abordagem desse trabalho será a de uma exposição sistemática e a apresentação, como num resumo, do modelo em questão. Ao final, porém, serão acrescentadas algumas considerações, estas desdobradas de algumas das análises críticas do modelo realizada por outros autores.
Gibson Burrell e Gareth Morgan (2019) em seu livro pretendem passar en revi8sta as diferentes abordagens sociológicas que se estruturam como fundamento para diferentes perspectivas (os autores preferirem o termo “paradigmas”) dos estudos organizacionais a partir de dois eixos. Cada um desses eixos apresentam extremos representando posturas diametralmente opostas, primeiro no que diz respeito ao que se compreende por realidade e qual a natureza do objeto de estudo (eixo horizontal), segundo ao que se refere ao comprometimento social do saber que se pretende alcançar (eixo vertical). Ao cabo, essas duas dimensões são organizadas em um modelo visual, sobre um plano cartesiano, identificando quadrantes de afinidade epistêmica — de um lado, objetivismo, de outro subjetivismo — e teleológica, de um lado, uma sociologia da regulação, de outro, uma sociologia da mudança radical (ver Figura 1, a seguir).
Para a análise dos aspectos epistemológicos, Burrell e Morgan (2019) sugerem o emprego de quatro dimensões concernentes à maneira como se produz conhecimento, que abordagens, grupos ou pesquisadores do campo dos estudos organizacionais, ou suas teorias, podem assumir como premissas: (i) ontológicas, num extremo o nominalismo, noutro o realismo; (ii) epistemológicas, de um lado positivismo, de outro anti-positivismo; (iii) quanto à liberdade da ação humana, determinismo em oposição a voluntarismo; e (iv) metodológicas, colocando em linha uma perspectiva nomotética face uma postura ideográfica. Essas quatro premissas, que representam, na visão dos autores, continua de enquadramento entre seus extremos, o objetivismo e o subjetivismo.
Especificamente, os autores consideram objetivistas aquelas abordagens que (1) partem de premissas realistas, do princípio de que a realidade existe em si, independente da interpretação ou lugar de olhar dos indivíduos. Ainda, assumem uma postura positivista, o que significa dizer que defendem a neutralidade axiológica (o pesquisador é, ou precisa ser, desapaixonadamente neutro em relação a seu objeto de pesquisa), a primazia do conhecimento empírico sobre o conhecimento especulativo ou reflexivo, a utilização da análise reducionista e a preferência pelo saber quantificável e verificável por meio de um método experimental que possa ser replicado. Devido a isso, interpretam aquela realidade de forma determinista, ou seja, sugerindo que fenômenos sociais, ação humana, história, são condicionadas por forças externas, irresistíveis e condicionantes de comportamento. Adicionalmente, primam por objetivos nomotéticos, já que acreditam que a realidade social pode ser explicada pela existência de leis e princípios generalizáveis e, portanto, universais e necessárias.
Já o subjetivismo é a característica das abordagens em ciências organizacionais que se aproximariam de uma postura nominalista, para os quais a realidade material é, de alguma forma, construída pelos atores participantes e, portanto, não existe em si mesma; ou ao menos não existe da forma que é percebida ou vivenciada. A ciência nesse espectro assume uma postura anti-positivista, questionando a possibilidade de uma neutralidade axiológica, problematizando a primazia da razão, rejeitando os reducionismos e mesmo a rigidez do método. Sua perspectiva de ação humana é voluntarista, pois que assumem que indivíduos e grupos não são determinados por estruturas ou leis, mas sim tem possibilidade de escolha e ação autônoma. Nesse sentido, revelam uma inclinação ideográfica, o que significa dizer que os conhecimentos alcançados são aplicáveis e inteligíveis apenas no local e momento histórico específicos de produção, portanto nem generalizáveis, nem universais, nem capazes de formar leis unívocas de explicação do funcionamento de processos sociais.
Adicionalmente, os autores analisam os estudos organizacionais a partir de que pressupostos assumem acerca da natureza das organizações e sociedades, se em conflito ou harmônicas. Daí, seria possível derivar qual atitude por detrás das diferentes perspectivas de estudo. Cada teoria se reveste, segundo Burrell e Morgan, de intencionalidades em termos de objetivos visando impacto social. De um lado aqueles que pretendem realizar uma crítica social, se aproximando de uma “sociologia da mudança radical” (Burrell & Morgan, 2019, p. 17); de outro, aqueles que visam contribuir para continuidade ou reforma da sociedade sem que haja mudanças estruturais, compreendida como uma “sociologia da regulação” (Burrell & Morgan, 2019, p. 17). Esses dois extremos conformam os limites do eixo vertical do modelo.
O que Burrell e Morgan chamam de sociologia da regulação são perspectivas que (i) pretendem proporcionar a manutenção do status quo, (ii) criticam fatores que desequilibram a ordem social, (iii) enfatizam como indivíduos ou grupos sociais podem, ou devem, trabalhar para atingir consensos e cooperação, (iv) enquanto descrevem práticas sociais que levam à integração e coesão de grupos, (v) destacam processos de solidariedade nas realidade sociais, (vi) sempre partindo da premissa de que sistemas sociais visam atender as necessidades humanas e que, portanto, (vii) deve-se reforçar o mundo como ele já efetivamente é.
No circuito de interesses da sociologia da mudança radical, por sua vez, se (i) assume como objetivo a mudança radical das estruturas sociais em vigor, por meio da (ii) denúncia e exposição das circunstâncias de conflito social. Essas perspectivas (iii) sugerem que os processos de escolha coletiva conformam, na verdade, sistemas de dominação e, portanto, é preciso (iv) demonstrar as contradições nas práticas sociais para (v) libertar, ou emancipar indivíduos das formas de opressão para que, assim, possam atingir seu pleno potencial individual e coletivo. As abordagens relacionadas com a sociologia da mudança radical (vi) compreendem que os processos sociais impõem privações para muitos enquanto privilegiam a poucos, assim, por conseguinte, (vii) pretendem contribuir para a superação das condições presentes, de modo superar entraves de desenvolvimento da humanidade.
A partir daí, um subcampo de conhecimento, teoria, perspectiva ou autor, poderiam ser classificados em termos de seus compromissos com o objetivismo ou subjetivismo, assim como com mudança ou regulação social. No modelo de Burrell e Morgan, como já foi dito, tais escolhas são arranjadas em quatro quadrantes simétricos em torno do centro de um plano cartesiano, conforme a Figura 1 a seguir, cada qual representando o que os autores entendem por paradigmas (Burrell & Morgan, 2019, p. 21).
As teorias que partem de uma visão de realidade a partir de uma perspectiva objetivista, cujas finalidades são mais inclinadas à continuidade e à reforma apenas performática da realidade, são classificadas pelos autores como funcionalistas, no quadrante inferior à direita. Ainda no espectro objetivista, aquelas teorias que visam a mudança estrutural da realidade, por enxergarem no estado de coisas do mundo (ou dos objetos que estudam, como a empresa ou o Estado) contradições irreconciliáveis, são classificadas pelos autores como estruturalistas radicais, no quadrante superior à direita.
Também compactuando com a visão de que as realidades estudadas precisam de mudanças significativas, mas sem concordar com uma visão objetivista de mundo, encontram-se os humanistas radicais, no quadrante superior à esquerda. A perspetiva humanista radical enfatizaria opressões no plano simbólico, de representações ou subjetivas, também capazes de engendrar sofrimento e tolher o potencial da humanidade. Por fim, aquelas teorias ou campos que coadunam com uma leitura subjetivista de realidade, mas não tem uma preocupação com a mudança social, ou seja, contribuem para, no máximo, a reforma incremental da realidade, são classificadas pelos autores como interpretativistas, ocupando o quadrante inferior esquerdo do modelo (Burrell & Morgan, 2019).

Fonte: Burrell & Morgan (2019, p. 22, tradução nossa)
Segundo Burrell e Morgan (2019), dentro do espectro FUNCIONALISTA se encontra todo o rol de teorias e abordagens que se dedicam a criar mecanismos e técnicas de gestão para fazer com que organizações, empresas e mesmo o Estado funcionem melhor, a partir da perspectiva da manutenção de seu funcionamento normal. Nesse sentido, o foco da produção nesse campo é a performance das organizações. O pensamento funcionalista normalmente não percebe, ou melhor, não se preocupa em enxergar que pode possuir uma função política implícita, a de servir aos indivíduos, grupos ou frações de classe cujos interesses são dominantes nas organizações, pois acreditam que a validade dos saberes produzidos é universal e, portanto, é útil em qualquer circunstância sócio-histórica.
O INTERPRETATIVISMO, por sua vez, reúne o conjunto dos estudos organizacionais cuja matriz de pensamento busca a descrição das realidades em sua subjetividade e especificidade. Os autores argumentam que muitos interpretativistas terminam por contribuir para a sociologia da regulação simplesmente porque seu posicionamento é eminentemente contemplativo, ou seja, não engajado. Em verdade, a perspectiva interpretativista parte da premissa de que a compreensão objetiva da realidade prescinde da necessidade de interferir nessa realidade, reforçando uma atitude de neutralidade política, embora de não-neutralidade axiológica.
Por fim, tanto ESTRUTURALISMO RADICAL como o HUMANISMO RADICAL, juntos, comporiam o espectro de produção de conhecimento que hoje chamamos de Estudos Críticos de Gestão. Nesses dois quadrantes se encontrariam aqueles trabalhos cujo objetivo transita desde a denúncia de formas de opressão e processos sociais de dominação, exclusão ou controle que expõem as contradições materiais e objetivas das realidades estudadas, como as produções engajadas na mudança radical por meio da crítica das estruturas sociais de opressão: capitalismo, racismo, machismo, fundamentalismo religioso etc.
Numa análise preliminar, percebe-se que o modelo de Quatro Paradigmas Sociológicos dos Estudos Organizacionais (4PSEOr) de Burrell e Morgan (2019) funciona como um tipo de meta-teoria, uma estrutura de compromissos que se posiciona ex ante post o desenvolvimento de uma sistemática de conhecimento. Ou dito de outra forma, antes do esforço de pesquisa, um autor ou coletivo científico se compromete previamente com premissas típicas da (i) sociologia da regulação, (ii) sociologia da mudança radical, (iii) subjetivismo ou (iv) objetivismo. Daí, a pesquisa se realiza a partir de um dado conjunto de valores e escolhas sócio-filosóficas prévias.
Em seu livro, num primeiro momento os autores apresentam essas escolhas como unívocas; como se tratassem de arcabouços excludentes entre si. Mas no decorrer do trabalho reconhecem que certas perspectivas de pensamento organizacional transitam em espaços intermediários, não unívocos, resultando em abordagens a meio-termo, não totalmente regulatórias, não complemente radicais, assim como não inteiramente objetivistas ou subjetivistas. É o caso, por exemplo, da abordagem institucional, que permite uma critica social em nível estrutural, por meio de uma pretensão até nomotética, sem, no entanto, negar o voluntarismo nem se engajar em proposições de ruptura da ordem social (ver, por exemplo, a Nova Economia Institucional de Douglass North).
Argutamente, Paes de Paula (2016) fixa nessa crítica da incomensurabilidade paradigmática para, a partir daí, propor seu modelo de três matrizes epistêmicas e a noção de abordagens sociológicas puras e híbridas. Mas, é preciso notar que Burrell e Morgan (2019) não se comprometem em dizer que os paradigmas são incomensuráveis. Perspectivas como institucionalismo, estruturalismo, entre outras, aparecem em seu modelo não como formas puras, mas em posições relativas no continuum entre os extremos do modelo. Na minha opinião, a proposta de Paes de Paula não substitui o de Burrell e Morgan, mas acrescenta e enriquece.
Por fim, é preciso ressaltar a contribuição de Burrell e Morgan, ao colocar o campo dos estudos organizacionais como objeto de reflexão. Ao fazê-lo, revelam uma estrutura — um processo social complexo, histórico, com características que ao mesmo tempo constrangem e reforçam comportamentos e escolhas de indivíduos —, uma estrutura social de produção de conhecimento sobre organizações e gestão. Reconhecer essa estrutura, as escolhas filosóficas e sociológicas por detrás, não deve contribuir para um enrijecimento de possibilidades, afinal, talvez outras questões sociológicas e filosóficas possam vir a ser levantadas (como ontologia da ação social, posição centro-periferia, adesão ocidente-oriente). Mas, nos ajusta a compreender uma camada de escolhas.
Outros trabalhos, como os já citados de Astley e Van de Ven (2005), Klikauer (2016), Paes de Paula (2016) ou Reed (2010), mostram camadas adicionais dos fenômenos e processos ali abordados, todas necessárias para se construir um vislumbre desse campo, mais uma vez, vasto, complexo, contraditório, dinâmico, que reúne administração e estudos organizacionais.
Referências
Astley, W. Graham & Van de Ven, Andrew H. (2005). Debates e perspectivas centrais na teoria das organizações. Revista de Administração de Empresas, 46(2), 52-73.
Burrell, Gibson & Morgan, Gareth (2019). Sociological Paradigms and Organizational Analysis: Elements of the Sociology of Corporate Life. London, UK; New York, US: Routledge.
Klikauer, Thomas (2018). Critical management as critique of management. Critical Sociology, 44(4-5), 753-762.
Reed, Michael (2010). Teorização organizacional: um campo historicamente contestado (Trad.: J. C. de Souza & M. C. Lima). In Clegg, Stewart R., Hardy, Cynthia & Nord, Walter R. Handbook de Estudos Organizacionais (pp. 61-103). São Paulo: Atlas.
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