O que distingue os homens dos animais? Platão afirmou que seria a razão, Aristóteles disse que, por outro lado, deveria ser a política, o capitalismo tenta nos convencer que não há diferença, que impera a lei da selva.[1] O que estas definições têm em comum é o fato de que apontam para a existência de um bem imaterial que não é inato, mas surge da interação dos homens com os seus pares: eles falam da cultura, de tudo aquilo que não nasce conosco, mas nos é incutido pela relação social, e que é particular de cada grupamento humano. No senso comum, falar de cultura significa falar de artes, de manifestações religiosas, de fetiches, mas, em verdade, a cultura é tudo o que nos cerca, tudo aquilo que aprendemos com nossos pais e outros seres humanos: a música; o teatro; os símbolos; a linguagem; a moeda; o jeito de andar; os preconceitos; o governo; as leis; entre outros.
A nossa cultura é o que celebra a humanidade, que mostra o melhor (e o pior) da sensibilidade humana; a música de Schubert, Bach ou do grupo de rock progressivo Yes; sãos as expressões de Renoir, Basquiat ou Portinari; são as palavras de Dante Alighieri, Eça de Queiroz, Clarice Lispector. A arte capta esse substrato subjetivo de aspirações, receios, sentimentos e fascínio que compartilhamos.
O que é belo na arte, na formação de nossa cultura, foi, desde tempos imemoriais, resultado do trabalho de homens e mulheres que, possuindo uma alma com uma sensibilidade maior do que a si mesmos, tiveram que deixá-la sair para ganhar o mundo na forma de obras como “Em busca do tempo perdido” de Proust, “Virgem dos Rochedos” de Gian Lorenzo Bernini, “Concerto para quatro violinos e orquestra” de Vivaldi ou “Guernica” de Dali.
Este trabalho, ainda que para alguns destes tenha valido seu sustento, não foi realizado unicamente com o intuito comercial – as obras dos grandes mestres, em vida, nem sempre lhes rendiam fortunas extravagantes, embora fama e reconhecimento sejam riquezas incalculáveis.
Músicos como Chopin, Beethoven ou Strasvinski eram celebrados em suas épocas, mas suas vidas não eram de luxos infindáveis, mas sim muitas vezes devotadas ao árduo trabalho de manter a expertise que os destacava, de maneira que tinham em comum, salvo exceções (e excessos), uma existência frugal. Viviam para a obra, e esta os consumia por inteiro, mas não o faziam em nome da grana, pois estas não viriam – faziam em nome da obra, em favor da arte, para contribuir de maneira altruísta para com o estoque cultural da humanidade, como num ato de pura entrega. Claro, também o faziam em nome do reconhecimento, da honra e da glória, mas estes são bens imateriais que nossa sociedade deixou de lado há muito.
Hoje nos confrontamos com uma realidade diferente, “artistas” inúmeros disputam um “cenário pop” com obras horríveis ou, simplesmente, repetitivas. Podem-se ouvir 20 bandas de rock pop diferentes e não saber quando uma termina e a outra começa. Há tantos filmes sendo produzidos e lançados que seria impossível acompanhar se não fossem tão padronizados. Este é o resultado do que Theodor Adorno chamou de Industrial Cultural: quando a arte deixa de ser um meio de expressão da criatividade humana para se tornar um negócio. No intuito de fazer dinheiro, grandes empresas fonográficas, cinematográficas e televisivas criaram um padrão cultural único, que reduz os custos, e de consumo acelerado, que aumenta a escala.
Na arte foi incutida a lógica comercial, onde não se produz arte pela arte, mas a arte para o negócio. E como é um bom negócio todo o tipo de indivíduo cuja intenção primordial é o dinheiro passou a se incluir neste “mercado”. Na música impera a lei da selva, uns poucos grupos se engalfinham por parcelas da audiência e dos lucros; programas televisivos e de rádio cobram o famoso “jabá” para reproduzir as obras dos “artistas”; e, como o consumo de massa trás maiores lucros, as “obras artísticas” são produzidas em uma escala industrial, sem controle de qualidade, no máximo uma planilha de custo.
As gravadoras já não investem numa carreira, mas tentam pegar estrelas “supernovas” que se exaurem em semanas, e os músicos não desejam mais fazer uma boa música, mas sim algo vendável no limite temporal dos contratos que exigem um lançamento “original” a cada ano. E pior, depois que se descobriu quão barato é fazer gravação “ao vivo” e consertar os erros através de softwares que conseguem tornar uma voz de taquara rachada num afinadíssimo cantor, ninguém mais fala seriamente sobre “trabalhar em um novo álbum”.
No cinema temos duas grandes fontes, a celebrada escola francesa e o cinema norte-americano – além um cinema nacional indeciso entre as duas influências. De um lado, temos uma produção intelectualesca, de diálogos infindavelmente sem sentido e cenas chocantes travestidos de arte, do outro, efeitos especiais que, por vezes, dão lugar a um ou outro ser humano vivente. Ambas as escolas padecem da padronização cultural, da marcada orientação ideológica, e da impossibilidade de se distinguir um filme de outro – salvo raras exceções. É chique assistir cinema francês, e então os pseudo-intelectuais se esforçam em construir opiniões sobre algo que não entenderam, simplesmente por não ser entendível, por outro lado, cinema americano é entretenimento, o que significa dizer “prender a respiração, escapar de explosões, e se identificar com um personagem caricato”.
A obra cultural tornou-se mercadoria, e, enquanto tal, tornou-se tão necessária quando dispensável. Necessária porque gera empregos, movimenta a economia, atende à demanda. Desnecessária por que, se não a tivéssemos tal como é, não sentiríamos as necessidades acima descritas.
A cultura industrializada, a arte mercantilizada, já não visa mais o melhor, a construção de uma visão nova de mundo, de uma sensibilização diferente, da exposição da expressão de uma alma. Sua preocupação primeira é com os lucros, com a arrecadação, com a audiência. Num mundo de pessoas cada vez mais padronizadas pela ideologia do consumo como fonte de felicidade, a arte só poderia ser o que é: um vazio, como todos nós; uma fragmentação, resultado de indivíduos que perderam contato com sua totalidade concreta, e são parciais.
Se a cultura serviu, outrora, para nos distinguir dos outros animais, temo que estejamos conseguindo, rapidamente, nos tornar cada vez mais selvagens, mais desprovidos de cultura. A arte fora algo que celebrava o melhor da humanidade, hoje, em tempos de “créu”, de Rambo e de Big Brother, ela tem celebrado o que há de pior em nós: a capacidade de autodestruição em nome de ganhar mais, consumir mais.
[1] Se bem que, na lei da selva, o animal caça para sobreviver, no capitalismo, os homens caçam para acumular e, perversamente, para manter grandes parcelas da população completamente desprovidas de bens no intuito de haver uma clara distinção entre a classe alta e a classe baixa.
* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2008, já estudante de graduação no Bacharelado em Ciências Econômicas da UFBA, logo depois de concluir o Bacharelado em Administração na mesma Universidade, eu escrevia um blog com esse título, Administração Crítica. Foram muitos textos elaborados com aquele ímpeto do estudante de graduação, de recém formado, com colocações pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).
Em 2010 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal. Em minha opinião, revelam um cuidado teórico pouco refinado (acho que nem tenho ainda), mas já uma vontade enorme de fazer ciência crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, de que podemos querer mais do que reproduzir os saberes mainstream.
Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o escrito, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero —, deixa de pertencer a nós.
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