Nesta semana passada cinco atletas e dois treinadores da seleção brasileira de atletismo foram flagrados num exame surpresa, tendo utilizado a substância ilícita chamada EPO – eritropoietina – que aumenta número de hemácias no sangue, incrementando a oxigenação. Os atletas foram suspensos por 2 anos, os técnicos, preventivamente afastados, podem até mesmo ser banidos do esporte.
Esses casos de doping no atletismo brasileiro são a ponta do iceberg de um amplo problema, o da ingerência capitalista do esporte no Brasil e no mundo. Um olhar simplista poderia, a princípio, colocar a culpa na falta de estrutura nacional para promoção do esporte, em nossa incapacidade de gerar sistematicamente equipes competitivas em uma ampla margem de práticas esportivas, com resultados significativos em competições internacionais. De fato, este é um problema. Mas, acredito que temos algo pior por debaixo disto.
Nas últimas décadas o esporte mundial, profissional ou amador, tem forçado os limites biológicos dos indivíduos, baixando cada vez mais as marcas, levando a resultados impensáveis anos atrás. Tudo isto graças ao incremento de técnicas de treinamento, inovações na medicina desportiva e mesmo graças ao desenvolvimento de tecnologias e equipamentos cada vez mais sofisticados. De certa forma, empresas, esportistas e comissões se uniram para elevar o desempenho do corpo humano quase à categoria de deuses – muito além do que um homem ou mulher comum pode realizar.
O lógica do esporte também mudou ou, dizem alguns, mostrou sua verdadeira face. Já não se trata mais de celebrar a capacidade do homem de se relacionar com seus iguais numa confraternização em torno da atividade esportiva – o caráter de relacionamento se perdeu em função da lógica individualista do ganhar. Trata-se não mais de ser um esportista, mas de vencer, de chegar em primeiro, de quebrar recordes.
Esta semana passada a (ruim) revista Veja estampava em sua capa a chamada “Enfim, um herói” junto a uma foto de Cezar Cielo. Não por defender seu país numa competição, nem por ter feito um trabalho sério por anos, como todos na equipe de natação fizeram. Cielo, segundo o folhetim, é um herói por que venceu na “prova mais nobre da natação” – os 100m rasos. A lógica evidenciada é que nada importa, o trabalho não tem significado, não valem a dedicação e o esforço, se não houver a vitória. Os muitos nadadores que não chegaram a ser vitoriosos como Cielo tornam-se descartáveis, sem brilho, mesmo tendo trilhado percalços e lutas semelhantes, pois, para aquele panfleto político, herói é o que ganha.
Quando o esforço perde valor e o que vale é ganhar, qualquer coisa torna-se lícita para atingir o objetivo, e isto é o que motiva o doping.
Por reforçar estes dois processos – a lógica do esporte e seu desenvolvimento tecnológico – geramos (nós, a sociedade que endossa isto) três consequências maiores:
1. A institucionalização do doping. Em algumas categorias ainda parece chocar, mas no baseballamericano, ou no ciclismo, ou talvez mesmo entre as masculinizadas nadadoras recordistas mundiais, o doping é “quase” normal. As siglas se multiplicam, se especializam, se complexificam: HGH, EPO, HCG. Tais substâncias surgem porque são usadas, e não o contrário como se faz pensar. O doping – que altera perigosamente a química corporal em nome de um maior desempenho – está se tornando prática comum.
2. A transfiguração do humano. O esporte, em teoria, celebraria o indivíduo saudável, cuja forma de vida levaria a excelência da compleição. No entanto, as duas últimas décadas do século vinte foram marcadas por notícias de atletas de muitas modalidade acometidos de mortes súbitas ou doenças degenerativas – o que atingiria este grupo em proporções muito maiores do que os demais.
Não tenho dados para afirmar isto categoricamente, só especulativamente, mas parece que é mais perigoso para a saúde ser um esportista do que ser um sedentário.
Se repararmos com cuidado, atletas exibem corpos disformes a depender da cada categoria: corredores de longa distância são muito magros; de explosão são fortíssimos; jóckeis são muito pequenos; nadadores são altíssimos, magros e desengonçados; lançadores de peso são gordos; etc. Onde foi parar a idéia de que seus corpos são o exemplo da saúde.
3. A coisificação do humano. O que resta deste processo é que o homem esportista torna-se um objeto do esporte. A relação se inverte e, ao invés dos indivíduos praticaram o esporte dominando sobre ele para atingir seus fins de saúde, o esporte domina seus atletas para atingir seus fins desumanos contabilizados por números de recordes, medalhas. Os indivíduos, na sua extrema individualização em busca de vencer, perdem completamente sua individualidade tornando-se expressão amórfica do esporte transfigurado.
Claro que o esporte, em si, não é nada além de relações sociais. Então, que relações sociais estão por detrás desta completa transformação de algo bom em tragédia social?
Precisaremos de algum tempo de pesquisa e reflexão para responder isto apropriadademente. Até porque a primeira, e perigosa, tendência é querer culpar o Capital e a prática de englobar todas as esferas sociais sob seu domínio, o que pode fornecer uma resposta fácil. No esporte profissional, na NBA, no futebol, no Boxe ou no Turfe, parece que esta é a tônica sim – tanto as máfias de apostas como as empresas representam o Capital que tenta se valorizar a qualquer custo. Mas, e no esporte olímpico que, pelo menos superficialmente, parece menos dominado pela lógica de mercado? Precisamos olhar com mais cuidado para eles, de maneira crítica.
Acredito que talvez seja um problema, enfim, gestorial. Estamos deixando de lado a obrigação social de administrar um aspecto de nossa sociabilidade que, de certo modo, está se perdendo num lógica que não coaduna com nossos principais interesses, com os interesses da sociedade. Enquanto grupo, estamos deixando nossos heróis se perderem celebrando o que há de pior e mais errado neles, que é o individualismo pragmático. E, sendo niilistas, sempre tentamos nos protejer na afirmação de que tudo é assim mesmo e, portanto, temos que cuidar apenas do nosso interesse – e isto não é verdade, nada é naturalmente ruim ou bom, são nossas atitudes as fazem assim, logo, somos socialmente responsáveis. O esporte está se tornando nisto por conta de valorizarmos o erro e tratarmos isto com displicência.
Temos um problema sócio-gestorial nas mãos: como administrar o esporte de modo a torná-lo inspirador? Como evitar que se torne um circo de horrores?
* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2008, já estudante de graduação no Bacharelado em Ciências Econômicas da UFBA, logo depois de concluir o Bacharelado em Administração na mesma Universidade, eu escrevia um blog com esse título, Administração Crítica. Foram muitos textos elaborados com aquele ímpeto do estudante de graduação, de recém formado, com colocações pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).
Em 2010 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal. Em minha opinião, revelam um cuidado teórico pouco refinado (acho que nem tenho ainda), mas já uma vontade enorme de fazer ciência crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, de que podemos querer mais do que reproduzir os saberes mainstream.
Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o escrito, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero —, deixa de pertencer a nós.
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