As Forças Armadas e o Golpismo no Brasil

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Vira e mexe encontramos militares da ativa, reserva, ou mesmo organizações das forças armadas em situações constrangedoras. Nessa semana, um General de quatro estrelas foi preso por tentativa de interferir em uma investigação que apurava sua responsabilidade em diversos crimes; dias atrás, outros militares de alta patente foram presos por associação com as tramas golpistas do bolsonarismo; mais além, ficamos sabemos de que as forças especiais do Exército estavam envolvidas em uma plote cartoonesca para o assassinato de líderes eleitos nas eleições de 2022; anos antes um general, portador de doença degenerativa, teve a ousadia de ameaçar as instituições democráticas numa postagem em rede social na internet (o que, cá entre nós, é um tanto ridículo). Ditadura, golpes, golpes dentro de golpes, humilhações em campanhas patéticas, as forças armadas brasileiras guardam um longo histórico de vergonha alheia e nacional.

Isso tudo enquanto um político carioca paulista, entre aqueles que tentam disputar o espólio da extrema direita no Brasil, instrumentaliza a Política Militar — resquício da polícia política da ditadura, a mesma que insiste em continuar seu legado de violência, tortura e cinismo — da unidade federativa que governa, com o intuito gratuito de extermínio assédio da população preta e pobre. Pausa para uma lembrança: durante a ditadura, os governos militares se associaram a traficantes, empresários corruptos, estelionatários e outras modalidades de criminosos de baixíssimo escalão (algo mais ou menos parecido com o que aconteceu durante a presidência de um certo inelegível), para tentar instrumentalizar uma coalização fascista de poder reacionário. Vale destacar que o resultado, além de uma “grande bagunça” administrativa (nos demonstrou Elio Gaspari), também trouxe instabilidade social e política (vide Renè Dreiffuss), bem como tragédia econômica, tanto em termos liberais (ver Economia Brasileira de Bresser Pereira), como críticos (ler A Formação do Capitalismo Dependente no Brasil de Ladislau Dowbor).

Em resumo, as forças armadas brasileiras, sua história e pretensões, compõem um caso de insucesso no que diz respeito ao atendimento de sua função primordial, com requintes de crueldade. Por isso, acredito que é preciso trabalhar pela sua extinção.

Por que o Exército Brasileiro Precisa Acabar?

Primeiro, porque o exército brasileiro é golpista. Golpista em sua gênese, diga-se de passagem. A criação da República brasileira, por avanço que tenha representando em relação ao regime imperial totalitarista que sucedeu, foi resultado de uma quartelada. Depois, as mesmas forças armadas estiveram do lado de rupturas da democracia em 1930 com Getúlio Vargas, apoiando o autogolpe desse mesmo ditador fascista em 1934, na quartelada de 1964 iniciando um perverso período de violência e incompetência de gestão até 1986, adiante apoiando o golpe de 2016 que impetrou impeachment contra a então Presidenta Dilma Rousseff. E agora, mais recente, não apenas parcelas do exército integraram o governo de extrema direta de Jair Bolsonaro ativamente, como se articularam para mantê-lo no poder por meios ilícitos.

Detalhe, o golpe de 2022 só não chegou às vias de fato por incompetência e falta de interlocução internacional.

Em segundo lugar, é preciso assumir que manter a instituição do exército nos termos que foi se construindo ao longo dos anos é um risco muito grande. Teses golpistas perpetuam-se nas academias de formação militar, como o suposto poder moderador que seria da competência das forças armadas, ou a interpretação equivocada do Art. 142 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988), acreditando que daria ao exército a legitimidade para intervir na ordem democrática. Sob a tutela do exército, o Estado mantém equipamentos militares (armas, veículos, tecnologias) que podem, aliás, que até já foram utilizados para afrontar e ameaçar instituições. Mesmo a justiça militar foi talhada para proteger a caserna de responsabilização por seus crimes, excessos e assédios, trabalhando, pelo contrário, como mecanismo para enfrentar quem se opõem à lógica corrupta do exército. Por tudo isso, as forças armadas brasileiras são uma ameaça contra a democracia e o povo brasileiro.

Uma terceira justificativa para esse clamor está no fato de que as forças armadas como as conhecemos são uma instituição da época das revoluções burguesas, antiquada e fora de seu tempo. De um modo geral, os principais institutos do exército regular — hierarquia rígida, patentes, estratégia centralizada top to down com pressuposto de jogos de soma zero, obediência unilateral a uma estrutura fixa de valores, inclusive a sugestão de que a guerra seria extensão da política — se formaram entre os séculos XVIII e XIX, como força auxiliar da nova ordem capitalista que então buscava se estabelecer. No entanto, de lá para cá as relações sociais, tecnologias, forças produtivas e mesmo estruturas políticas mudaram, se complexificaram e evoluíram. Países se tornaram democráticos, vislumbramos o surgimento das tecnologias digitais de informação e comunicação, avanços científicos em campos como física, química, biologia e ecologia, assim como desenvolvimentos das humanidades e ciências sociais aplicadas para compreensão de processos sócio-históricos de grande complexidade, como racismo institucional e estrutural, patriarcado, hegemonia cisgênere, exploração capitalista etc.

No processo, os exércitos regulares hierárquicos se mostraram muito eficientes na transformação de conhecimento em meios de violência cada vez mais assustadores — armas químicas, nucleares, guerras digital, híbrida e de informação etc. —, mas se provaram também incapazes em prover um cenário de segurança duradoura no plano internacional. Em verdade, a escalada armamentista que seguiu a associação entre ciência de fronteira e exército arcaico nos legou armamentos incendiários, bombas de fragmentação, agentes desfolhantes, bombas sujas, até a destruição mútua garantida (MAD, no inglês para mutual assured destruction). Ao invés de aumentar as oportunidades de paz, armado com o esplendor da ciência moderna o exército nos entregou um mundo à beira da destruição.

Tudo porque as renovadas capacidades técnicas da ciência de fronteira estão sob a tutela de instituições envelhecidas. A hierarquia rígida, que era uma inovação organizacional três séculos atrás, não mais corresponde à maneira mais eficiente de conduzir grupos de trabalho. O princípio da obediência unilateral a uma estrutura fixa de valores, hoje, é percebido muito mais como alienante que motivadora, causando estranhamento e conflitos que levam a exaustão mental e física, ou mesmo atraindo tipos humanos propensos a menor empatia e mais dispostos (ávidos?) por soluções violentas. Estratégias centralizadas top to down se mostram distantes da realidade concreta, incapazes de assimilar inovações, constrangidas pela racionalidade limitada dos tomadores de decisão e, no limite, menos flexíveis, abrangentes e eficazes.

Em quarto lugar, as atribuições do exército brasileiro se mostram incertas. O escopo de atuação das forças armadas brasileiras tem limites fluídos, ao menos ao julgar pelas aspirações dos próprios militares. Tomando sua perspectiva, ao exército caberia a segurança interna e externa do país, como autoridade máxima de enfrentamento de violações nas normas e condições de conduta, com poderes de polícia e agressão, inclusive ostensivos. Isso tudo é permitido por uma legislação ambígua, visto que mesmo a CFRB/1988 guarda em si artigos que permitem, por exemplo, o presidente convocar o exército para uma operação de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO), conforme o já mencionado Art. 142. De fato, essas atribuições sobrepostas colocam a instituição militar no Brasil em uma posição que não deveria lhes ser de direito.

Idealmente, as forças armadas devem assumir uma função de proteção contra agressões externas, e só. Em outras palavras, na situação de uma invasão, ameaça ou tentativa de intimidação por parte de uma nação estrangeira beligerante, o exército atuaria para manter a integridade dos interesses do país, bem como a segurança dos nacionais. Agir contra a própria população é uma violação grosseira desse princípio, algo que os mais de 80 disparos de fuzil feitos contra o carro do artista carioca Evaldo dos Santos Rosa — que levava seu sogro, esposa e filho de 7 anos de idade para um chá de bebê — (entre uma lista extensa de abusos e violência) atesta ser prática comum e enraizada na estrutura do exército brasileiro.

Como Acabar com o Exército?

Por tudo debatido até aqui, advogo firmemente que as forças armadas brasileiras têm que deixar de existir. Não simplesmente mudar, trocar nomes, ou pessoas. Não se trata apenas de ser necessário uma reforma, por abrangente que se imagine. Toda a institucionalidade corrupta, hierarquia, normas, procedimentos, pretenso aparato de “justiça militar”, precisa ser simplesmente desmontada, reduzida ao zero. Não há ali o que aproveitar. Dos restos, pode até ser criado um museu, um centro permanente de estudos e pesquisas, para nos lembrar de até onde a idiotice humana pode chegar. Mas, apenas isso e nada mais.

Agora, apesar de não ser especialista em organização militar, ou mesmo estudioso de aparatos de segurança nacional, tenho uma sugestão para colocar fim no exército.

O primeiro passo poderia ser a criação de uma estrutura alternativa de segurança nacional, constituída segundo as concepções mais contemporâneas e eficazes de gestão, exclusivamente para a defesa contra agressões externas. Essa estrutura pode ser moldada segundo as tecnologias mais recentes, não dividida em exército, aeronáutica e marinha, mas em dimensões como segurança informacional/digital, artefatos remotos de combate (drones), aeroespacial, tecnologia submergível, entre outros. Talvez uma estrutura em rede, colaborativa, com orientação para resposta rápida e adaptativa.

Essa nova estrutura de segurança conviveria em paralelo com o exército regular por um tempo, para reforçar sua curva de aprendizagem, mas seria formada sem nenhuma interferência, consultoria, nada relacionada com o exército. Gradativamente, as forças armadas tradicionais deveriam ter seus orçamentos redirecionados para a nova agência, paralisando aos poucos suas operações até que o exército arcaico deixe de existir em definitivo. Quando isso chegasse ao cabo, títulos, patentes, pensões, tudo deveria ser revogado.

Além disso, as forças internas de segurança deveriam ser fortalecidas. Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícias Civis precisariam ter seus escopos e orçamentos ampliados para cobrir todos espaços de relação entre nacionais no país, de modo a ocupar possíveis gaps. Tanto as polícias militares, como a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), por seu comprometimento estrutural com o exército e aquelas mesmas teses golpistas, deveriam ser extintas impreterivelmente.

Por fim, as estruturas de treinamento das forças de segurança remanescentes deveriam passar uma grande revisão, para reforçar compromissos com a ordem democrática, com o bem-estar da população e com uma lógica de liberdade que contemple o respeito às diferenças e modos de vida, visando atacar e mitigar possíveis vieses raciais, de gênero, etnia, classe social, entre outros, que ainda ecoam naquelas instituições.

Sugiro que todo o esse novo aparato de segurança deva estar sob a vigilância de uma corregedoria civil, fora de suas estruturas hierárquicas, bem como sob a égide da justiça comum, como todos os nacionais. Assim, se garantiria controle social, coletivo, democrático, sobre as estruturas de segurança, haja vista o fato que de se concentrariam exclusivamente na execução de suas atividades segundo o escrutínio público.

Talvez assim, e só assim talvez, teremos um aparato capaz efetivamente de prover segurança social, militar, política e jurídica. Tudo que as forças armadas hoje em dia, mesmo historicamente, são incapazes de prover.

Paliativos?

Na circunstância de que não seja possível extinguir o exército de pronto, poder-se-iam estabelecer algumas medidas para minimizar sua ingerência sobre a vida pública brasileira. Essas medidas, se firmadas de modo a serem capazes de resistir aos interesses transitórios de políticos ávidos por poder, atenção ou vontade de ver o circo pegar fogo, podem ser capazes de, se não controlar, ao menos limitar o ímpeto golpista das forças armadas:

1. Estabelecimento de um período de quarentena entre a efetivação da reserva e a possibilidade de que ex militares e ex-policiais possam concorrer a cargos eletivos. Já existe uma proibição de afiliação a partidos, mas um militar ainda pode concorrer de dentro da caserna. Firmar uma quarentena de, digamos, quatro anos entre a reserva e o pleno exercício dos direitos políticos colocaria um distanciamento na capacidade de um militar usar as forças armadas para seu benefício pessoal.

2. Submissão do exército a justiça comum. Em casos específicos, militares podem ser julgados pela justiça comum; notadamente, quando suspeitos fora da caserna. Eu acredito que a justiça militar precisa se extinguir, ou melhor, pode existir como uma possibilidade, não ativa, a ser acionada apenas em casos de conflito para julgar questões concernentes a atuação de militares durante as hostilidades. Para todo o resto, o direito militar deveria passar ao escopo do direito civil e penal comuns, sem regalias.

3. Gestão de pessoas do exército deve ser administrada por uma agência civil. Aposentadorias milionárias, pensões vitalícias para familiares, pensões por falecimento em vida, é longa a lista de abusos perpetrados pela gestão de pessoas corporativista da caserna. Muito porque quem ali trabalha é hierarquicamente inferior a quem deve gerir; grande parte porque protegem privilégios dos quais, mais adiante, irão usufruir. Fazer essa gestão fora, por parte da ação civil de não subordinados nem interessados, com carreira própria e autonomia, permitiria chegar mais próximo da isonomia.

4. Corregedoria civil. Exército e polícias militares têm o privilégio de atuar como autorreguladores de suas práticas e ações. Esse expediente tende a comprometer a qualidade da regulação, dado que hierarquia e corporativismo podem desincentivar o controle efetivo, amainar punições e expor investigadores. Se a corregedoria for civil, com carreira independente, haverá maior distanciamento entre investigadores e investigados, com potencial de diminuir as sobreposições e situações de conflito de interesses.

5. Clarificar a constituição no que tange ao papel das forças armadas. Por fim, é preciso lembrar que já passou da hora da CRFB/88 ser ajustada para não permitir nenhuma interpretação golpista de seus termos no que diz respeito ao papel do exército. Especificamente, deve-se suprimir qualquer possibilidade, permanente ou episódica, de ingerência militar sobre assuntos civis. Se o Estado precisa de uma força nacional para intervir em situações de manutenção da ordem, que instrumentalize a Polícia Federal para tanto, ou crie uma agência de segurança com essa função específica, moldada segundo as premissas de uma democracia. Às forças armadas brasileiras, dado sua predileção pela ruptura da ordem democrática, não deve ser concedida nenhuma ambiguidade na descrição de funções e poderes.


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