Entretenimento e ideologia*

O momento de ser entretido, aquele quando nós escolhemos para descansar, quase sempre é preenchido com televisão, filmes, livros “leves”, HQs e outras obras com essa finalidade aparentemente inocente. Porém, no tempo no qual nós baixamos a guarda de nosso senso crítico, tais conteúdos se aproveitam para nos expor a valores e opiniões os quais, mais arrogante, vemo-nos defendendo sem saber o porquê. Isto, pois, quando nos encontramos dispersos criticamente, a ideologia por detrás do entretenimento age para nos moldar à sua imagem e semelhança.

A verdadeira função social da obra de entretenimento é a de prover uma ocupação para as horas vagas. Normalmente é construído para agradar o máximo possível de pessoas se for voltada para o público de massa, ou as vezes tem como alvo um nicho específico. Sua forma não é orientada por valores ou princípios, mas pela capacidade de amealhar público de maneira comercial – dito de outra forma, os valores e princípios deste veículo são os do lucro. Ou seja, a obra de entretenimento é uma mercadoria, algo cujo valor é efêmero e só por acidente transcende estes limites. O entretenimento não é uma obra de arte, o autor não busca se expressar através do produto de seu trabalho; dali não se espera reconhecimento por arrojo de forma ou de conteúdo; o autor de uma obra de entretenimento espera tão somente ser pago.

Um filme como Batman, o cavaleiro das trevas (NOLAN, 2009) tem seu roteiro preparado para agradar pessoas. As sequências são testadas com grupos focais para verificar se causam boa impressão ao senso comum. Se não, roteiros, tomadas, tudo pode ser modificado. A idéia não é tentar construir uma obra de arte esteticamente perfeita, mas sim adequá-la às aspirações da maior parte do público. Estes parecem esperar simplesmente serem desobrigadas da atividade de pensar em suas horas de descanso. Isto, e somente isto, é capaz de garantir a finalidade primeira de um trabalho assim: a acumulação de capital.

No entanto, uma obra desta natureza, apesar de moldada para não exigir de sua audiência qualquer esforço intelectual além do mínimo, contém elementos sobre os quais deveríamos refletir.

Qualquer produto do trabalho de um homem, seja este artístico ou científico, sempre está carregado com as opiniões do seu autor. Mais, na maior parte das vezes ele conscientemente imprime suas concepções de mundo naquilo que faz; e assim, exprime juízos a respeito do que é certo e do que é errado, do que é bom e do que é mau, daquilo que precisa ser exaltado ou do que deve ser descartado; enfim, ele opina sobre as coisas normalmente defendendo seus próprios interesses ou de sua classe.

Com um produto de entretenimento isto não é diferente. Na verdade, graças ao fato de que são empresas muito poderosas que estão por detrás da maior parte de obras desta natureza, são as opiniões e concepções de mundo destas organizações capitalistas que são impressas nas obras. E, é notório, isto é feito deliberadamente: tanto através do merchandising, quando um produto é apresentado à audiência sem uma menção direta, normalmente inserido no contexto de um cenário para associa-lo ao um modo de vida que seja aspiração do nicho de consumo que pretende atingir; como mostrando situações nas quais certos valores e opiniões são premiados, enquanto que outros são classificados como ruins.

Voltemos ao exemplo do filme de Christopher Nolan, Batman, o cavaleiro das trevas. Neste, uma cidade muito desigual, rica e assolada por violência, é levada ao caos graças a inserção de um elemento desagregador, o Coringa. O Coringa, personagem execrado, não possui documentos, não tem nome, não tem família; ele representa tudo aquilo que nossa sociedade mais teme, o desconhecido; o Coringa é o indivíduo que não se adequa ao modus vivendi capitalista, ele não compra, ele não se veste na moda, ele é violento e, pior, ele fere a lei máxima da propriedade privada com um despudor incontrolado. O tratamento que o filme dá ao Coringa é a opinião do capital sobre os indivíduos que não se orientam para o consumo e sua estética: é taxado como louco.

Por outro lado, o Batman é a encarnação da lei sob a égide do capital. A mensagem final do filme é clara: existem momentos nos quais a verdade, a honra e a civilidade não são suficientes, e o herói precisa agir como um Cavaleiro das trevas de maneira completamente antiética. Ou seja, para combater o inimigo do consumo e da ordem capitalista, pode-se empregar qualquer meio de violência. Para enfrentar a “loucura” de quem não quer se adequar, o filme assume que é preciso empregar a insanidade do autoritarismo.

O interessante aqui é que esta carga de informações é-nos apresentada num momento no qual não nos propomos a pensar. Se formos convidados a refletir sobre alguma coisa, como um problema no trabalho ou uma pendência financeira pessoal, deliberadamente orientamos nossa ação para a reflexão. Assim, sistematicamente procuramos notar as particularidades do processo em questão, para encontrar sua explicação e possíveis soluções.

Mas, quando nos propomos a descansar, conscientemente desligamos estes mecanismos de análise. No momento no qual optamos por assistir a um filme como O cavaleiro das trevas, não o encaramos como um problema no qual precisamos desvelar as nuances mais profundas ou os mecanismos de funcionamento. E, graças a isto, acabamos sendo expostos a opiniões, valores e idéias sem refletir a respeito delas. Estas informações, no entanto, são processadas por nosso aparato cognitivo, e acabamos associando as práticas e idéias ali defendidas às emoções que a história do filme, ou dos programas de TV, despertam em nós.

Educadores e psicólogos sabem, graças a extensas e bem estruturadas pesquisas, que uma forma muito eficiente de ensino é aquela através da qual os assuntos a serem aprendidos são associados a elementos emocionais. Tanto o é que a educação que obtemos na infância exerce uma forte influência comportamental através de toda a história posterior de um indivíduo – nisto se baseia, por exemplo, a psicanálise freudiana. Pois é exatamente este tipo de influência que a obra de entretenimento exerce sobre nós, exatamente por nós nos expormos a elas sem nos preocuparmos com a reflexão, enquanto nos deixamos emocionar.

A TV, os filmes de consumo de massa, as revistas em quadrinhos, os mangás, os livros best-sellers, toda esta cultura que se vende como simples entretenimento, na verdade esconde concepções de mundo que, pouco a pouco, vão sendo apresentadas a nós. Concepções estas que pertencem a seus autores, e defendem seus interesses. E, o pior, somos expostos exatamente quando deligamos nosso aparato intelectual e crítico, o que facilita sua apreensão. Ao nos acostumarmos com estas idéias, as incorporamos à nossa estrutura de pensamento, e terminamos por torná-las parte de nós sem a devida reflexão. É importante criar o hábito de questionar mesmo o mais simples dos entretenimentos a fim de desvelar aquilo que está por detrás para, no mínimo, sermos capazes de pensar por nós mesmos.


* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2008, já estudante de graduação no Bacharelado em Ciências Econômicas da UFBA, logo depois de concluir o Bacharelado em Administração na mesma Universidade, eu escrevia um blog com esse título, Administração Crítica. Foram muitos textos elaborados com aquele ímpeto do estudante de graduação, de recém formado, com colocações pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).

Em 2010 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal. Em minha opinião, revelam um cuidado teórico pouco refinado (acho que nem tenho ainda), mas já uma vontade enorme de fazer ciência crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, de que podemos querer mais do que reproduzir os saberes mainstream.

Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o escrito, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero —, deixa de pertencer a nós.


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