Resenha: “Bases Teórico-Metodológicas da Administração Política”

SANTOS, R. S.; RIBEIRO, E. M.; SANTOS, T. C. S. Bases teórico-metodológicas da administração política. Revista Brasileira de Administração Política – Rebap, v. 2, n. 1, p. 19-43, abr. 2009. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/rebap/article/view/15490. Acesso em: 15 set. 2014.

O artigo em questão, parte do segundo número da Rebap — publicado também na Revista de Administração Pública —, tem a pretensão declarada de estabelecer as bases teórico-metodológicas do campo que se inicia sob a denominação de Administração Política. O fazem recorrendo à clássica definição de ciência de Thomas Kuhn, na qual um campo é delimitado por possuir um objeto próprio de pesquisa, mais um método para a apreensão desse objeto; tentam dar conta destas premissas afirmando que a administração tem por objeto a gestão, e seu método seria, na verdade, uma máxima distributiva socialmente utópica.

O texto se divide em três partes mais importantes: primeiro tentam apontar um juízo acerca das condições atuais das ciências aplicadas de modo geral; na segunda parte estabelecem o argumento em torno do objeto e método da administração, bem como as pretensas leis gerais do que viria a ser a administração política; por fim tratam do processo surgimento da administração enquanto prática, notadamente a partir de um desdobramento da microeconomia.

Para os autores, a ciência parece ter o costume e a pretensão de separar os campos da teoria e da aplicação. Citam o caso da economia, que nasceu política (normativa) – explicativo-normativa segundo os autores –, mas se transformou, ao longo dos anos, em estritamente explicativa e desejosa de encontrar leis gerais para o fenômeno econômico (positiva). Para Santos, Ribeiro e Chagas, a Ciência Econômica, na passagem de um discurso (declaração + ação) normativo para um positivo, teria sido levada em direção a perda da importância do objetivo a que se pretendia originalmente. No nosso ponto de vista, esta análise confunde a precaução em buscar leis gerais com o desprover de objetivos maiores, o que não se verifica de fato já que, mesmo que os objetivos não estejam declarados, eles estão presentes, como atesta Max Horkheimer e Theodor Adorno [Dialética do Esclarecimento] acerca do papel da ideologia da ciência.

Os autores também cometem o equívoco de afirmar que economia política é meramente uma economia com juízo de valor: a verdade é que a economia política é um ramo no qual se compreende que a formulação de leis gerais não tem validade quando desprovidas de seu contexto político; ou melhor, para a Economia Política não haveriam leis gerais em economia, mas entendimentos sócio-históricos da realidade que apontam comportamentos econômicos específicos. Tais comportamentos, segundo economistas políticos, são considerados naturais (elevados à categoria de lei geral) pela economia positivista, por “cientistas” normalmente comprometidos com a estrutura social de sua época. Ou seja, ou os autores não compreendem a natureza da economia política, ou tentam justificar uma noção de administração política própria a partir de uma percepção enviesada daquela. Incorrendo neste erro, Santos, Ribeiro e Chagas afirmam equivocadamente que a administração política seria algo tal qual sua leitura da economia política, meramente uma administração com juízo de valor.

A seguir, Reginaldo Santos, Elizabeth Ribeiro e Thiago Chagas partem desta distorcida visão da economia política, ao que se soma sua pretensão normativa da administração política, para definir o que seriam as bases teóricas e metodológicas da administração. Não sem antes afirmar, sem qualquer argumento que possa ser rebatido, como se fosse um dado da realidade, que a administração política seria a “gestão das relações de produção e distribuição.” (p. 25).

Na seqüência os autores fazem um duvidoso exercício de análise etimológica da palavra administrar, intento este que parece não levar a lugar algum. Então colocam que a administração possui duas dimensões: (1) uma abstrata, que congregaria os atos de “gestar” – criar – e o de “gerenciar” – exercer função de gestor (p. 28); e (2) uma dimensão aplicada, que incluiria a “gestão”, enquanto modo de fazer ou maneira de administrar, e a “gerência”, que definem como o lugar de exercer a função de gerenciar. Na verdade, a única dimensão realmente abstrata destas, pois depende de um distanciamento da realidade e de sua concretude para se formular enquanto conceito, é a noção de gestão. A gestão, no nosso entendimento, só pode ser formulada quando nos distanciamos das práticas eminentemente concretas do (a) processo de criação – o “gestar” –, (b) do exercer concreto da função de fazer as coisas através das pessoas – o “gerenciar” –, e (c) do lugar (físico, mas principalmente hierárquico, portanto sócio-histórico) de onde se administra, a “gerência” para os autores. Santos, Ribeiro e Chagas não procuram explicar o que é gestão, apenas apontam sua existência em meio ao processo organizacional, mas mesmo sem este cuidado, têm coragem de defender que se trata do objeto da administração.

Mas, pior do texto está por vir: o fazem com o método. Longe de propor uma forma de apreensão de informações própria da administração, defendem que seu método se resume na sentença “para qualquer nível de renda (PQNR), devemos adotar uma política de distribuição/bem-estar.” (p. 33). Isto não é um método de ciência nem nos mais infantis contos de fadas, é um desejo, uma utopia, a expressão de uma idealização do projeto de gestão para a sociedade, talvez. A única justificativa apresentada para sustentar essa afirmação é que seria preciso uma melhor distribuição da riqueza no capitalismo. Mais interessante ainda é que os autores fazem alusão à necessidade de apelar para que os proprietários de bens de capital, os ricos, distribuíssem sua riqueza simplesmente por conta de perceberem a irracionalidade da acumulação. Trata-se do mesmo argumento de um Robert Owen, um socialista utópico, para quem a principal ação política deveria ser a de convencer a classe dominante de que seria racional, moralmente elevado, ético, prover uma melhor distribuição de riqueza. Isto seria romântico, se não fosse completamente desconectado da realidade e com a história (além de pouco original).

Os autores então apontam o que acreditam ser as “leis gerais da administração”:

(1) “só construir algo novo, depois de distribuir plenamente o que já existe.” (p. 34);

(2) “para legitimar (integrar) o Projeto da Nação ou outro de qualquer organização/instituição torna-se necessário relativizar a hierarquia dos processos de construí-lo ou edificá-lo.”  (p. 35), ou seja, é preciso democratizar o processo decisório;

(3) “em vista do resultado determinado, a forma de gestão mais adequada de qualquer projeto (do indivíduo, da organização ou da nação) está condicionada à compreensão da sua temporalidade.” (p. 36).

Primeiro, ao procurar estabelecer “leis gerais” remete a algo que acabaram de criticar na ciência econômica positiva, a nomotética, a tendência de naturalizar os fenômenos sociais. Mais constrangedor, suas leis gerais não são princípios explicativos da realidade, mas tão somente princípios morais que refletem meramente a opinião dos autores sobre o que deveria ser considerado correto ou racional. Pelo menos são consistentes com a afirmação de que a Administração Política é um tipo de administração mediada pelo juízo de valor, apesar de todo este expediente não acrescentar uma única vírgula ao entendimento da realidade.

Vamos aos “princípios”.

Os dois primeiros não tem nenhum sentido explicativo, sua propriedade decorre do campo dos valores, da ética e da moral, que não compete margem de validação ou discussão. Já o terceiro princípio estabelece um esboço explicativo que talvez necessite de um aprofundamento. O chamaremos aqui de Paradoxo da Temporalidade Administrativa. Trata-se da contradição inerente entre as diferenças do tempo de execução de um projeto ne nação (ou de desenvolvimento) – produtivo-distributivo para os autores –, e o tempo de governo de um gestor eleito no ciclo político de um pais como o Brasil. Ou seja, haveria no campo da prática, sobretudo no campo da gestão do Estado, uma descontinuidade causada pela não coincidência destas duas temporalidades. Mas, os autores não perdem a oportunidade de serem normativos, e afirmam que “a temporalidade administrativa, burocrática, normativa deve subordinar-se à temporalidade teórica.” (p. 37, ênfases nossas). Ou seja, a argumentação é a de que o ciclo político, ou a própria política, deve se subordinar à racionalidade técnica, ao projeto de administração. Isso é o inverso do que se espera da economia política.

Por fim, os autores tratam do nascimento da administração enquanto campo da prática. Para eles, a administração nasce da microeconomia, por conta da atenção dos economistas para com os mercados particulares. Atenção esta motivada, obviamente, pela aceitação da máxima reducionista/positivista de que um todo é formado pela soma simples de suas partes. Assim, aqueles economistas acreditavam que a melhor maneira de perseguir e compreender o crescimento e desenvolvimento das economias nacionais (macro) seria se debruçar sobre suas partes constituintes, as economias dos mercados em particular (micro).

Santos, Ribeiro e Chagas afirmam algo interessante: teriam sido as mudanças no campo do pensamento administrativo que orquestraram as transformações na prática das empresas. Defendem que foi a emersão dos trabalhos de Frederic W. Taylor e Max Weber quem propiciou os conhecimentos necessários para que as empresas se tornassem mais complexas estrutural e hierarquicamente, e crescessem em escala e escopo.

Porém, a realidade é de outra forma. Como afirma o historiador de organizações Alfred Chandler Jr., a empresa capitalista de grande porte já existia anos antes de Taylor ou Weber começassem sequer a trabalhar. As pesquisas destes e de outros teóricos da administração e da burocracia surgem como tentativa de explicar o fenômeno da grande empresa, da burocratização da gestão, da proeminência desse tipo particular de racionalidade (que é técnica para um, política e simbólica para o outro). Tanto o é que Weber não constrói um modelo de gestão, como fez Taylor, e sim elabora uma reflexão acerca da sociedade de sua época, na qual burocracias exerciam uma enorme influência, ao ponto deste autor alemão enxergar nelas a principal característica definidora de seu tempo.

No nosso ponto de vista, o artigo aqui resenhado incorre em inúmeras imperfeições e erros conceituais, além de não responder a contento sua pretensão inicial de identificar na administração política um objeto e método próprios. Sequer a noção de administração política é verdadeiramente trabalhada, mas tomada como um dado ou simplesmente ideologizada como ato normativo único das sociedades. O esforço do artigo parece-nos infrutífero, levantando uma única questão que deveria ser observada mais precisamente, que é o paradoxo da temporalidade técnica, para o qual apresentam uma solução muito problemática e contraditória.


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