O filósofo húngaro Istvám Mészáros apenas há alguns anos atrás enfrentou uma dúvida que precisou de um livro para não ser respondida, a qual resumiu no título da obra: Século XXI, socialismo ou barbárie? A pergunta, na verdade deixada por Karl Marx, ainda nos assombra como um espectro mais assustador do que qualquer comunismo ou socialismo que tenha havido ou sido cogitado, muito pela sua gravidade e urgência.
O esclarecido professor, usando como suporte o conceito de sociometabolismo do capital desenvolvido em sua obra prima Para além do capital, mostra naquele livro um tom grave, embebido em descrença e talvez até mesmo um tanto pessimista, quando ao destino da humanidade. Mas não deixa de sugerir – como faz livro a livro – planos de ação que a esquerda mundial poderia (mas se recusa a) utilizar para combater a hegemonia de pensamento único (simplista, degradante, irracional) capitalista.
Mészáros deixa a pergunta título de seu livro em grande parte sem resposta, como não poderia deixar de ser, pois serão os historiadores do século XXII quem se encontrarão mais aptos a respondê-la (se ainda resistirem alguns). Porém, quando nós, que vivemos nestes tempos tão áridos, olhamos nosso entorno, percebemos não ser possível simplesmente ignorar a clara tendência: parece que, cegos, estamos caminhando em direção ao caos.
Adeus à coletividade!
Não é preciso dizer mais que o mundo ocidental capitalista contemporâneo está fundamentado em valores individualistas. Isto é um lugar mais do que comum. Defender que as pessoas abandonaram qualquer possibilidade de compromisso com a coletividade é até uma atitude intelectual simplista. É antiga até mesmo a justificativa teórica para isto, a interpretação utilitarista da economia elaborada pelo filósofo Adam Smith em seu livro A Riqueza das Nações que já tem mais de 230 anos de publicação, operacionalizando na seara econômica os ditos e escritos do então célebre e influente jurista inglês Jeremy Bentham. Porém, o foco no indivíduo está chegando em níveis alarmantes, de modo inclusive a colocar em perigo a própria possibilidade das pessoas coexistirem.
A guerra de cada um nas ruas
As grandes cidades se tornaram [medonhos] monumentos dedicados à imobilidade e irracionalidade do uso/distribuição do espaço. Porém, o enorme esforço exigido para se deslocar pelas ruas das metrópoles não é uma desculpa suficientemente forte para justificar as atitudes das pessoas no trânsito. As avenidas de Salvador, São Paulo, Fortaleza, parecem campos de batalha nos quais cada combatente, conduzindo sua arma, defende sua própria causa. Não há mais respeito a quem chega primeiro, a quem é mais idoso, a quem conduz crianças, doentes, grávidas. Só há uma única atitude permitida, a de levar vantagem sobre os outros.
Para este fim vale tudo, andar pelo acostamento, furar filas de entradas, avançar sobre pedestres, ignorar sinais vermelhos [aliás, ignorar todas as leis e regras, exceto a fiscalização eletrônica de velocidade], insultar, ameaçar – inclusive o assassinato por motivo fútil no trânsito tem sido cada vez mais comum, praticamente parte da rotina diária. Não há oportunidade para cortesia; se alguém consegue esboçar um mínimo de cordialidade, quando esta não é simplesmente ignorada, é duramente criticada, até mesmo pelos contemplados. O resultado disto é uma grande confusão que eleva o estresse das pessoas a níveis alarmantes, além de extrair delas o pior.
Tudo em nome do benefício individual, como se disputássemos o prêmio de quem chegará 1 minuto mais cedo do que os outros. Cada um acredita ter mais direito a chegar em seu compromisso, fútil ou não, que toda a cidade. É como se nada mais importasse além de si mesmo.
O apodrecimento das relações
A tendência ao individualismo influencia inclusive os mais corriqueiros afazeres do dia-a-dia. Dos pontos de ônibus às filas dos bancos, as pessoas não respeitam a ordem de chegada, tampouco o direito dos idosos, menos ainda esboçam qualquer gentileza de tratamento. Agem como que desprovidos de empatia, ignorando o direito dos que estão a seu redor, partindo do pressuposto que de sua urgência pessoal é imperativa e inadiável. Nos bares e restaurantes, clientes e atendentes trocam farpas, quando não agressões diretas e mesmo físicas, tal qual rivalizassem em uma disputa infinita de poder num jogo de soma zero.
Nos ônibus e metrô os lugares reservados ou preferenciais são ignorados, pessoas são empurradas, pisoteadas, apalpadas, assediadas. Como se não bastasse a superlotação, todos parecem individualmente engajados em proporcionar o máximo de desconforto aos demais, desde que isto aumente seu próprio “bem-estar” – muitas vezes parece que “bem-estar” e “desconforto alheio” são sinônimos perfeitos. Usar o celular como sistema de som parece ser uma regra tácita: cada qual competindo para saber qual aparelho tem o volume mais alto e o set-list mais baixo.
Mercados, lojas, shoppings, shows, praças, carnavais, jogos de futebol, quaisquer espaços coletivos, públicos ou privados, estão se tornando lugares de violência. É verdade que muito advém daquela violência da expropriação dos bens dos outros – a violência revoltosa da pobreza -, mas também parte dos atos de agressão, talvez a maior parte, são perpetrados pela arrogância individualista dos que se ocupam da violência recreativa. Torcidas enfrentam-se até a morte, gangues de esportistas marciais de classe média e alta trocam insultos e agridem outsiders, tribos urbanas diversas disputam locais de socialização. Até mesmo a polícia parece se engajar em agendas de seu próprio interesse, completamente alheios ao que acontece no entorno. Tudo isto enquanto as classes altas segregam-se em [amplos e desproporcionais] espaços exclusivos, nos quais celebram sua alteridade artificialmente construída.
Cada relação, cada espaço de socialização, esta como que apodrecido pela extrema individualização dos interesses.
O imperativo do Um (ou da centralidade do “Eu”)
O individualismo, como já foi dito aqui, não é algo novo. É possível traçar a genealogia do termo/conceito/coisa “individualismo” até a época do renascimento, daí entranhando-se no iluminismo francês e mesmo no Aufklärung alemão; não é difícil encontrá-lo imiscuído (direta ou indiretamente) nas palavras de Francis Bacon, John Locke, David Hume, Jean Jacques Rousseau, Immanuel Kant, entre muitos outros filósofos de referência no ocidente; talvez seja possível remontar até ainda mais longe no tempo. O individualismo precede inclusive o modo de produção capitalista – este que em nada inova, mas se apropria de tudo para incrementar o duplo processo de concentração e acumulação de capital.
Porém é ao capitalismo – ao assegurar os interesses das classes burguesas – que a filosofia individualista deve sua presente hegemonia. A partir do momento que se percebeu que a noção de liberdade individual poderia minar as possibilidades de ação coletiva das classes subalternas, ao mesmo tempo em que proporcionava o pano de fundo para a necessária competição que auxilia o capital no processo de controle dos trabalhadores, este passou a ser tomado como explicação única da realidade. No final das contas, as classes capitalistas abraçaram o individualismo, pois este realiza uma dupla função: (1) monta uma justificativa filosófico-ideológica para a hegemonia burguesa, enaltecendo o homem que se faz por si mesmo– o self made man; e (2) auxilia a alienar e controlar o trabalhador, verdadeira fonte material das riquezas do capital.
Longe de ser combatida, a hegemonia individualista tem sido reproduzido entusiasticamente das escolas ao mercado de trabalho, como se fosse algo que contribuísse para o interesse da coletividade. Pior, tem avançado a níveis extremos, como pudemos exemplificar mais atrás. Contemporaneamente, a ideologia capitalista do pragmatismo individualista vem se entranhando gradativamente em cada relação social. Esta constrói para si estruturas de reprodução que envolvem desde os conteúdos ensinados na formação elementar até a pós-graduação, está misturada aos desenhos animados que entretêm/condicionam as crianças, chegando até ser fundamento comportamental dos filmes hollywoodianos que consumimos acriticamente em nossas horas de lazer.
Ou seja, os valores individualistas tem sido tomados como base para praticamente toda produção cultural, intelectual e política de nossa sociedade. E temos absorvido isto tão acriticamente quanto é possível: afinal – e isto é ideologicamente reforçado dia-a-dia – qual o sentido de se pensar coletivamente, se podemos ser egoístas e alcançar certos benefícios pessoais mais rapidamente agindo em detrimento do bem-estar da maioria?
Considerações para um novo começo?
O grande problema da escalada individualista está no fato de que a coletividade é o elemento central para constituição e suporte do indivíduo. Através das relações com outras pessoas, organizadas num grupo inter-dependente, aprendemos nossa linguagem, emulamos costumes, internalizamos interpretações e concepções de mundo; segundo a antropologia, até mesmo o andar e o jeito de sorrir são características adquiridas a partir do trato social. Tudo o que nos delimita enquanto indivíduos vem da sociedade, precisamos da coletividade para existir. O que permitiu o homo sapiens sapiens se destacar dentre as outras espécies não foi, como muitos acreditam, a capacidade em si do cérebro desenvolver a razão, mas sim a oportunidade única que o viver em sociedade ofereceu no desenvolvimento da racionalidade, resultado da característica gregária da espécie, de sua capacidade de resolver coletivamente os problemas da sobrevivência.
Ao suprimirmos a coletividade em nome de uma ditadura do indivíduo, colocamos em perigo a socialização. Ameaçamos tudo aquilo que compõe a própria natureza dos indivíduos em primeiro lugar. Ou seja, negar a coletividade é negar o indivíduo. Esta é uma das contradições estruturais do tempo presente: ao nos tornarmos individualistas na tentativa de garantir a superioridade de nossos ganhos pessoais e recompensas em detrimento dos demais, colocamos em xeque nossos interesses maiores que dependem de nossas relações com estes. O individualismo está nos reconduzindo gradativamente à condição de animália, estamos retrocedendo à barbárie da lei da selva ao aponto de abdicarmos até mesmo da razão, sem a qual pouco somos, em nome da individualidade.
* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2008, já estudante de graduação no Bacharelado em Ciências Econômicas da UFBA, logo depois de concluir o Bacharelado em Administração na mesma Universidade, eu escrevia um blog com esse título, Administração Crítica. Foram muitos textos elaborados com aquele ímpeto do estudante de graduação, de recém formado, com colocações pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).
Em 2010 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal. Em minha opinião, revelam um cuidado teórico pouco refinado (acho que nem tenho ainda), mas já uma vontade enorme de fazer ciência crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, de que podemos querer mais do que reproduzir os saberes mainstream.
Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o escrito, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero —, deixa de pertencer a nós.
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