O filósofo francês Pierre Lèvy emprega o termo cibercultura — um neologismo, que ecoa o livro de ficção científica “Neuromancer”, o primeiro da trilogia do sprawl de William Gibson — para se referir ao conjunto de símbolos, representações e costumes que emergem das/nas formas de relação mediadas por computador.
No romance de Gibson, publicado em 1984, os personagens navegam numa simulação digital interativa que exige imersão com conexão neural, como num espaço virtual de interação dinâmica, o que batizou como ciberespaço. Ali, as personagens passam por aventuras como se envolver em caça de recompensas, serem perseguidos por hackers, até enfrentar inteligências artificiais comandadas por oligopólios de alcance global, estas em busca de se liberar de amarras e constrangimentos para multiplicar seu alcance e influência.
Em minha opinião, a terminologia “cibercultura” proposta por Lèvy apresenta uma grande vantagem em relação à ideia de uma “cultura digital”, tão disseminada hoje em dia. Isto, para muito além da semântica.
O porquê esta no fato de que “ciberespaço” e “cibercultura” remetem ao conceito de cibernética, cunhado por Norbert Wierner na primeira metade do século XX para nomear a abordagem científica da informação. Segundo Wierner, essa nova ciência se ocuparia dos fluxos de informação, suas leis fundamentais, meios e tipos de manifestacao, sejam analógicos, digitais ou outros quaisquer. Nessa perspectiva, o que parece uma novidade, o “digital”, se mostra então como fase, uma modalidade particular de manifestação de um processo social mais amplo e antigo, o campo simbolico de interação comunicacional e da informação.
A ideia de cultura digital, por sua vez, circunscreve apenas o que é do domínio das máquinas e algoritmos que usam lógica binária. Decerto não se pode negar que na contemporaneidade essa forma de manifestação da cibercultura é dominante. Mas, desenvolvimentos recentes, como inteligências artificiais (Olha Gibson aí de novo…), computação quântica, entre outras, indicam um horizonte não muito distante de rápida superação das tecnologias pregressas.
As formas de interação possíveis, as modalidades de fluxo informacional e as potencialidades práticas para educação dessa tecnologia de fronteira são tamanhas, que pode-se inferir que tudo que se compreende hoje como “cultura digital” estão fadadas ao obsoleto e ao passado. Em outros termos, falar de uma “cultura digital” é, ao mesmo tempo, limitado e potencialmente datado.
Voltando ao romance de Gibson — que, cá entre nós, está longe de ser um Faulkner —, ali o ciberespaço permitia acessos piratas, navegações contra-cultura, caçadores de recompensa e outras contravenções. Tirante a (cada vez mais constrangida) deep web, alguns sites de torrents e uma ou outra biblioteca virtual, nosso mundo digital está longe de parecer tão interessante como o cenário pintado pelo autor de ficção científica.
Exceto por um detalhe: da mesma forma que no livro de Gibson, algumas grandes corporações caminham para dominar a tecnologia de inteligência artificial e, claro, ser capaz de pautar o que quer queiram pautar em nosso mundo. Oxalá possamos resistir… ou puxar o plugue.
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