Resenha: “Do Fordismo à Acumulação Flexível”

HARVEY, David. Do fordismo à acumulação flexível. In.: HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 18.ed. São Paulo: Loyola, 2009.

Excerto do já há muito conhecido e reverenciado livro de David Harvey,[1] Condição pós-moderna, o capítulo aqui resenhado toma por papel expor as transformações de ordem produtiva que teriam marcado o surgimento da pós-modernidade no último quartel do século XX. O autor afirma que, no plano da reprodução material, a partir do final da década de 60 o regime de acumulação fordista foi superado por uma concertação capitalista diferenciada, cuja principal e mais marcante característica seria a flexibilidade, denominado por este como acumulação flexível. A seguir expomos sucintamente as principais diferenças entre estes regimes, bem como destacamos alguns de seus principais efeitos, para então discutir as possíveis consequências desta passagem no ramo da formulação e gestão de política industrial.

O fordismo nasceu como uma teoria gerencial cujos princípios associam o controle taylorista do trabalho à produção em linha com escala ampla, e a manutenção de um sistema de rendimentos que permita os trabalhadores consumirem os produtos aos quais contribuem para fabricação. O autor, porém, chama de fordismo a particular articulação desta forma de organizar a unidade produtiva com um ambiente institucional — Estado — favorável para seu florescimento e desenvolvimento. Tal conjuntura teria se consolidado num Regime Fordista de Acumulação[2] somente após 1945, quando os Estados Unidos da América se afirmaram como modelo hegemônico de desenvolvimento – cujas formas de articulação Estado/Empresa deveriam ser copiadas.

De acordo com David Harvey, as principais características do que podemos aqui chamar de regime fordista de acumulação estiveram amparadas num ambiente institucional qualificado por dois elementos principais: (1) a adoção de políticas macroeconômicas de inspiração keynesiana por parte do Estado, o que significa, em outras palavras, a atribuição de significativa importância à manutenção da demanda efetiva para assegurar o crescimento econômico e a lucratividade do Capital; (2) organização do Estado em torno da promoção de bem-estar social, associado à criação de uma ampla rede de serviços básicos para o conjunto da população, o que acaba se configurando como uma forma de distribuição global de renda.

Esta concertação fordista/keynesianista seria marcada, para o autor, por: certo nível de estabilidade econômica; manutenção de demanda efetiva através do pleno emprego (ou existência de mero desemprego friccional); regimes estáveis de trabalho; forte poder sindical; produção em larga escala e de maneira indiferenciada com fins de atingir um amplo mercado consumidor; entre outras características.

A partir do final da década de 60 esta concertação começou, segundo Harvey, a dar sinais de exaustão — esta principalmente indicada pela depressão nas taxas de lucro para o Capital nos EUA e Europa. Este processo teria iniciado diversos fluxos, como a desindustrialização de alguns dos centros capitalistas mundiais, financeirização das economias centrais, surgimento de novos players globais no leste da Ásia os quais recebiam os dólares excedentes nos países centrais na forma de investimentos, entre outros. No mesmo período, os saltos de desenvolvimento nas tecnologias de transporte e comunicações teriam, de acordo com o autor, proporcionado uma maior capacidade de articulação das muitas regiões ao longo do globo, permitindo tanto uma maior descentralização das instâncias produtivas como uma maior centralização do controle sobre o trabalho.

Em termos de gestão Estatal, tanto o consenso keynesiano como a noção de bem-estar foram contestados nos países centrais, levando à emersão de coalizões mais conservadoras no plano de poder, associados às ideias [neo] liberais no que diz respeito à condução das políticas macroeconômicas e sociais. No âmbito da racionalidade administrativa do Estado a noção de bem-estar social foi abandonada, dando lugar à austeridade fiscal. Esta inflexão, particularmente associada ao crescimento do poder representativo das organizações do sistema financeiro, auxiliou na desregulamentação das finanças bem como no aumento do intervencionismo Estatal — limitado ao socorro e manutenção da lucratividade do Capital financeiro.[3]

Tais mudanças econômicas, sociais e políticas abriram caminho para a fixação do que Harvey chama de acumulação flexível, caracterizada por: instabilidade; manutenção de desemprego estrutural; fortalecimento do subemprego e de regimes instáveis de trabalho; dilapidação do poder sindical; aceleração do ritmo de inovação do produto com redução do ciclo de vida da mercadoria; focalização de nichos e produção em escalas menores; entre outros fatores.

Tais transformações no Regime de Acumulação que Harvey destaca são particularmente associáveis à contribuição da Escola Francesa da Regulação – a qual percebeu na dinâmica estatal e produtiva mais uma etapa da transformação do modo de produção capitalista no sentido de assegurar sua capacidade de valorização e acumulação. De certo modo, a constatação que o autor faz quando destaca os “novos” desafios para o Estado (p.160), pode, ainda que grosseiramente, ser resumida na máxima marx-engelsiana de que esta instituição é tão somente o comitê de negócios da burguesia. Não haveria, portanto, uma verdadeira transformação no papel do Estado e sim uma mudança nas táticas deste para se aperfeiçoar no exercício de sua função primordial, a qual pode não ter sido verdadeiramente abandonada: assegurar os interesses do Capital.

Porém, tomado isto como um dado, os impactos da emersão de uma Acumulação Flexível diante da falência, ainda que parcial, do Regime de Acumulação Fordista na formulação de políticas industriais oferecem uma ampla gama de discussões. Um primeiro ponto a se destacar neste sentido é o seguinte: parecem ser diferentes os desafios para a construção de um aparato institucional visando o desenvolvimento industrial tendo por base as racionalidades das economias de escala típicas dos moldes fordistas — portanto pressupondo uma demanda efetiva relativamente estabilizada e um mercado consumidor homogeneizado[4] —, daqueles que emergem num ambiente de acumulação flexível, no qual as economias de escopo são mais preeminentes. E, acreditamos, esta tensão pode muito bem ser materializada numa pergunta: como induzir o desenvolvimento industrial amplo quando as formações industriais mais eficientes são menores, o emprego é flexível e as decisões são descentralizadas e submetidas a regiões fora do território nacional?

Por outro lado, o ambiente fordista pressupõe inclusive uma maior capacidade de programação econômica por parte do Estado, esta fundamentada na noção de manutenção de uma demanda efetiva. Para a formação de políticas, um contexto desta natureza congrega vantagens óbvias. Mas num ambiente caracterizado por acumulação flexível, no qual o Estado abre mão de poderes soberanos no plano econômico para permitir uma maior integração ao sistema internacional, a própria efetividade de medidas econômicas é contestável graças aos escapes proporcionados pela existência de um sistema livre de transações com o mercado internacional. Ainda que se conteste a noção de diluição do poder do Estado nos termos defendidos, por exemplo, por um Bertrand Badie, num ambiente liberalizado as políticas industriais tradicionais deveriam ter seu poder relativizado.

A própria discussão acerca do papel do Estado, mesmo no limite superficial que é conduzido nos textbooks do mainstream a respeito da possibilidade ou não de intervir na economia, repercute na seara de diálogo em política industrial. Nesta esfera restrita é possível tanto se perguntar se o Estado deve, efetivamente, induzir a atividade industrial interna ou deixar estes departamentos se desenvolverem naturalmente de acordo com as livres forças do mercado; como emergem também questões de se, dado o caráter de classe do Estado e, portanto assumindo como um dado sua obrigação de atuar em função das classes dominantes locais, este deve escolher departamentos ou indústrias específicas, neste caso privilegiando frações particulares da classe capitalista, ou não. Dito de outra forma, na passagem de um Estado necessariamente preocupado com a manutenção da demanda efetiva para um que simplesmente gerencia e regula as macro-instituições do sistema econômico, a própria noção de existência de uma política industrial pode ser contestada.

As provocações levantadas por Harvey, ainda que assinaladas por uma ou outra licença interpretativa a nosso ver problemática, são preciosas no sentido de expor a transformação da própria ação estatal à qual a noção de políticas públicas de modo geral, e de política industrial especificamente, está subordinada. Claro que, como toda época em construção, a noção de pós-modernidade, ainda que tão amplamente discutida e aceita, possui status de conceito em construção da mesma forma que está em processo de desenvolvimento o momento histórico que pretende descrever.

No entanto, não é possível discordar de Harvey quando este marca como principal característica deste tempo pós-moderno, ao menos no que tange a organização do trabalho e da fábrica, a flexibilidade. Como diz o autor: “a estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais.” (p.148). Podemos inclusive falar de mudanças na estética organizacional e, no limite, no que seria uma estética industrial, sempre lembrando de que o sentido de belo já foi descrito por Hegel como o próprio sentido da razão — neste caso, o belo como o que é reconhecidamente obra racional do homem. A mesma razão que é constantemente [em nossa opinião de maneira apressada] associada à lógica empresarial e/ou ao setor privado do mundo capitalista.


[1] David Harvey é Geógrafo (St. John’s College, Cambridge University, UK), Doutor em Geografia (St. John’s College, Cambridge University, UK) com estágio de pós-doutorado na University of Upsala, Suécia. É atualmente professor e pesquisador na City University of New York. Sua pesquisa pode ser classificada como geografia política crítica e é autor de inúmeros trabalhos com este teor, dentre eles A Condição Pós-Moderna, Os Limites do Capital, O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo, entre muitos outros.

[2] Em oposição ao termo acumulação flexível utilizado pelo autor (HARVEY, 2009, p.140), mas obviamente assumindo como nossa a responsabilidade de utilização do termo “regime”, para denotar uma organização ampla, disseminada e institucionalmente referendada.

[3] Esta associação contraditória entre desregulamentação e intervencionismo, típica do Modo de Produção Capitalista, parece ser mais bem compreendida nos termos do dicionário orwelliano dominante em seu mundo fictício. No romance 1984, Orwell se utiliza do termo “Duplipensamento”, ou a capacidade de defender ideias contraditórias que se anulam mutuamente por conta da necessidade de assegurar os próprios interesses, para explicar casos bizarros como este. É, sem dúvida, exercício de duplipensamento a defesa que o mercado financeiro realiza das ações do governo para salvá-los das crises por eles mesmos orquestradas com o intuito de realizar lucros extraordinários, ao mesmo tempo em que recusam qualquer possibilidade de regulamentação, a qual poderia prevenir tais colapsos.

[4] Utilizamos aqui o termo “homogeneizado”, o qual é diferente de “homogêneo” por razões óbvias. O emprego deste último encerraria a premissa falsa de que os indivíduos ao adquirirem bens são homogêneos, portanto indiferenciáveis no que diz respeito a gostos e incentivos para o consumo. Dizer serem homogeneizados significa afirmar que, a despeito de sua natureza diversa, em alguns momentos são tratados pelas instâncias decisórias superiores como homogêneos sem o serem de fato.


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