Depois de anos de atraso, contestações judiciais e um tanto de suspense, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) divulgou o novo Qualis, referente aos anos de 2017 a 2020. Muitas críticas a todo o processo foram levantadas, desde sobre a transparência, passando pelo atraso e, obviamente, à contradição inerente ao se avaliar algo a partir de critérios definidos ex post facto, chegando até o conteúdo do documento. Esse último ponto chamou muito a atenção de campos como administração e economia; é esse particular que eu pretendo problematizar, para tratar um pouco dos porquês da reação.
Vamos entender melhor a questão?
O Qualis é um sistema governamental de indexação de revistas científicas. Trata-se de uma lista exaustiva de periódicos nos quais se publicam trabalhos acadêmicos, que são classificados em extratos de acordo com um critério de avaliação definido por área. Para cada campo de saber — sociologia, engenharias, química, artes plásticas e assim por diante — é constituído um grupo de trabalho que produz os critérios e a lista de periódicos indexados. O grupo de trabalho normalmente é composto por especialistas e pesquisadores do campo, que estejam vinculados a instituições de ensino superior.
Essa classificação é empregada para mensurar qualitativa e quantitativamente os resultados do esforço de investigação de pesquisadores brasileiros, bem como de centros de pesquisa e Programas de Pós-Graduação (PPGs), por meio dos resultados divulgados na forma de papers, artigos, ensaios, resenhas e outros. Assim sabemos quais pesquisadores foram mais produtivos, com produção mais significativa, bem como podemos identificar quais instituições ensejaram estudos e linhas mais exitosas.
A base é utilizada sobretudo para subsidiar a avaliação quadrienal dos PPGs, que são ranqueados em cada campo de saber, com notas entre 1 e 7. Depois, essas notas são empregadas para várias ações, desde autorizar ou não a continuidade do programa, como critério para distribuir recursos destinados ao fomento de pesquisa, bolsas para estudantes, bolsas de produtividade etc. Logo, o Qualis é base para distribuição do (pouco) dinheiro que o Estado brasileiro destina como suporte para pesquisa nacional.
Lembremos dois dados importantes. Primeiro, a grande maior parte da inovação tecnológica no Brasil é produzida na universidade pública, aproximadamente 76% dos novos registros de patentes a cada ano (a empresa que mais registra patentes é a também estatal Petrobrás). Segundo, em qualquer ranking que se utilize — Folha, Shangai, THE, pick your choice —, as instituições públicas de ensino superior são apontadas como as melhores do Brasil, por uma distante margem de liderança. Ou seja, além desses recursos de fomento ajudarem a sustentar a formação de trabalhadores de altíssima produtividade em diversas áreas — competência quase exclusiva das universidades públicas —, contribui para o desenvolvimento tecnológico que mais adiante será explorado pelas empresas.
Pois bem, o ranking Qualis referente a 2017-2020 demorou dois anos para ser divulgado, trazendo algumas mudanças, dentre estas uma que eu penso ser a mais controversa: a unificação do indexador. Antigamente, cada área tinha uma lista própria de ranqueamento de periódicos, que servia para classificar e avaliar os PPGs em seu próprio campo. Agora, embora as áreas indiquem os periódicos por nível segundo sua especialidade, foi formada uma lista única que vale igualmente para todos os pesquisadores e PPGs. Uma revista classificada como A1 (extrato mais alto do Qualis) na área de educação — mas que, antes, na administração, por exemplo, valia apenas B4 (um dos extratos mais baixos) —, passa a valer o mesmo que os periódicos que a área de administração atribui o nível A1, inclusive para os PPGs de administração.
Desde a publicação, circula uma crescente indignação nos espaços de debate e foro entre pesquisadores da administração e estudos organizacionais, sobretudo naqueles que reúnem os quadros das “melhores” e “mais bem conceituadas” instituições brasileiras (as aspas não são despropositadas) que, não por acaso, estão radicadas no Sul e Sudeste. A divulgação também suscitou manifestações de repúdio e até mesmo contestações judiciais das instituições de representação, como Sociedade Brasileira de Administração Pública (SBAP), Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Administração (ANPAD), para citar duas das mais importantes. A discussão gira em torno da falta de transparência, da demora do processo de avaliação, dos critérios definidos ex post facto, da própria constituição dos grupos de trabalho etc., aqueles pontos já levantados.
Eu analiso que o problema é outro. Vou fazer aqui o papel de advogado do diabo, se me permitem.
Já há muitos anos a área de administração e estudos organizacionais classifica entre os melhores periódicos apenas aqueles de países do Norte rico, sobretudo controlados por grandes empresas editoras como Emerald, SAGE e Elsevier. Salvo raríssimas exceções — um periódico da UFPR, um da UFBA, alguns da USP e FGV — as revistas brasileiras gozam de um status baixíssimo no Qualis da área. Essas exceções, diga-se de passagem, vêm adotando os parâmetros, estética e mesmo a linguagem (inglês, obviamente) daqueles internacionais, numa clara demonstração de subserviência e dependência intelectual.
Assim, os pesquisadores mais proeminentes da área se adequaram (com algum grau de sucesso, temos que admitir) aos modos de fazer, divulgar e promover ciência do Norte rico. Inclusive, com emprego quase exclusivo das referências, problemáticas e signos de comunicação alienígenas. Circulam nos eventos acadêmicos da Academy of Management (AOM) ou do European Group for Organizational Studies (EGOS)[1], sempre trazendo de lá um misto de deslumbramento e prepotência, como se se esgueirar nas margens do estrangeiro, com falas esvaziadas, ideias inauditas e adesões constrangedoras fosse grande coisa, afinal. Quando um pesquisador brasileiro é citado e reverenciado por esses acadêmicos, normalmente é um daqueles que fez carreira no exterior, tal qual Alberto Guerreiro Ramos (brilhante homem negro, orgulho nacional, pensador arguto, eu admito), entre outros.
Me parece que muito da grita que se faz contra o Qualis 2017-2020 é porque os periódicos internacionais (e aqueles nacionais que estão se internacionalizando) tiveram seu “valor” relativizado pela presença de nacionais nos extratos mais altos, que tinham mais proeminência em outras áreas de conhecimento. Quando o novo Qualis equipara muitos periódicos nacionais de áreas como filosofia, educação, direito, sociologia, aos internacionais que dominam administração e economia, há uma clara mudança na importância relativa da produção desses pesquisadores e respectivos PPGs.
Aqueles que têm se esforçado para se adequar aos parâmetros de fora, se viram comparados qualitativamente a outros que, em outras áreas, circulam mais nacionalmente. Da mesma forma, imagino que programas mais adaptados ao (ou vitimizados por?) espelhamento do estrangeiro devem ter sua importância também relativizada.
Não sei se eu desaprovo totalmente essa mexida nas coisas.
Vai ser interessante quando os recursos estatais começarem a ser repartidos com base nesse novo documento de avaliação. Me pergunto, por exemplo, como ficará a regionalidade da percepção de qualidade de PPGs? Ou como resultados de concursos serão afetados, diminuindo a dominância dos egressos daquelas instituições mais badaladas? Ou ainda, como ficarão as contemplações nos editais de fomento, enviando bolsas e recursos para instituições mais longe do centro, mais próximas do Brasil de fato?
Eu penso que com o Qualis 2017-2020, ganham aqueles pesquisadores que transitam mais, que dialogam com outras áreas, assim como circulam por espaços nacionais. Será que isso é mesmo um problema, ou o princípio da solução?
[1] Tenho que admitir que a sigla do EGOS é muito, muito apropriada. As vezes a própria realidade vem com ironia.
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