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Muito de nosso tempo presente — no meu caso, o Brasil em meados do ano de 2025, com Congresso conservador e um Presidente de esquerda, Luís Inácio “Lula” da Silva, em processo de constrangimento simbólico e tentativa de emparedamento institucional — remete à reação liberal-conservadora a partir de 2013. A lógica e o sentido das mudanças impostas ao Estado brasileiro, sobretudo após o golpe de 2016, podem ser captados por meio de três recursos teórico-conceituais: necropolítica, superexploração do trabalho e neomalthusianismo. A tentativa de expurgo simbólico, político e objetivo do Partido dos Trabalhadores e a ascensão da nova direita foi a maneira por meio da qual se tornou possível, no Brasil, o retorno da agenda neoliberal à pauta de prioridades do Estado.
Essa agenda de reformas neoliberais, apenas relativamente abrandada pelos governos PT e retomada radicalmente após 2016, parece se revestir de três objetivos concretos, nunca declarados: (i) a consolidação de políticas públicas com o objetivo de manejo social por meio da ameaça, da morte e da violência institucionalizadas e (ii) a operacionalização de formas de exploração do trabalho incapazes de assegurar a reprodução dos trabalhadores para, assim, (iii) promover uma gestão radical de controle populacional. Tudo isso para desarticular a capacidade do Estado em fazer frente aos interesses capitalistas; ou melhor, para reprogramar parcelas do Estado que ainda não trabalhem diretamente para o Capital, de modo a voltá-las para seu serviço exclusivo.
A partir do governo-tampão de Michel Temer, se deu início a um novo ciclo de (assim chamadas) reformas neoliberais com o pretenso objetivo de modernizar as relações trabalhistas, atrair investimentos e fomentar a retomada econômica (Saad-Filho; Morais, 2018). Isso a despeito de se disporem de extensos e abrangentes estudos científicos que revelam a incapacidade de princípios neoliberais promoverem efetivo desenvolvimento econômico e social.[1] Mesmo assim, como tem sido a lógica em países como México, Argentina, Chile, entre outros (Ibarra, 2011), a partir de 2016 também no Brasil começa a se formar um legado de pífio crescimento econômico, recrudescimento da pobreza, trabalho precarizado e falência dos serviços fundamentais (Palmeira Sobrinho, 2019), o que histórica e reiteradamente acompanha as reformas neoliberais (Saad-Filho; Morais, 2018).
Desde a terça parte do século XX, mais ou menos a partir do final dos anos 1960, se percebe que uma das principais crises que o capitalismo mundial enfrenta não é necessariamente social, mas no que concerne à exaustão do meio ambiente natural como fonte de recursos para formação de valores de uso. Trabalhos como os de Angus (2016), Moore (2016), Newell (2012) e Ruuska (2018), entre muitos outros, sugerem que a expansão capitalista se aproxima de um limite impeditivo e constrangedor: a capacidade de carga do planeta. A pressão sobre os ecossistemas causada tanto pela exploração comercial de recursos naturais, como pela poluição, descarte de resíduos tóxicos, lixo etc., põe em risco a manutenção das condições mínimas de sobrevivência não apenas das gerações futuras, mas até mesmo destas já nascidas (Newell, 2012).
Ainda assim, a lógica capitalista de expandir exploração, consumo e descarte continua. Os ciclos de vida de produtos desde então foram encurtados ao extremo — roupas duram uma estação, eletrônicos contam-se em meses, até mesmo veículos tem que ser trocados anualmente a fim de se acompanhar o assim chamado ciclo de inovação —, os Estados nacionais foram diuturnamente combatidos como maiores vilões da economia, até mesmo as empresas tem sido constrangidas a entregar rentabilidade cada vez maior em períodos cada vez menores. Ademais, a integração das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) ao dia-a-dia das pessoas criou uma camada (leia-se “pântano de lixo tóxico”) de desinformação, praticamente encarcerando-as dentro de gaiolas ideológicas de negacionismo, ostentação, relações efêmeras e consumismo acrítico. Todos agindo como se o problema ambiental não existisse de fato.
Não parece lógico supor que a classe capitalista ignore o risco ambiental de sua atividade. Tampouco se pode acreditar que líderes bem informados, independente se à esquerda ou à direita do espectro político, não tenham consciência de quão próximos estamos do abismo. Seria ingênuo supor que pessoas como Elon Musk, Jeff Bezos, Rish Sunak, Mark Zuckerberg, a despeito de seus discursos negacionistas e egocêntricos, não estão à par das causas e efeitos estruturais do recrudescimento de seu modo de vida. Seu acesso à informação de qualidade, capacidade computacional e meios de investigação avançados, exaustivos e exclusivos não pode ser sequer comparado a de uma pessoa comum. A verdade é que, a despeito da crise, Bilionários mais que dobraram suas riquezas na última década, segundo dados da ONG Oxfam.
Parece de fato existir uma agenda subjacente entranhada no sentido largo das reformas neoliberais impostas à países periféricos e populações marginalizadas das nações centrais: uma gestão populacional radical. O neoliberalismo não visa promover desenvolvimento, sequer crescimento econômico, mas o contrário. Em última instância, seu objetivo parece ser o de (i) concentrar rendas e riquezas nas mãos de uma elite, enquanto que (ii) promove o extermínio populacional dos menos aptos para, assim, reduzir a pressão ambiental e assegurar um planeta viável para aquelas mesmas elites. Esse expurgo não se dá diretamente (ainda!), mas por meio da exposição a doenças, precariedade e violência dos aparatos públicos de saúde e segurança, superexploração do trabalho e da hipercompetição entre trabalhadores.
Em outras palavras, a lógica por trás das reformas neoliberais é a redução populacional por recurso indireto e covarde que, além de tudo, tenta transferir responsabilidade para a própria classe trabalhadora. A única escolha possível do trabalhador “livre” é se deixar explorar ao extremo, no limite de suas forças, por uma remuneração menor do que o suficiente. Assim, o Capital gerencia o genocídio silencioso do abandono, não numa câmara de gás, mas numa estufa de rancor e ódio. Em outras palavras, superexploração, neomalthusianismo e necropolítica.
Referências
Angus, I. (2016). Facing the Anthropocene: Fossil Capitalism and The Crisis of The Earth System. New York: Monthly Review Press.
Dardot, P.; Laval, C. (2016). A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. Trad.: M. Echalar. São Paulo: Boitempo.
Dumenil, G. & Levy, D. (2004). Capital Resurgent: Roots of the Neoliberal Revolution. Trad.: D. Jeffers. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
Harvey, D. (2005). O Neoliberalismo: História e Implicações. Trad.: A. Sobral, M. S. Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola.
Ibarra, D. (2011). O neoliberalismo na américa latina. Revista de Economia Política, 31(2), 238-248.
Mbembe, A. (2018). Necropolítica. Trad.: Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições.
Moore, J. W. (2016). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and The Crisis of Capitalism. Oakland, Canada: Kairos.
Newell, P. (2012). Globalization and the Environment: Capitalism, Ecology and Power. Cambridge, Mass.: Polity Press.
Sobrinho, Z. P. (2019). As políticas públicas e o austericídio neoliberal: a desconstrução da cidadania e o retorno do Estado policial. Fides, 10(1), 11-28.
Ruuska, T. (2018). Reproduction Revisited: Capitalism, Higher Education and Ecological Crisis. Mayfly Books.
Saad-Filho, A. & Morais, L. (2018). Brazil, Neoliberalismo Versus Democracy. Londres: Pluto Press.
[1] Como é possível inferir a partir de Dumenil e Levy (2004), Harvey (2005), Dardot e Laval (2016), bem como Saad-Filho e Morais (2018), as reformas neoliberais se mostram muito mais como meios de intensificação da exploração capitalista da natureza e do trabalho, assegurando a concentração de riquezas enquanto expõe exponencialmente a população à situações de risco.
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