Existem pessoas para quem a sociedade funciona perfeitamente. Essas pessoas não enfrentam dificuldades de se locomover, moram em bairros seguros, com estruturas de saneamento, iluminação e lazer suficientes e bem mantidas, vestem-se da maneira como querem, têm acesso a sistemas de saúde e educação de primeira qualidade, se sentem confortáveis nos diversos espaços de socialização, são respeitadas em suas decisões, suas opiniões são ouvidas, seu modo de pensar é o mais comum, a cor de suas peles é considerada bonita e seu estilo de vida é o mais desejável. As autoridades, os líderes religiosos, os artistas, as pessoas notáveis, comungam de seus valores e crenças, se parecem até fisicamente com elas. Suas vidas são boas e o mundo lhes é confortável.
Porém, essa não é a situação de todos.
A (grande) maior parte das pessoas do mundo não tem acesso a meios de locomoção adequados e confiáveis. Em seus bairros falta segurança, ou estruturas de lazer, ou saneamento, ou iluminação, ou calçamento, ou tudo isso. Suas roupas não são tão bonitas, certos lugares não os recebem bem, suas opiniões e decisões são muitas vezes contestadas. A cor de suas peles, seu jeito de falar, o local onde nasceram ou até mesmo sua maneira de se expressar, são motivo de chacota e piadas de mau gosto. Muitas pessoas sequer se alimentam de forma suficiente ou adequada para se manter minimamente saudáveis, quiçá têm acesso a médicos, postos de saúde ou hospitais. Na perspectiva desse segundo grupo de pessoas, a realidade é defeituosa, funciona de um modo muito precário.
Se as sociedades fossem estudadas apenas da perspectiva das pessoas descritas no primeiro parágrafo, certamente seriam caracterizadas como mundos idílicos, repletos de tecnologias de sonho e prazeres transcendentes. Computação em nuvem, avião supersônico, terapias genéticas, indústria 4.0, festas em Ibiza, arranha-céus em Dubai, teatros, orquestras, museus e clubes de jazz, as belezas do mundo natural ao alcance dos turistas com seus navios de cruzeiro luxuosos, trens-bala e carros velozes, seguros e confortáveis, servidos pela alta gastronomia, vinhos, cervejas artesanais, entre outras maravilhas. Um paraíso quase indescritível.
Nesse mesmo mundo, a imensa maioria das pessoas sabe da existência dos prodígios da modernidade apenas por ouvir falar. Vivem à margem, em bairros periféricos, frequentando lugares que apenas imitam longinquamente os dos sonhos (isto quando têm alguma ideia do que pretendem imitar), comendo mal, sofrendo cronicamente com doenças evitáveis ou curáveis. Até mesmo o que aprendem na TV, na escola, no trabalho, ou mesmo nas suas casas, foi elaborado a partir da perspectiva daquele quinhão mais abastado para mantê-los em seus lugares periféricos. Se esses “marginais” escrevessem a história do mundo com lucidez, certamente o resultado seria uma plot na forma de tragédia.
Pois bem, a função da crítica é descrever a versão da história daqueles que não fazem parte da minoria para quem o mundo é bom.
A palavra crítica deriva do latim criticus, a qual, por sua vez vem do grego antigo kritikós, que significava capaz de julgamento, ou capaz de discernimento. Na tradição da filosofia clássica, crisis remete a um ponto de inflexão, quando uma ideia que se encontrava estabelecida era analisada para expor suas inconsistências e, então, substituída.
No pensamento contemporâneo, a crítica se reveste da função de analisar coisas, situações e ideias dominantes, para expor suas falhas e insuficiências. Mas não apenas. Também interessa à crítica a exposição dos equívocos nas instituições, nas leis, nos padrões de comportamento, nas crenças religiosas, nas empresas, enfim, em todos os pilares da sociedade. Isso, por que nossas sociedades não são idílicas como sugerem as ideias dominantes.
Desigualdade, fome, abandono, desamparo emocional, moradores de rua, transtornos psicológicos, racismo, intolerância religiosa, preconceito regional, ódio, insegurança, misoginia, machismo, a pandemia global de violência contra mulheres e LGBTQIA+s, tudo isto são evidências de que as sociedades são tomadas por, transbordam até, problemas.
Muitos de nossos costumes, saberes e ética foram criados quando a humanidade não dispunha de meios materiais o suficiente para garantir o acesso a todos. Contudo, com o advento da ciência, o surgimento de tecnologias industriais de produção de bens, serviços e alimentos, a humanidade não vive mais em escassez. Pelo contrário, hoje há tanta abundância que uma das principais características da contemporaneidade é o desperdício. Toneladas de comida são descartadas todos os anos no mundo; verdadeiros cemitérios de automóveis, aviões, navios, eletrodomésticos se espalham. Talvez já existam mais casas construídas que famílias; em algumas cidades, como Salvador na Bahia, isso é uma realidade. A indústria se dá até o luxo de programar a obsolescência de seus produtos, para forçar consumidores a comprar desnecessariamente. Marcas de luxo destroem grande parte das mercadorias apenas para impedir que sejam comercializados por preços mais baixos. Hoje, ao menos os problemas de acesso aos itens básicos de sobrevida poderiam ser resolvidos para toda a humanidade. Mesmo assim, tais problemas persistem.
Para quê expor e denunciar? Simplesmente, para que as pessoas tomem ciência de que a precariedade de suas vidas não é necessária. Percebam que seu sofrimento é evitável. E, claro, possam se organizar para exigir dos poderosos (e gananciosos) a mudança.
A história existe como um registro, um relato ou uma narrativa sobre como o mundo se transforma. As sociedades de hoje não são as mesmas de 50 anos atrás, nem tampouco daquelas de 100 anos atrás. Desenvolveram-se tecnologias, criaram-se palavras, assim como novas formas de relacionamento interpessoal e mesmo leis, instituições e costumes. Tudo na sociedade mudou, está mudando. Até mesmo as grandes religiões, alicerçadas em dogmas surgidos há milênios, sofreram profundas mudanças com o passar do tempo. Se a sociedade não é estática, é razoável acreditar que existe uma possibilidade de que ela mude no sentido de resolver seus problemas, os problemas de quem sofre.
Um filósofo do século XIX disse, sabiamente, que “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” Ou seja, há esperança, pois a história é o resultado das decisões das pessoas. No entanto, essa nova história não poderá escapar do fato de que, até aqui, muito já aconteceu e aqueles acontecimentos (saberes, tecnologias etc.) influenciam e interferem as decisões de quem vive o mundo hoje, para o bem e para o mal. Ou seja, não basta boa vontade, é também preciso conhecer profundamente aquilo que se pretende mudar, o quanto pode mudar.
A crítica é a primeira ferramenta dessa mudança. Sem a crítica, não é possível enxergar os problemas. É por meio da crítica que é possível confrontar o mundo como ele é.
E a crítica radical, por sua vez, é um tipo particular de crítica. Existem as críticas que se bastam da denúncia das questões sensíveis. São críticas rápidas, pois servem apenas para chamar a atenção para a diferença entre o que é e o que poderia ser. Ser radical, porém, significa não se contentar com apenas isso e, então, ir à raiz do problema. Ou seja, a crítica radical pretende também expor as causas primeiras dos problemas demonstrando, portanto, o que precisa ser mudado para que aquela situação deixe de afligir a humanidade.
Esse é, por fim, o chamado do pensamento crítico radical. A crítica é a atividade de expor os problemas, as formas de opressão e as insuficiências. Não se trata, porém, de meramente reclamar ao vento. A crítica radical visa também mostrar os porquês, a causas de tudo que nos aflige e, assim, poder fazer surgir as soluções. Não pode ser vazia de conteúdo, nem isenta de método. Não pode abandonar a verdade. Por isso mesmo a crítica é, talvez, a atividade humana mais necessária e urgente.
Primeiramente, a crítica pretende impedir que o mundo seja conhecido exclusivamente a partir da perspectiva de quem está vencendo. Muito porque sua vitória depende, é derivada, é construída sobre a derrota dos demais. Seus relatos, saberes e opiniões certamente servirão para que continuem no topo. A crítica é necessária para confrontá-los, assim como para subsidiar a luta dos que estão à margem.
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