O Estado de Bem-Estar e a URSS[1]


[1] Texto com fins didáticos, elaborado em maio de 2023 como referencial complementar da disciplina Administração Pública, obrigatória do currículo do Bacharelado Administração da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).


A crise de 1929 estava bem vívida na memória. O impasse expansionista dos impérios ocidentais havia levado a dois conflitos mundiais de proporções catastróficas. A Segunda Grande Guerra foi contundentemente vencida pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a despeito do mise en scène do exército aliado em Berlin. A mesma URSS já havia assumido àquela altura a ponta da produtividade industrial no mundo, com melhores taxas de emprego, inovação técnica/tecnológica e redução consistente da desigualdade. Mais adiante largaria na frente da corrida espacial.

Talvez por tudo isso a revolução socialista tenha varrido o leste europeu ainda nos anos 40 e 50. Essas circunstâncias pareciam indicar que o capitalismo era não apenas um sistema excludente e produtor de desigualdades, como também ineficiente em termos políticos e econômicos. Os partidos socialistas e comunistas — que reuniam vastas multidões de operários típicas do modo de regulação fordista — cresciam em representatividade, poder e capacidade de pautar debates em alto nível. Em meados do século XX, para usar um termo de nosso momento atual, a narrativa de mundo era talhada à esquerda.

O Estado de bem-estar social foi a resposta para aquela “ameaça vermelha”; muito mais eficaz, a história demonstra, do que as violentas e administrativamente inapetentes ditaduras enpresarial-militares conservadoras da América Latina, estás últimas as quais serviram apenas para registrar horrores e radicalizar uma ruidosa oposição à esquerda contra si mesmas. O Estado de bem-estar foi uma solução sistêmica, que de um lado assistia ao processo de acumulação capitalista em suas demandas e necessidades, ao mesmo tempo em que atendia (algumas das) expectativas populares.

Com a revolução literalmente em seus quintais, as classes capitalistas europeias, auxiliadas pelo fundo de assistência para reconstrução financiado pelos Estados Unidos da América, montaram no Estado um aparato de dissuasão sem precedentes. De um lado, os Governos se capitalizavam por meio de impostos sobre grandes fortunas e empresas, de outro mantinha um sistema de seguridade social que oferecia saúde, educação infraestrutura urbana (transportes, lazer e saneamento) para as classes trabalhadores.

Claro, a ideia de um welfare state, de um aparato de seguridade voltado contra os efeitos do mercado, antecede a revolução soviética: na Europa, as primeiras leis contra a pobreza que a identificam como um problema social, estrutural, datam da segunda metada do século XIX. Mas, a articulação entre aparatos universais de seguridade, mais a gestão macroeconômica voltada para ajuste da demanda efetiva (de inspiração keynesiana) só se tornariam mainstream (aka: parte do núcleo duro do dogma da narrativa capitalista) após a consolidação da URSS. Antes disso, os muitos esforços de seguridade — quer social ou individual — tinham alcance, recursos e abrangência muito limitada, não tinham um papel funcional na via de desenvolvimento capitalista.

Aquele “aparato de bem-estar”, mais o contexto de pleno emprego associado a práticas de valorização do funcionário (salários mais altos, consumo de massa, proteções legais, modelos gerenciais de desenvolvimento organizacional etc.), contribuiu para o aumento sistemático e generalizado do padrão de vida das populações dos países no centro capitalista no pós-guerra. Entre 1940 e 1970 — os “trinta anos gloriosos”, ou “a era de ouro capitalista” — não apenas se viu o maior e mais pujante período de prosperidade sob a égide do capital, como a economia ocidental logrou igualar e ultrapassar a URSS; até chegando em primeiro lugar à lua na corrida espacial.

Não é incorreto dizer que, o que impediu de fato que a revolução socialista atingisse toda a Europa foi o Estado de bem-estar. As sociedades capitalistas de então tornaram muito grandes os riscos de uma revolução, não em termos de violência, mas de possibilidade de declínio daquele padrão de vida alcançado pelas frações trabalhadoras. Os salários ganharam em poder aquisitivo — também decorrente de uma das premissas da indústria fordista —, os serviços essenciais cresceram em qualidade e universalidade, as economias se tornaram, ainda que por um breve momento, mais estáveis e promissoras. Não havia um porquê que justificasse, num contexto de clara prosperidade geral, o retorno da pauta de ruptura contra os poderes estabelecidos.

Pode-se afirmar que a URSS cumpriu um papel motivador muito importante para a consolidação do Estado de bem-estar social. Haja vista o sucesso e a estabilidade econômica da URSS, era preciso provar, inclusive para a população, que o capitalismo poderia, de fato, entregar sua utopia de uma sociedade mais livre e próspera. Mesmo que, para tanto, fosse necessário negar alguns dos pilares que sustentam o próprio modo de produção capitalista, quais sejam, a liberdade de empresa (por meio da regulação dos mercados de trabalho e de bens e serviços para a população trabalhadora) e a regulação via mercado (tendo o Estado assumido o papel de planejador econômico e articulador da concertação social).

Em certo sentido, foi a URSS quem induziu a disseminação do Estado de bem-estar como lógica mainstream; o mesmo aparato que, mais adiante, contribuiria para seu ocaso.

Quando a URSS dá demonstrações de enfraquecimento de seu ciclo sistêmico de acumulação já a partir do início da década de 1970 (fraquejar este atenuado pelos choques do petróleo, visto que muitos dos países socialistas eram exportadores líquidos de óleo bruto ou derivados), o Estado de bem-estar social começa a ser desmontado por todo o mundo. A despeito das mais variadas justificativas — morais, fiscais, gerenciais, políticas, entre outras —, o que parece pesar é a percepção de que a ameaça socialista já não era tão intimidante. O timming entre a desagregação da URSS e a emersão do neoliberalismo, ou melhor, da tentativa de “retorno” a um capitalismo sem regulação do Estado, é historicamente curioso, não se pode negar.

Referências

EVANS, R. J. O terceiro Reich em guerra: como os nazistas conduziram a Alemanha da conquista ao desastre (1939-1945). Tradução: Lúcia Brito; Solange Pinheiro. São Paulo: Planeta, 2012.

GASPARI, E. As ilusões armadas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. (5 volumes).

GORENDER, J. Fim da URSS: origens e fracasso da perestroika. 11.ed. São Paulo: Atual, 2002.

HOBSBAWN, E. J. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. Tradução: Marcos Santarrita. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

KERSTENETZKY, C. L. O Estado do bem-estar social na idade da razão: a reinvenção do Estado social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.


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