No último episódio do Foro de Teresina – podcast de política da revista Piauí, da editora Abril -, uma discussão sobre a escaramuça retórica entre Lula e o presidente Banco Central se pautou numa premissa problemática assumida por parte dos jornalistas. A certa altura, José Roberto de Toledo (quem também é editor-chefe da Piauí) afirma que o Bacen é um órgão de Estado, não de governo.
Nessa colocação se esconde a premissa implícita de que a economia é uma ciência positiva, pautada em leis “naturais”. Assim, haveria uma possibilidade de condução “técnica” do Banco Central, como autoridade de política monetária. Por conta disso, seria preciso descolar o ciclo de gestão da política monetária tocada pelo Bacen, do ciclo politico. Essa ideia é tão forte, talvez mesmo onipresente, sobretudo na mídia sudestina, quanto equivalentemente não-consensual (eu diria, falsa).
A economia é uma ciência social. Seus objetos e métodos surgem não como fenômenos naturais, mas derivados das relações travadas pelas pessoas, de forma histórica e cultural, dinâmica e simbólica. Cada conceito, correlação, variável, “lei”, indicador, tem que ser socialmente construído e, portanto, apresenta um duplo papel político e ideológico. O que é considerado verdadeiro depende, ou decorre, de qual grupo social emerge o conjunto do conhecimento em perspectiva. As lógicas, premissas, objetivos e narrativas econômicas (míticas) representam a visão de mundo, interesses e conjunto simbólico de um grupo social em particular.
No nosso exemplo, a ciência econômica assim chamada ortodoxa, sua narrativa de explicação das questões materiais, se apresenta como uma das estratégias simbólicas e políticas de manutenção do status quo. Seus argumentos tentam impedir que países periféricos se desenvolvam, barrar ações do Estado que pretendam distribuir riqueza de maneira equânime, impedir que leis ou normas interfiram na atividade econômica empresarial. Isto porque, para enriquecer extraordinariamente, é preciso reduzir salários, poluir, empregar por horas intermináveis sem descanso, não recolher impostos, trapacear; até mesmo apropriação indébita, fraude e violência fazem parte do rol de práticas de acumulação de riqueza em nome da ganância (ops… chamam de “capitalismo” a obsessão patológica por lucro e acumulação, certo?!).
A ciência econômica ortodoxa só ocupa essa posição de destaque, porque defende os interesses de empresários e capitalistas, a classe hegemônica nas sociedades contemporâneas. Qualquer das argumentações da economia ortodoxa termina na ideia difusa (e falaciosa) de eficiência de mercado. Na verdade, o mercado funciona como a máfia, a milícia ou o tráfico internacional de drogas, armas e pessoas: de um lado, violenta e rouba, de outro vende proteção contra si mesmo; dá origem a um problema (desejo, necessidade, vontade), para ofertar a solução. É apresentado como uma “verdade para todos” a partir da qual só alguns ganham e os demais devem se resignar, ou morrer.
A essência da economia ortodoxa é a defesa do capitalismo. E uma de suas premissas estruturantes hoje é a ideia de autoridade monetária independente.
Quando se defende um Banco Central capaz de agir por si só, se está partindo da premissa de que a única regulação que o mercado de moeda pode sofrer é aquela do próprio mercado, uma não-regulação, um desvio de olhar. Os presidentes e conselheiros não podem fazer parte do governo, não devem tomar decisões segundo a lógica da política. Por isso, são escolhidos entre banqueiros e, portanto, gerenciam a moeda a partir da racionalidade e eficiência pregada pela ortodoxia econômica.
Mas, se a própria economia não é independente, se se resume a um discurso de defesa de uma única classe social, será o Bacen independente? Pelo contrário, a economia ortodoxa usa o Bacen para capturar o Estado e usá-lo para seus próprios fins. Num exercício de novilíngua, a palavra “independente” significa, na verdade, totalmente controlado pelos interesses do mercado; ou mais especificamente, do mercado de capitais.
No Brasil o Bacen é uma burocracia pública. Seus funcionários são pagos com dinheiro público, suas estruturas foram construídas com dinheiro público, os efeitos de suas escolhas recaem sobre os milhões de brasileiros. Deveria representar o interesse dessa coletividade. Em verdade, a discussão sobre um Bacen independente não é, como tudo afinal em economia, um debate técnico, e sim político. Em disputa, encontra-se a reserva coletiva de recursos sob controle do Estado que, em um contexto de endividamento e juros altos, flui para os bolsos de rentistas.
Cabe a nós resistir…
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