Estado, Governança e Administração Pública[1]


[1] Texto com fins didáticos, elaborado em fevereiro de 2024 como referencial complementar da disciplina Administração Pública do Bacharelado em Administração da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) em 2024.1.


Quando somos questionados sobre o conceito de Estado, é comum termos dificuldade em formular precisamente. O Estado é uma instituição (?) enorme, praticamente onipresente, que evoca emoções as mais contraditórias, até mesmo algumas ideias radicais. Se o assunto é como o Estado funciona, as dúvidas persistem, multiplicam-se quiçá. Afinal, que função(ões) tem o Estado? Persegue (ou faz sentido perseguir) uma estratégia? O que é Governo? Onde a governança entre nessa discussão? Do que se trata a administração pública? E, talvez mais importante, como os processos sociais que esses conceitos representam se relacionam entre si?

Nesse breve texto, nosso objetivo é estabelecer uma compreensão inicial sobre Estado e Governo, e o que isso implica em termos de Governança e Administração Pública, para iniciar o debate, como um tipo de desambiguação com o intuito de dirimir as confusões mais corriqueiras. Em comum, esses conceitos[1] se referem a processos sociais. Processos sociais emergem da relação entre as pessoas e, portanto, são existências intangíveis (o que não os torna menos importantes ou influentes), cujas naturezas são complexas, singulares, históricas e dinâmicas.

Não é preciso dizer, pois é quase autoexplicativo, mas ainda assim, um Estado é complexo dado que composto por uma miríade de subprocessos, interesses, instituições, profissionais das mais diversas e especializadas formações, que se influenciam e repelem ao mesmo tempo, nem sempre de forma harmônica. Essa complexidade é singular porque cada manifestação do Estado é particular, se ergue junto a cultura, estrutura social, material e composição étnica específicas, instalada em um espaço geográfico diferente da de qualquer outro.

A singularidade do Estado decorre também de sua historicidade. Cada Estado foi se formando gradativamente ao longo dos séculos, por meio de rupturas e composições, tragédias e vitórias, o que lhes conferiu trajetórias, ao mesmo tempo, incomparáveis e irrepetíveis. Mesmo os Estados mais recentes têm uma biografia, uma ancestralidade única. E, não podemos deixar de mencionar, o Estado continua mudando. As relações humanas não são as mesmas, opiniões surgem e se transformam, interesses são atendidos, aprimorados e renovados, recursos se esgotam. Essa dinâmica não significa necessariamente uma evolução, mas muito mais um acomodar-se, expansão e retração, sem precisar corresponder a uma lógica ou sentido; trata-se da dinâmica histórica.

Por isso mesmo coexistem muitas teorias do Estado, tantas que é difícil mapear; desde a antiguidade até a modernidade; que parecem se multiplicar à medida que os Estados se diferenciam e se complexificam. Mas existem algumas regularidades que podem ser evocadas, ao menos no nosso tempo histórico.

Desde a revolução burguesa na Europa, as sociedades ocidentais passaram a se fundamentar na separação entre os interesses privados e coletivos (a res publica), estes últimos sendo elegidos como objeto do Estado por excelência. Naquele contexto de surgimento da modernidade, prevaleceu uma ideia de Estado composto por três poderes independentes e interdependentes. Hoje, na prática O Estado funciona como um verdadeiro ecossistema de instituições — polícia, Universidade, hospitais, câmaras legisladoras, exército, agências de regulação, tribunais, diplomacia etc. —, uma verdadeira rede organizacional onde convivem perspectivas de organização pública ontologicamente antagônicas, contraditórias, incompatíveis até.

Tudo isso porque perdura ali uma constante disputa acerca do que seriam os interesses coletivos, sobre como devem ser identificados, analisados, priorizados e perseguidos. Empresários, exportadores, importadores, ruralistas, pequenos burgueses, profissionais liberais, agricultores familiares, banqueiros, religiões minoritárias, igrejas, intelectuais, sindicatos, lojistas, grupos identitários, comunidade LGBTQIA+, feminismos, torcidas organizadas, regionalismos, classes profissionais (inclusive aquelas empresas de dentro do próprio Estado), cada fração social carrega um rol particular de representações e objetivos sobre como conduzir a coisa pública. Cada subgrupo clamando para si legitimidade e universalidade para seus anseios e opiniões.

Bem, tendo colocado essas premissas em linha, podemos então chegar a dois dos conceitos que precisamos:

  • “Estado” seria o ecossistema institucional, ou a rede organizacional complexa, singular, histórica e dinâmica, onde aquele conjunto contraditório de interesses se encontra para resolver suas diferenças. Suas funções ideais são a de perseguir as aspirações coletivas, mediar as fricções entre as vontades e demandas particulares, bem como acomodar as sobreposições e conflitos entre essas diferentes instâncias.
  • “Governo”, por sua vez, pode ser conceituado como o grupo de representantes que está no poder, quem atualmente tem a obrigação e o direito de administrar o Estado. Normalmente, chama-se de “Governo” especificamente aqueles que assumem o Poder Executivo, muito embora no presidencialismo de coalização brasileiro os Poderes Judiciário e Legislativo se revistam de certo protagonismo na definição de políticas públicas (portanto, em última instância, fariam também parte do “Governo”).

Estado, portanto, é uma institucionalidade perene, enquanto que os governos são passageiros na medida em que, de acordo com o ciclo político, uns sucedem aos outros. No entanto, são os governos que, ao acomodar interesses e reconfigurar/aprimorar o funcionamento das instituições, vão moldando o Estado no tempo. Dessa forma, pode-se dizer, não sem um certo grau de simplificação, que o manejo da coisa pública pelo Governo se dá em pelo menos dois níveis:

  • Dos atores sociais que influenciam e se fazem representar politicamente, exigindo análise, negociação e mediação de interesses públicos e privados em sua pretensão de influenciar o delineamento dos objetivos gerais assumidos pelo Estado. Esse é o nível da “Governança”;
  • E o patamar das organizações e classes profissionais que compõem o Estado, divididos entre administração direta e indireta, envolvendo órgãos, institutos, Universidades, autarquias, empresas públicas, assim como planejadores, força policial, auditores, reguladores etc. Esse nível compreendemos por “Administração Pública”.

A “governança” do Estado é a lida com atores sociais que não são subordinados ao seu processo decisório e, portanto, precisam ser convencidos (ou consultados) acerca de projetos e políticas; diz respeito à relação entre Estado e sociedade. A “administração pública” corresponde a gestão dos atores organizacionais que são hierarquicamente subordinados ao Governo, os quais têm obrigação de assistir e executar programas, políticas e ações segundo os objetivos assumidos para o Estado. O nível da administração pública, por sua vez, se segrega em mais duas instâncias:

  • A “Estratégia” – a coordenação geral da rede de organizações que compõem o Estado, em termos de estabelecer coerência e alinhamento de seus fluxos decisórios para que contribuam de maneira sinérgica para os objetivos traçados;
  • E a “Gestão” – que promove ajustes nas organizações e políticas públicas, em vistas de otimizar os usos de recursos de capital, tecnológicos e humanos para promover o melhor funcionamento, por assim dizer, produtivo do Estado.

Dadas as características do Estado — sobretudo de um como o brasileiro, de proporções continentais, abarcando culturas tão díspares e eivado por conflitos estruturais —, pode-se supor que a estratégia e a gestão da coisa pública são algo de extrema dificuldade. Primeiro, internamente, já que pessoas não são máquinas, têm interesses paralelos, opiniões, lealdades ideológicas e posições de poder que as permitem interpretar, remodelar e mesmo resistir às estratégias perseguidas pelo Governo. Segundo, porque dificilmente uma nação tão plural consegue chegar a consensos claros sobre interesses coletivos, objetivos, modos de alcança-los e mesmo parâmetros de mensuração dos resultados. Isso sem mencionar que, muito provavelmente, os critérios de partilha dos benefícios esperados/alcançados pelo esforço coletivo remetam a interesses irreconciliáveis.

Podemos dizer que cada classe e fração social persegue, quer consciente ou inconscientemente, um projeto de administração política que lhe é particular. E esses projetos são contraditórios, estão em constante disputa. Mas, isso é assunto para uma outra oportunidade...

Para finalizar, é lícito aqui retomar mais uma vez a premissa de que o Estado é um processo social complexo, singular, histórico e dinâmico. Essa compreensão precisa ser estendida, portanto, aos conceitos que derivamos. Mais especificamente, Estado, Governo, Governança e Administração Pública se encontram no espaço de fricção entre os interesses e objetivos das pessoas, tanto individuais como coletivos. Interesses aqueles que vêm se moldando e transformando ao longo do tempo e, inevitavelmente, continuarão a fazê-lo. Portanto, a lição que fica é a da necessidade de que tais processos sejam constantemente revisitados, pois que, à medida que uma sociedade segue sua história, suas instituições a acompanham; não como são hoje, muito menos como foram no passado, e em direção a um futuro incerto.

Referências

BONNET, A.; PIVA, A. (Org.). Estado y capital: el debate alemán sobre la derivación del Estado. Buenos Aires: Herramienta, 2017.

BRYER, T. A. (Org.). Handbook of theories of public administration and management. Cheltenham, UK ; Northampton, USA: Edward Elgar Publishing, 2021.

CARNOY, M. Estado e teoria política. Tradução Equipe de Tradutores do Instituto de Letras da PUC Campinas. Campinas, SP: Papirus, 2013.

DENHARDT, R. B.; CATLAW, T. J. Teorias da administração pública. 2. Ed. São Paulo: Cengage Learning, 2017.

JESSOP, B. The state: past, present, future. Cambridge, UK: Polity, 2016.


[1] Um “conceito” é uma compreensão abstrata de algo da realidade, uma construção mental que ressalta certos aspectos e características que oferecem um entendimento mais ou menos universal sobre aquilo que pretende descrever. O conceito, portanto, não é realidade em si. É um produto da razão humana e só existe como um processo mental, mas que subsidia e justifica as escolhas e práticas de atores reais. Trata-se de uma forma de representação, uma maneira de tornar presente (abstratamente) o que está ausente (objetivamente), isso num argumento, discussão, texto, pronunciamento ou mesmo curso de ação. Por meio do conceito, pode-se “conhecer” algo sem, no entanto, se aproximar do que se pretende conhecer, programar ações sem estar envolvido diretamente. Um conceito é tanto mais forte, quanto mais for aceito pelas pessoas, sobretudo por grupos sociais legitimamente vinculados ao fenômeno ou processo social que representa.


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