Resenha: “Processos de Transformação da Sociedade e do Estado”

HIRSCH, Joachim. Transformationsprozesse von Gesellschaft und Staat. In.: HIRSCH, Joachim. Materialistische staatstheorie: transformationsprozesse des kapitalistischen staatensystems. Hamburg, Alemanha: VSA-Verlag, 2005. pp. 82-162.

Joachim Hirsch,[1] no texto aqui resenhado — o segundo capítulo de seu livro Teoria Materialista do Estado —, pretende fazer uma reflexão acerca das metamorfoses do Estado no século XX e como estas se relacionam com alterações da própria sociedade. Em verdade, tal qual expõe no primeiro capítulo deste livro, o autor enxerga o Estado não como instituição apartada do corpo social, mas sim como um elemento organicamente imbricado à urdidura das relações sociais concretas. Assim, as transformações sociais ao longo do século XX — das formas de produzir, das representações, etc. — seriam a própria mutação do Estado como elemento dinâmico de expressão/realização/negociação das contradições estruturais do modo de produção capitalista. O capítulo objeto desta resenha se divide em três subpartes. Na primeira expõe o arcabouço teórico utilizado em sua análise, a teoria da regulação. A segunda então realiza uma reflexão sobre a mudança de (a) o regime de acumulação e (b) o modo de regulação nas sociedades capitalistas ao longo do século XX. Ao final, o autor tece considerações acerca da transformação dos Estados e do sistema internacional a partir da observação dos fatores tratados nas duas primeiras etapas.

Hirsch inicia este excerto de seu livro realizando uma recuperação em linhas gerais da Teoria [francesa] da Regulação, a qual servirá como pano de fundo conceitual para sua análise. Abre esta discussão afirmando que as sociedades capitalistas são marcadas pela coexistência de um Regime de Acumulação o qual é acompanhado por um Modo de Regulação. O primeiro consiste na forma como se articulam as divisões técnica e social do trabalho e, consequentemente, como são gerenciados os processos de formação, realização e distribuição social do valor. Já o Modo de Regulação envolveria o aparato de coordenação mais ampla que dá suporte ao regime de acumulação, o que o autor explica a partir da noção de Estado Ampliado em Gramsci: composto não apenas pelo Estado formal e seus aparelhos de coerção e política profissional, mas também pelas representações sociais e o corpo de valores dominante, as instituições — como a escola, a igreja, etc. — e as organizações da sociedade civil.

Porém, neste caso o Estado formal representaria um papel determinante ao ser palco oficial do confronto entre as muitas representações e contradições do modo de produção; assim sendo, caberia ao Estado a coordenação ampla e articulação dos fatores que, à este associados, formariam um Estado Ampliado. Ainda remontando à contribuição de Antônio Gramsci, Hirsch então explica como as divergências de interesses no plano interno das nações se resolveriam a partir da tentativa das classes e suas frações em se firmar como hegemonias. Em outras palavras, se o Regime de Acumulação é o resultado das relações sociais de produção, o Modo de Regulação por sua vez emerge do embate político entre os interesses formados a partir destas interações concretas. Segundo o autor, no plano externo — ou internacionalmente — não se verifica uma coerência clara, ou algum tipo de regulação: o sistema internacional na visão de Hirsch tende à anarquia, com estados competindo entre si através de modos de regulação e/ou regimes de acumulação nacionalmente circunscritos. Isso não o impede, obviamente, de enxergar a prevalência de um regime de acumulação e modo de regulação fordista.

Na segunda parte do texto o autor realiza uma análise da formação e ocaso do modo de regulação fordista no século XX, enfocando as próprias transformações do Estado.

A seu ver, a conjunção de uma série de fatores contribuiu para a concertação social que sustentou o regime fordista: (1) a emersão e adoção da gestão taylorista/fordista na indústria, primeiro a partir dos EUA e depois Europa, com ganhos significativos de produtividade frente a outros arranjos organizacionais; (2) a crise da lógica de mercado desregulado em 1929, a qual criou um ambiente institucional propício para o desenvolvimento do Estado keynesiano — aparato estatal ocupado em garantir os níveis de demanda efetiva por meio de intervenção econômica direta, reforço do aparato militar e manutenção de um sistema social de bem-estar — nas palavras do autor, um Estado de Segurança; (3) a revolução de outubro de 1917, a qual ofereceu ao modo de produção capitalista o antagonismo mundial necessário para pressionar as classes capitalistas a realizar concessões à sociedade no sentido de assegurar o argumento de eficiência e racionalidade do sistema, e assim consolidar sua hegemonia; entre outros. Ainda de acordo com Hirsch, é preciso lembrar que talvez em nenhuma nação concreta estes fatores tenham se desenvolvido em sua plenitude, há um alto nível de abstração nestas afirmações.

O modo de regulação fordista se consolidou sobretudo após o final da segunda guerra mundial e durou aproximadamente até o início do segundo quartel do século XX. Seu regime de acumulação se caracterizou pela hegemonia da grande corporação capitalista de contornos monopolistas, pela racionalização reducionista do trabalho produtivo num arranjo em linha integrado verticalmente, pela orientação para a produção em massa e pelo foco no planejamento de longo prazo, mas também viu a emersão de sindicatos fortes e acirramento das lutas de classes. O modo de regulação à este associado partia de um Estado que garantia a acumulação eminentemente endógena através da manutenção da demanda efetiva em situação de pleno emprego [embora o autor não use este termo], o que dependia de uma concertação entre Capital e Trabalho no sentido da garantia de um aparado de bem-estar e ganhos reais de rendimentos para o trabalhador e a formação do já referido Estado de Segurança. Este período, ‘a era de ouro do capitalismo’,[2] teria sido marcado também pela centralidade dos EUA num contexto de arranjo internacional bipolarizado, face a URSS.

No entanto, segundo o autor, o mesmo aparato que garantiu a acumulação capitalista sob a égide do modo de regulação fordista, contraditoriamente formou as condições para sua superação. Os níveis de acumulação de capital nos países centrais, segundo Hirsch, se avolumaram ao ponto de três processos macroestruturantes se imporem: (a) a busca dos mercados externos por parte das grandes firmas capitalistas; (b) a migração de capitais para o sistema financeiro, aumentando a liquidez internacional — um processo que o autor, de fato, não aprofunda; e (c) a emersão de players globais que, dentro da concertação capitalista, passaram a problematizar a liderança norte-americana, inclusive em termos de produtividade do trabalho, como a Alemanha e o Japão. Abriam-se assim as portas para emersão de um modo de regulação pós-fordista.

No que diz respeito à organização do trabalho, segundo o autor o pós-fordismo foi marcado: (a)  pela emersão do trabalho flexível, com precarização das condições de reprodução e enfraquecimento dos sindicatos; (b) por uma redução da temporalidade na expectativa de lucro do ponto de vista do capital, que se passou a se orientar para a obtenção de ganhos no curto prazo — muito influenciado pela financeirização das economias capitalistas; (c) por uma oligopolização dos mercados, desta vez orientados para o plano externo/internacional, donde emergiram os arranjos em rede e se fortaleceram as cadeias produtivas globais, não mais integradas verticalmente dentro de uma nação única; (d) pela expansão do setor de serviços, com destaque para a emersão e centralidade da biotecnologia e das tecnologias de informação; e (e) pela compressão do espaço-tempo, o que o autor tampouco discute de maneira apropriada. Estes fatores comporiam, segundo Hirsch, as características do regime de acumulação pós-fordista.[3]

Considerando o espaço da legitimação sócio/institucional do pós-fordismo, o autor defende que o modo de regulação também sofreu transformações que levaram a uma reconfiguração do pacto social [mais especificamente seu abandono] e do próprio Estado. Internacionalmente, houve uma passagem de um mundo capitalista centrado nos EUA para a formação de um arranjo triádico em torno da União Europeia, Japão e Estados Unidos da América. Do ponto de vista econômico, o consenso keynesiano foi paulatina, mas inexoravelmente, substituído por uma abordagem neoliberal — o que contribuiu para o desmonte [ainda em processo] do estado de bem-estar. Assim, as nações teriam observado a redução da oferta de serviços estatais e a formação de uma [insuficiente e fragmentada] rede de compensações [marginais] a partir da sociedade civil organizada. O Estado de Segurança, por sua vez, deu lugar a um arranjo no qual os governantes passaram a tentar garantir a competitividade de seu sistema econômico no plano internacional, formando assim o que Hirsch chama de um Estado Competitivo; nova configuração esta marcada pela perda relativa da soberania do Estado, desregulamentação dos mercados e ênfase na integração internacional [exógena].

A terceira parte do capítulo é utilizada por Joachim Hirsch para, então, realizar uma reflexão sobre esta nova configuração do Estado: o Estado Competitivo Internacional. Em primeiro lugar, o autor aponta para o fato de que tal aparato é mais dependente dos mercados de capitais, uma vez que suas ações são largamente financiadas a partir da formação de dívida interna. Graças à esta dependência, na pauta do Estado teria se visto surgir, sobretudo a partir da década de 80, uma crescente pressão interna para se flexibilizar — ou desregulamentação — o mercado financeiro; o que, em outros termos, se materializou no desmonte do aparato regulatório criado após 1929 para prevenir as crises financeiras do capitalismo. Uma outra característica observada pelo autor seria uma tendência à desnacionalização, o que estaria evidente na aproximação comportamental, ideológica e reivindicatória das classes capitalistas em termos globais. A própria política, enquanto orientação de ação do Estado, estaria sendo gradativamente privatizada, tanto em termos dos processos decisórios do Estado como em termos da prestação de serviços, todos estes incorporados por capitalistas especializados. No plano internacional, com a mudança de eixo do desenvolvimento do foco endógeno para exógeno, teriam se fortalecido as regulamentações internacionais, materializadas em burocracias, como a Organização Mundial do Comércio, e em blocos regionais, como a União Europeia. Por fim, Hirsch então afirma que as funções político-administrativas do Estado-Nacional teriam se descolado (a) para níveis subnacionais, ou seja, assumidas por capitalistas e/ou ONGs [PPPs, terceirizações, etc.], ou (b) para níveis supranacionais, incorporadas por, desde organismos internacionais de regulação como a já citada OMC, até ONGs internacionais e outros arranjos de configuração menos claras [ainda].

Este insight oferecido pelo autor é particularmente interessante. Se, de certa forma a consolidação de um Estado de Segurança num mundo bipolar foi importante para manutenção da hegemonia capitalista face a alternativa socialista — processo este que envolveu concessões de transferência de renda e bem-estar para a população, através da formação de um Estado mais [mas não completamente] plural —, é perfeitamente coerente observar que, uma vez o inimigo socialista tendo sido derrotado [URSS em 1989] ou cooptado [China], simplesmente o aparato de concessões tenha sido desmontado. A configuração de um Estado Competitivo aparece, portanto, como uma reorganização do aparato político em direção à sua finalidade primordial dentro do modo de produção capitalista: a manutenção de um ambiente favorável para a acumulação de capital e fruição conspícua da riqueza [por poucos]. Assim, quando os Estados desmontam as estruturas de bem-estar e privatizam as instâncias decisórias mais nevrálgicas do sistema — podemos citar, por exemplo, toda a discussão em torno da manutenção de um Banco Central independente —, seja sub nacionalmente [para controle dos capitalistas locais] ou supra nacionalmente [para controle dos foros capitalistas internacionais], só se esta reparando a configuração ontológica original da instituição da usura. Um Estado que tende ao plural não é mais necessário, nem desejável, pois nele podem vir a se infiltrar elementos estranhos à sua natureza.

Por outro lado, algumas omissões são muito patentes no texto de Joachim Hirsch.

A primeira delas, e talvez mais gritante, seja o fato deste ter ignorado as duas grandes guerras mundiais e seu peso, primeiro na revolução russa [e o contrapeso desta para o fim do conflito], depois na formação das instituições de regulação internacional a partir das concertações em Breton Woods e, enfim, nos acordos econômico-monetários que levaram à reconstrução de Europa e reinsersão dinâmica da Alemanha e do Japão no cenário político/econômico internacional. Esta omissão torna-se ainda mais relevante quando, no decorrer do texto, o autor aponta [apressadamente] o conflito no vietnã como um dos marcos para o ocaso da hegemonia norte-americana. Paira a pergunta: qual terá sido o critério para relegar um menor peso aos dois conflitos totais, enquanto um conflito onde as duas potências mundiais mediram força por meio de uma guerra civil recebeu destaque?

A segunda omissão está no sumário descarte da teoria de economia-mundo pela simples justificativa de que o autor não enxerga uma regulação a nível internacional. Pesa o fato de que tampouco assim pensam [ou pensavam] os teóricos de sistema-mundo, como Giovanni Arrighi, Immanuel Wallerstein ou Fernand Braudel; os quais, inclusive, apresentam um quadro referencial que inclui as duas grandes guerras mundiais [mais especificamente suas causas e desenvolvimento] como um dos fatores preponderantes para a consolidação do modo de regulação fordista.

E, talvez não necessariamente uma omissão, mas um fator que emerge muito marginalmente, podemos apontar o tratamento relegado à financeirização das economias centrais capitalistas. O autor menciona este fator como um elemento do assim chamado pós-fordismo, todavia este recebe um [dês]foco apenas complementar e meramente acessório na explicação geral das transformações do Estado. Acreditamos que isto é particularmente problemático quando, observando por exemplo o trabalho A Finança Mundializada[4] de François Chesnais, percebemos o quanto o setor financeiro nos últimos 40 anos foi determinante — ideológica e concretamente — para a formação das políticas públicas de Estado, bem como para a gestão e avaliação das empresas. Se há um novo modo de regulação capitalista com alcance hegemônico, este poderia ser denominado como Modo de Regulação Financialista [ou Neo-Financialista, uma vez que as finanças mundias já estiveram no poder do capitalismo global na passagem do século XIX para o século XX].


[1] Joachim Hirsch (*1938) é doutor em Ciência Política pela Universidade Johann Wolfgang Goethe, Frankfurt am Main, da qual é professor emérito de Ciência Política. Seus trabalhos envolvem a reflexão crítica sobre o Estado, a socialdemocracia alemã, os processos de globalização, entre outros.

[2] HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. Tradução Marcus Santarrita. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.253.

[3] Um breve comentário antes de continuar: esta nomenclatura — modo de regulação pós-fordista —, percebemos, é utilizada não necessariamente pelo fato de que um modo de regulação tenha sido substituído por outro, mas principalmente porque os princípios do primeiro foram sendo contestados e, assim, deram lugar à processos que simplesmente os negavam sem necessariamente firmarem uma contra tendência claramente articulada e regulada.

[4] CHESNAIS, François (org.). A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, conseqüências. Tradução Rosa Marques, Paulo Nakatami. São Paulo: Boitempo, 2005.


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