Resenha: “Na Hora da Crítica”

FOURNIER, Valérie; GREY, Chris. Na hora da crítica: condições e perspectivas para estudos críticos de gestão. Revista de Administração de Empresas – RAE, vol. 46, n. 1, p. 71-86, jan./mar. 2006.[1]

O principal objetivo que Valérie Fournier e Chris Grey[2] perseguem no texto aqui resenhado é o de fazer uma reflexão acerca do que se convencionou chamar de Estudos Críticos da Gestão, ECG: trabalhos propostos para abordar a organização e os estudos organizacionais a partir de uma perspectiva crítica.

Tomando como eixo os principais dilemas emersos destes estudos – cujos debates envolveram “neomarxistas” e pós-modernistas ou pós-estruturalistas – os autores concluem que não é possível considerar os ECG como uma corrente ou uma escola de pensamento; tratar-se-iam, em verdade, de um campo fragmentado, marcado por contradições surgidas no próprio processo de análise. Para dar conta deste objeto, os autores escolheram dividir o artigo em três partes: (1) a primeira faz uma retrospectiva histórica acerca do surgimento dos ECG, contemplando as antinomias estruturais e o contexto político, econômico e científico donde teriam emergido; (2) em seguida tenta-se construir um conceito para crítica, ou ainda, expor que acepção de crítica brota dos ECG; e, por fim, (3) procuram mostrar o que seria a sua agenda, ou mais precisamente, as contradições das propostas e políticas defendidas pelas muitas reflexões que compõem os Estudos Críticos da Gestão.

Ao iniciar a reconstrução das circunstâncias sócio-históricas que permearam e antecederam os ECG, Fournier e Grey lembram que, desde que a gestão e a organização vêm sendo abordadas como objeto de conhecimento, estas têm recebido interpretações críticas em maior e menor grau. Isto remontaria mesmo ao texto clássico de Adam Smith.  Contudo, segundo os autores teria sido somente na década de 1990, no Reino Unido, quando se elaborou um primeiro e significativo esforço para sistematização e unificação das muitas leituras críticas da gestão sob uma denominação única, batizado com o termo Estudos Críticos de Gestão, ECG.

A conjuntura de surgimento dos ECG, segundo os autores, foi caracterizada por quatro processos complexos: (1) o abraçar do gerencialismo como nova forma de representação do real – ontológica, epistemológica e moralmente – tanto por parte da esquerda trabalhista como pela direita neoliberal na Inglaterra;[3] (2) a crise interna da gestão, marcada pelo ambiente de incerteza quanto sua cientificidade e eficiência;[4] (3) o declínio do positivismo e do funcionalismo nas ciências sociais, sendo o Reino Unido um ambiente mais propício para a crítica do que os EUA;[5] e, por fim, (4) a redução dos recursos disponíveis para pesquisa nas áreas de ciências sociais e seu redirecionamento para a pesquisa em gestão, resultado da implementação de políticas neoliberais no Reino Unido.[6]

Na seqüência, os autores procuram elaborar um conceito para crítica, ou melhor, explicar quais os critérios que adotaram para qualificar como Estudos Críticos de Gestão contribuições oriundas das mais diversas correntes conceituais. Segundo sua exposição, dentro desta classificação é possível incluir desde neomarxistas – como chamam aqueles vinculados à escola de Frankfurt, ou os seguidores da teorização gramsciana – até pós-estruturalistas, e mesmo aqueles inspirados pela psicanálise[7] ou por questões ambientais. Para Valérie Founier e Chris Grey, três pontos em comum podem ser evocados para tamanha diversidade sob uma só denominação: sua “intenção (não) performativa” (p. 77); a tentativa de “desnaturalização” (p. 78) dos pressupostos do mainstream; e uma preocupação com a extensão do campo reflexivo, envolvendo desde os fenômenos até as premissas epistemológicas e ontológicas da realidade organizacional e de seu estudo.[8]

Na última parte do artigo, os autores fazem uma reflexão acerca das proposições realizadas pelos ECG. Antes de tudo, os Estudos Críticos de Gestão seriam um projeto político, que tentaria desvelar as relações de poder presentes na organização e mesmo auxiliar no projeto de emancipação dos indivíduos. Fournier e Grey seguem apontando as principais contradições que emergiram no âmbito das discussões conduzidas pelos pesquisadores. De maneira simplificada, estas se polarizaram nos conflitos entre (1) realismo V.S. relativismo, e (2) engajamento V.S. desengajamento.

Esta primeira discussão, segundo os autores, colocaria frente a frente uma corrente neomarxista e aqueles que classificam como pós-modernistas. O neomarxismo, realista, partiria de uma dicotomia entre a concretude material e o discurso – sendo este último considerado mera representação do real –, para afirmar que o relativismo epistemológico e ontológico do pós-modernismo conduz a um niilismo moral a-crítico; ainda, a posição pós-moderna reduziria a realidade à linguagem, tornando perfeitamente verossímil tanto a história concreta como os mitos ideológicos das classes. Em resposta, o pós-modernismo – classificado no texto como relativista – afirmaria que os neomarxistas reduzem o discurso à linguagem. Os adeptos do materialismo histórico-dialético não percebem, a seu ver, que discurso é representação, mas também ação. A corrente pós-moderna também defenderia que o relativismo seria uma opção às “grandes narrativas totalizantes do modernismo crítico” (p. 79) cujo ativismo performático conduziria a um absolutismo que, no fim, também diluiria as liberdades individuais.

No entanto, os autores lembram que os debates avançam para além desta polarização caricata. Poucos seriam aqueles trabalhos que aceitariam abraçar, de forma pura, uma ou outra opinião; de fato, existem mesmo aproximações entre a crítica e o engajamento político no lado pós-moderno. A polarização ocorreria de fato entre aqueles que tentam “[…] reconciliar o relativismo epistemológico com alguma forma de comprometimento ético […]” (p. 80) e os que “[…] argumentam em favor de uma crítica permanente […]” (p. 80).

Fournier e Grey ainda tratam da discussão que envolve ações pró-engajamento V.S. desengajamento, ou melhor, do embate entre “[…] os que gostariam de ver a crítica sendo orientada pragmaticamente dos que são acusados de serem indulgentes com o elitismo intelectual.” (p. 80). Alguns comentadores teriam afirmado que os trabalhos e os debates realizados no âmbito dos ECG, notadamente entre os pós-modernistas, estariam se fechando sobre si mesmos, num exercício acadêmico sem vinculação com a práxis, e excluindo do processo gestores e partes interessadas nos fenômenos abordados. No entanto, os autores defendem os pós-modernos apontando que a discussão sobre a proposição de aplicações foi, e está sendo, realizada; além de observarem que o campo de inclusão das partes interessadas tem englobado principalmente os cursos de formação de gestores, e mesmo o diálogo com instituições da sociedade civil organizada, como o movimento feminista ou sindicatos.

De maneira geral, os debates sobre engajamento se orientariam em duas direções. De um lado haveriam aqueles para os quais os ECG estão obrigados a produzir soluções de gestão, num sentido de propor modelos e ferramentas administrativas que sejam mais “humanas”. Do outro, os autores apontam opiniões que defendem o não-engajamento dos ECG na seara da elaboração de técnicas, pois a gestão, por natureza, estaria em conflito com os gerenciados. Estes vêem na hierarquia funcional e na separação entre trabalho e gestão, uma instituição corrupta que não deve ser reformada, mas sim extirpada. Uma solução, segundo Fournier e Grey, seria a aproximação e o engajamento não com os gestores, mas com os gerenciados – algo que, à época, apenas se iniciava.

Os autores defendem que o principal elemento a ser destacado em sua conclusão é uma contradição presente nas discussões dos ECG, que pode ser resumida numa sentença em paradoxo: a abordagem crítica trás novos conhecimentos importantes para o estudo da firma; no entanto, a distribuição deste conhecimento pode tanto implicar em maior liberdade para os indivíduos sob a égide da empresa, como munir os gestores de melhores instrumentos de controle e dominação e, no limite, contribuir para o decréscimo da liberdade na organização; a questão principal estaria na escolha de fomentar um conhecimento que não leva a transformação da práxis por estar fechado na academia, ou levá-lo para o campo performativo e, de seu uso, surtirem efeitos contrários ao intento principal. [9]

Nossa opinião é de que, por mais que se corram riscos, o saber afastado da práxis não é conhecimento de fato. A realidade, como diria Karl Marx, é uma dinâmica objetivo/subjetiva histórica que responde aos esforços de quem tenta desnudá-la se transformando, impondo novamente a necessidade de se debruçar sobre ela repetidas vezes, ainda que a realidade não se dobre de acordo com nossa vontade. Assim, o paradoxo da não-dispersão da crítica é um falso dilema, pois a crítica verdadeira é uma crítica-ação que transforma o que está em volta. Manter a realidade como se encontra não é crítica e sim auto-indulgência. Esperar que mude num curso previamente traçado, a-histórico, é desejar impor à realidade um rumo idealista. Esse expediente, como comprova o caminho dos acontecimentos passados, tem sido não apenas infrutífero, mas perigoso.


[1] O artigo objeto desta resenha foi primeiramente publicado no ano de 2000 na revista científica londrina Human Relations. Sua tradução para o português faz parte de um esforço capitaneado pela RAE em resgatar textos seminais dos estudos organizacionais, trazendo o que considera serem as mais recentes e fecundas discussões no campo. A referência dos tradutores não está disponível na revista.

[2] Valérie Fournier atualmente é professora/pesquisadora da Universidade de Leicester, e tem estudado o comportamento organizacional, as questões de gênero e organização, além de organizações alternativas, entre outros. Chris Grey é preceptor na Universidade de Warwick, onde atua em várias áreas, com destaque para seus esforços em sociologia crítica aplicada ao estudo das organizações.

[3] Fournier e Grey afirmam que, nos anos 80, a influência da “Nova Direita” na Inglaterra reorientou as diretrizes da gestão estatal; naquele período ganhou força a idéia de que o Estado deveria ser dirigido como empresa em busca da eficiência e da responsabilidade fiscal. Este axioma seria abraçado tanto pela direita como pelo trabalhismo inglês na época, e, segundo os autores, acabou por estabelecer uma nova forma de representação do real. Ontologicamente, o gestor tinha se tornado o fundamento da natureza da realidade; epistemologicamente, a gestão se travestira na portadora legal da aplicação do conhecimento; e moralmente, a eficiência e o equilíbrio fiscal seriam os parâmetros de ação mínimos defendidos por políticos de todos os espectros. Este processo teria feito notar com mais clareza como a gestão se apresenta também como prática política, fazendo com que as atenções acadêmicas se voltassem para o processo gestorial. A própria ascensão desta num contexto de re-arrumação do Estado sob o neoliberalismo, era mais uma evidência da função ideológica da administração, o que confirmou a necessidade de uma apreensão mais refinada.

[4] De acordo com Fournier e Grey, a administração à época passava por uma crise. A forma de gestão americana, até então exemplo de racionalidade e produtividade, vinha sendo contestada pelo modelo japonês e pela maneira alemã de gerir, mostrando-se concorrencialmente ineficiente. Segundo os autores, isto propiciou uma separação entre o gestor e o administrador burocrata – o primeiro, elegante inovador, o segundo, representante da (responsável pela) imobilidade das grandes estruturas organizacionais.

[5] O fracasso da tentativa de construir uma ciência a partir da gestão estaria fundado no fracasso da própria cientificação, à maneira positivista, das ciências sociais. Inclusive, este seria, segundo os autores, um debate que a administração teria incorporado com certo atraso.

[6] Asseguram os autores que, no Reino Unido, a ascensão das políticas neoliberais e da Nova Direita nos anos 80 fez minguar os recursos para pesquisa nas áreas de ciências sócias. Por outro lado, estes políticos direcionaram fundos para os estudos da eficiência administrativa, tema caro ao pensamento individualista de orientação marginalista típico da economia neoliberal. Isto teria feito com que pesquisadores de áreas acostumadas com a crítica incluíssem a empresa e a gestão em seu escopo de análise. A fim de acessar tais fontes de financiamento, teriam migrado para os estudos organizacionais indivíduos dispostos a aplicar seus arcabouços conceituais na compreensão da organização de modo geral, e da gestão em particular: neste meio encontravam-se desde estudiosos da filosofia da linguagem e da filosofia da mente, até neomarxistas.

[7] Convém lembrar que, de certo modo, os estudos conduzidos pela Escola de Frankfurt também se inspiram na psicanálise, sobretudo nas contribuições de Sigmund Freud e Lacan, como atestam os trabalhos conduzidos por Erich Fromm, Herbert Marcuse e Theodor Adorno, entre outros.

[8] Performática em pesquisa, segundo os autores, é a preocupação com a reafirmação de um sistema estabelecido eficientemente, ou com a sua mudança desde que isto produza uma utilização mais eficiente dos recursos – o que significa obter maiores retornos diante de uma quantidade de investimento. Ainda, a gestão do mainstream parte de pressuposições que são elevadas a condição natural de existência. Por exemplo, a noção de que os indivíduos são agentes econômicos que maximizam seu bem-estar, agem racionalmente e interpretam a realidade de uma maneira utilitária. Jeremy Bentham no século XVIII já afirmava que, por natureza, o homem decide utilitariamente. Isto foi tomado como dado por uma parcela dos economistas da segunda metade do século XIX, notadamente aqueles classificados como neoclássicos – Alfred Marshal, León Walrás, entre outros –, e cuja microeconomia inspirou a formalização dos estudos sobre a eficiência da firma.

[9] Fournier e Grey não oferecem uma solução simplista para esta contradição. De fato, afirmam que talvez seja necessário para os ECG aceitar sua condição antinômica, esta “tensão irreconciliável” (p. 82), como uma característica necessária do processo de crítica, da dúvida que emerge do contrapor ao comum e naturalizado o diferente e reflexivo. “Talvez tudo o que possamos fazer é no assegurarmos de que esta dissonância, que a teoria de gestão na corrente majoritária tratou como irrelevante à análise das organizações ou como um conjunto de recursos e de restrições na busca da performatividade, seja ouvida pelos estudantes de gestão ‘não distorcida’ pelo intento performativo (daí a importância particular da educação da gestão para os ECG).” (p. 82).


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