A “Função” de uma Teoria Crítica

Na verdade, as concepções sobre o que vem a ser uma teoria são muitas. Na filosofia antiga teoria era sinônimo de contemplação. Na teologia cristã medieval, resultado de saber revelado. Para a ciência natural moderna, a teoria é a premissa de uma pesquisa, é o que já se sabe previamente sobre um objeto; por isso mesmo, auxilia na formação de pressupostos e hipóteses. Nesse sentido, na modernidade a teoria se apresenta como um arcabouço cumulativo de saberes que foram obtidos de modo sistemático.

Existe um procedimento para a formação de teorias na ciência natural moderna. Em primeiro lugar, um cientista elege um objeto a ser conhecido, em relação ao qual se compromete a manter distanciamento e neutralidade de modo a não contaminar os resultados. Segundo, o cientista elabora um plano de observação sistemática do objeto. Dali emerge a hipótese que pretende explicar o comportamento do fenômeno estudado. Só então o cientista parte para a experimentação, testando a hipótese para verificar sua validade explicativa. Por último, tendo sido comprovada por um número suficiente de estudos, a hipótese toma a forma de uma lei, que é uma explicação abstrata e universalmente aceita sobre o objeto. Essa é uma representação simples do método do que chamamos de ciência tradicional ou ciência positiva.

Por outro lado, as humanidades — as ditas ciências sociais —, se iniciaram de certa forma tentando imitar os procedimentos da ciência tradicional. Porém, com o passar do tempo sofreram (e ainda sofrem) com a peculiar característica de que seus objetos de pesquisa se encontram em mudança e transição, bem como apresentam comportamentos anômalos quando em diferentes contextos. Por isso diversas pesquisas que pretenderam formular leis de explicação sobre os fenômenos da sociedade, do comportamento e do indivíduo, se mostraram insuficientes. Ainda assim, sobrevivem até hoje um grande número de teorias sociais modernas, como na economia, na administração e mesmo na sociologia.

Essas formas teóricas, desde a antiguidade até a modernidade, convergem ao menos em um sentido: são atividades de contemplação e abstração.

A teoria moderna se propõe a explicar o fenômeno como ele é, mas poucas vezes se preocupa em interferir e engajar mudanças. É evidente que não faz sentido uma teoria da física se propor a alterar o funcionamento da natureza. No máximo é possível entender os mecanismos naturais para, com esse saber, sermos capazes de gerar efeitos práticos, incrementar as habilidades humanas ou projetar mercadorias úteis.

Porém, no caso da sociedade é plausível intentar alguma modificação ou transformação social. O problema é que muitas teorias sociais carregam consigo os preconceitos de seus propositores, cientistas para quem a sociedade não precisa de mudanças, ou necessita de ajustes segundo suas próprias expectativas e interesses. Para muitos desses cientistas, os problemas sociais, como fome, exploração, sofrimento, são naturais, inevitáveis até. As teorias críticas (sobretudo aquelas derivadas da Escola de Frankfurt) se posicionam de modo diferente.

O procedimento para construção do saber nas teorias críticas é diferente da ciência tradicional positiva. Primeiro, uma teoria crítica procura contemplar e compreender os mecanismos de funcionamento e as características de um fenômeno ou processo social em diferentes contextos, considerando as especificidades de suas trajetórias. Segundo, procura-se identificar e expor os problemas daquele objeto, as formas de opressão social e individual associadas, assim como os dilemas éticos, as interpretações ideológicas, os sentidos e arcabouços (dispositivos) simbólicos subjacentes etc.

Na sequência a teoria crítica assume uma postura radical, para descer a fundo nos problemas com o objetivo de identificar as causas e as formas de resistência. Por fim, a teoria crítica se apresenta como uma base de mudança, engajando atores sociais, estruturando alternativas de comportamento e subsidiando a ação coletiva transformadora.

Em outras palavras, uma teoria é considerada crítica apenas quando tenta deixar a mera contemplação da realidade e suas características, para a ação efetiva. Numa teoria crítica, intelectualidade (o saber) e práxis (a prática) caminham juntas para tentar engendrar mudanças nas sociedades e superação das agruras da humanidade.

A teoria crítica também pode ser considerada a autocrítica da ciência. Na medida em que compreende que ao longo da história o saber foi sistematicamente utilizado para segregar o mundo entre esclarecidos e ignorantes, teoria crítica expõe a própria ciência como origem de segregação e, potencialmente, de opressão.

Desde o surgimento dos saberes mais rudimentares, decorrentes das tradições dos povos sem história, passando pelo saber revelado no âmbito das religiões organizadas, até hoje, na era do conhecimento científico, as sociedades são controladas por aqueles indivíduos que dominam algum tipo de saber. Uma das premissas para a manutenção de um status elevado quase sempre foi o domínio exclusivo de um conjunto de signos de diferenciação. Normalmente, um saber que permitia exercer autoridade sobre o restante da sociedade. Essa foi a realidade dos fariseus, dos faraós e seus sacerdotes, dos clérigos da Igreja Apostólica Romana, até mesmo dos pajés e curandeiros dos povos originários das Américas.

A teoria crítica também tem o objetivo de realizar uma síntese da dualidade (construída historicamente) que separa pretensos esclarecidos e daqueles considerados ignorantes. Para tanto: (i) expõem como a racionalidade serviu e serve aos poderes dominantes desde a antiguidade; assim como (ii) tentar criar e divulgar de uma nova forma de racionalidade ou, de forma mais precisa, sugere que as pessoas tem a possibilidade de construir racionalidade alternativas. Para tanto, ensinam e promovem o pensamento crítico, socializam saberes e tecnologias sociais, bem como tentam fomentar a mudança inclusive nos modos de autoconhecimento.

Assim, ao mesmo tempo em que as teorias críticas buscam um rompimento com a ciência tradicional na forma de produzir conhecimento, também se posicionam contra as dinâmicas de opressão, inclusive aquelas alimentadas pelo esclarecimento. Em suma, o objetivo mais profundo de uma teoria crítica é, portanto, a emancipação. Visando essa meta maior, as teorias críticas se valem do que se conhece por dialética negativa, uma forma de pensar e agir que se apresenta como uma alternativa para o manejo clássico da ciência tradicional.

É “negativa”, pois seus procedimentos de pesquisa contrariam a ciência positiva: (i) não pretende formular leis universais, pois compreende que os processos sociais são históricos e mudam em cada contexto; (ii) não advoga por uma ciência neutra, já que vê no pesquisador um ator social inevitavelmente envolvido com o objeto; (iii) não visa apenas contemplar a realidade, mas entender para transformar; (iv) não defende o status quo, já que não enxerga as formas de opressão como ocorrências naturais, mas decorrentes de escolhas e comportamentos evitáveis.

“O que distingue uma teoria crítica das demais posturas teóricas no campo das ciências humanas consiste em seu interesse pelas condições emancipatórias socialmente existentes. Porém, além desse princípio geral, a teoria crítica se coloca uma forte exigência de fundamentar, de um ponto de vista imanente ao próprio objeto social, suas análises e diagnósticos sobre as condições de possibilidade e sobre os obstáculos existentes à emancipação. Uma vez que tais condições e obstáculos precisam estar presentes de algum modo na própria sociedade, transformações políticas, econômicas e culturais necessariamente influenciam todo diagnóstico crítico voltado para o problema da orientação emancipatória. […] O desafio da teoria crítica consiste em poder renovar seus diagnósticos de modo a tornar possível que continuemos formulando uma perspectiva a partir da qual os obstáculos à emancipação ou potenciais emancipatórios, quando presentes numa dada sociedade, sejam considerados e analisados de modo crítico.” (MELO, 2011, p. 249)

Referências

Melo, R. (2011). Teoria crítica e os sentidos da emancipação. Cadernos CRH, 24(62), 249-262.

Nobre, M. (2012). Teoria crítica: uma nova geração. Novos Estudos Cebrap, 93, 23-27.

Wiggerhaus, R. (2002). A Escola de Frankfurt: História, Desenvolvimento Teórico, Significação Política. Tradução Vera de Azambuja. Rio de Janeiro: Difel, 2002.


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