[1] Texto com fins didáticos, elaborado em maio de 2023 como referencial complementar da disciplina Administração Pública, obrigatória do currículo do Bacharelado Administração da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Os estudos sobre o Estado de Bem-Estar se mostram particularmente complexos devido à diversificada variedade de arranjos políticos, sociais e produtivos que, ao longo do século XX, foram incluídos nessa categoria. Os modelos escandinavos — Noruega, Finlândia, Dinamarca e Suécia — se distanciam em muito do que foi criado (e posteriormente desmontado) na Inglaterra; o mesmo pode-se afirmar de França, Alemanha, Bélgica, entre outros, de um lado (modelo continental) e Portugal, Espanha, Itália e Grécia, de outro (modelo mediterrâneo); nos EUA, talvez não se tenha visto algo muito parecido com os Estados de Bem-Estar europeus, muito embora políticos conservadores de lá constantemente discursem contra essa institucionalidade ausente (cada qual enfrenta moinhos de vento que, de certa maneira, escolhe para si, afinal) [1].
A despeito das diferenças históricas e dos papéis atribuídos ao Estado nessas manifestações da noção de bem-estar, uma característica em comum pode ser observada, pelo menos a partir da segunda guerra mundial: a concertação.
O termo “concertação social” é empregado para arranjos políticos de tomada de decisão coletiva. Nesses arranjos, podem ser objetos de discussão e análise qualificada desde simples orientações gerais para o desenvolvimento nacional, passando por aparatos de coordenação produtiva intersetorial, elaboração e distribuição de produtos e serviços por parte do Estado, padrões de gestão, qualidade, eficiência e desenvolvimento humano e profissional a serem adotados por organizações e empresas, até agendas de comportamento e costume com objetivo civilizatório.
De um modo geral, concertação significa firmar uma instância de (ou mais de uma, quiçá uma rede para) diálogo entre diferentes com vistas o alcance de interesses percebidos como coletivos.
Parte-se de duas premissas fundamentais: (i) indivíduos e empresas isoladamente tomam decisões que poderiam desagregar a tessitura social, haja vista sua inclinação predominantemente egoísta e utilitarista; (ii) o mercado, seja como ordem espontânea, instituição ou mecanismo de dominação, seria ontologicamente ineficaz e ineficiente em coordenar escolhas para a manutenção da estrutura social, pois que é pautado por uma dinâmica de concorrência e competição que exacerbaria comportamentos predatórios, antiéticos, corruptos e até mesmo criminosos.
As instâncias de concertação nos Estados de Bem-Estar variam em termos de participação. Os arranjos neocorporatistas típicos do welfare ango-saxão acomodavam sindicatos de trabalhadores, empresas e representantes patronais, sendo o Estado um mediador, em câmaras setoriais. No modelo do mediterrâneo, os países saíam de ditaduras fascistas, estas marcadas por ampla ingerência estatal, para modelos no qual o Estado mantinha protagonismo regulador e uma burocracia desproporcionalmente extensa e influente. O modelo escandinavo, por sua vez, tem no próprio Estado o espaço de concertação, com ampla participação popular em tomadas decisão, mais mecanismos de discussão coletiva e democracia direta.
Ademais, a integração europeia que se inicia em meados do século XX e culmina no Tratado Maastricht em 1992, gradativamente foi diminuindo a autonomia em realizar escolhas de política econômica por parte dos países membros. Esse processo permitiu/obrigou que governos nacionais se voltassem cada vez mais para políticas sociais como forma de estabelecer suas agendas e diferenciação de mandato. Assim, distintos mecanismos de proteção social emergiam como complementos, ou bases a depender do caso, do Estado de Bem-Estar. Por exemplo, o elogiado (pelos trabalhadores) e odiado (pelos empresários) modelo de seguridade do trabalho na França, que se inicia com leis de higiene laboral no século XIX e vai se aprimorando ao longo de século XX até se firmar como um sistema universal e abrangente.
Enfim, aparentemente o que caracteriza de fato o Estado de Bem-Estar não é o bem-estar em si, mas a existência de aparatos de concertação social para diálogo e tomada de decisão coletiva visando o alcance de objetivos e interesses, por assim dizer, nacionais. Isso não significa que todos os interesses estão representados ali de forma equilibrada e equânime, mas que, ao menos, os diferentes atores são colocados num espaço de conversação para tentar negociar suas discordâncias. Negociação a partir da qual são decididos os rumos da nação, para o bem e para o mal.
Referências
HOBSBAWN, E. J. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. Tradução: Marcos Santarrita. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
KERSTENETZKY, C. L. O Estado do bem-estar social na idade da razão: a reinvenção do Estado social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
RAIDT, J. Politics Inc.: America’s troubled democracy and how to fix it. Lanham, MD, US: Rowman & Littlefield, 2022.
SCHWARTZENBERG, R-G. O Estado espetáculo: ensaio sobre e contra o star system em política. Tradução: Heloysa de L. Dantas. São Paulo: Círculo do Livro, 1977.
WOLF, P. J. W.; OLIVEIRA, G. C. de. Os Estados de bem-estar social na Europa Ocidental: tipologias, evidências e vulnerabilidades. Economia e Sociedade, v. 25, n. 3, p. 661-694, dez. 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982-3533.2016v25n3art6. Acesso em: 1 fev. 2023.
[1] Pode-se argumentar que os programas de pensões para militares, os sistemas mistos de assistência como o Medicare, ou mesmo a força que os sindicatos de trabalhadores tinham em New York até a década de 1970, seriam exemplos de um Estado de Bem-Estar Social nos EUA. No entanto, esses programas e contextos nunca chegaram a ser universais; ademais, instâncias de negociação tripartite entre Estado, empresas e trabalhadores foram um fenômeno relativamente raro nos EUA. Logo, a opinião aqui é que essas ilhas de assistencialismo são apenas políticas marginais de compensação, que nunca chegaram a estruturar o Estado profundo no país. Na prática, os Estados Unidos da América se erguem sobre a contradição estrutural entre um Estado com muitos mecanismos práticos de participação e consulta popular, mas dominado por uma plutocracia enraizada numa aparência política do espetáculo e do efêmero.
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