BRAUDEL, Fernand. O tempo do mundo. In.: BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 51-76.
O texto em questão compõe o terceiro e último capítulo do pequeno livro de Fernand Braudel[1] – este na verdade a transliteração de uma palestra proferida com o intuito de expor as linhas gerais de sua trilogia, Civilização material, economia e capitalismo.[2] O excerto apresenta a tese do autor de que a história da sociedade capitalista – e mesmo a trajetória do mundo – pode ser vista como moldada por instituições e estruturas amplas que condicionam a dinâmica social. Dividido em quatro partes, a primeira estabelece um conceito para sua noção de economia-mundo. Na seqüência o autor aborda como se daria a dinâmica interna de uma estrutura como esta, para em seguida aplicar este construto no intuito de interpretar as transformações da história européia como mudanças da economia-mundo capitalista. Por fim, o autor encerra com duas discussões, uma sobre a revolução industrial inglesa, outra acerca de como sua proposta pode auxiliar na compreensão do mundo contemporâneo.
Braudel define economia-mundo como “a economia de somente uma porção do nosso planeta, na medida em que esta porção forma um todo econômico.” (p. 53). Ou seja, se trata de um espaço de reprodução autônomo, talvez não no sentido meramente político, mas essencialmente material e produtivo. O autor elenca três características principais: (1) uma economia-mundo ocuparia um espaço geográfico delimitado; (2) possuiria um centro dominante, no seu entender representado sempre por uma cidade, como uma “capital econômica” (p. 53); e (3) a partir desta cidade de referência se sucederiam zonas de integração concêntricas, subordinadas ao núcleo dominante e deste dependentes política e economicamente.
Tal estrutura possuiria uma dinâmica interna baseada na migração espacial do centro de referência – ou, como o autor coloca, passaria por “centragens, descentragens e recentragens” (p. 57). Cada mudança do núcleo dominante estaria associada crises econômicas mais amplas, mudanças estas não necessariamente provocadas pelo surgimento de zonas de maior eficiência produtivo-distributiva. E, além disto, a divisão interna de uma economia-mundo em zonas concêntricas de diferente integração acarretaria uma hierarquização espacial. Esta se materializaria em diferentes formas de acesso às benesses econômicas disponíveis e produzidas. O núcleo de uma economia-mundo concentraria também a riqueza, o conforto, e mesmo elementos subjetivos, como as liberdades. Cada vez que se afastasse do centro, a disponibilidade destes ‘fatores’ seria menor – isto, pois, as zonas centrais se alimentariam, enfim, das zonas intermediárias e marginais.
Esta compreensão aplicada à história do capitalismo europeu leva Fernand Braudel a propor a existência de uma economia-mundo capitalista, centrada primeiramente na Europa, cujas zonas intermediárias e marginais foram-se, ao longo dos séculos, se estendendo pelo globo. Ao autor enxerga entre o século XIII e XIX – o período histórico que aborda em sua obra já aqui referida – três grandes pólos centrais da economia-mundo capitalista: Gênova, Amsterdã e Londres. E, nos períodos de descentragem e recentragem entre estes núcleos, o autor identifica as crises amplas pelas quais a economia-mundo capitalista/européia teria passado.
Quando aborda a noção de revolução industrial como motor das transformações históricas do capitalismo – sobretudo como que em resposta a autores que vêm na inovação técnica e tecnológica a determinante das transformações sociais –, Braudel acaba por relativizar sua importância. Afirma, que a revolução industrial foi um fator importante da centragem em torno de Londres, principalmente ao proporcionar ao capitalismo uma nova forma de acumulação, mas não determinante, pois outros fatores sociais presentes também teriam sido igualmente necessários para tanto. Usa como argumento adicional o fato de que as inovações tecnológicas tão associadas à revolução industrial são mais antigas que esta, e de procedências diversas, sem, no entanto, terem levado a transformações significativas em seus espaços e épocas originais.
Por fim, o autor faz uma breve consideração sobre a possibilidade de uso das noções que trás para compreensão da realidade contemporânea. Defende que sim, apesar de seu estudo tomar como eixo os séculos XIII a XIX, as estruturas sociais que ali eram dominantes ainda perdurariam, como a noção de capitalismo – hoje em dia tendendo a abraçar o mundo –, a centralidade da organização e do mercado, e mesmo a concepção tripartite da vida material, economia de mercado e economia capitalista. Braudel defende que ainda hoje, talvez até mais do que antes, é neste terceiro andar – onde habitam os predadores e vigora a lei da selva – onde as decisões significativas de nosso tempo são tomadas.
A análise braudeliana é deveras interessante ao conferir à noção de capitalismo um preceito integrador mínimo. Se a concepção de economia-mundo está correta – um espaço geopolítico de reprodução notadamente autônomo –, o capitalismo se expande integrando espaços diversos desde sua origem, que Braudel identifica já no século XIII em nas cidades italianas de Gênova e Veneza. Assim, o elemento central de integração capitalista deixa de ser a produção, como numa análise marxiana, e se centra na circulação. E talvez aqui se encontre também sua principal fragilidade.
Um outro ponto a se notar é que Fernand Braudel parece ver nas instituições capitalistas de uma New York as mesmas características encontradas em Gênova, sete séculos antes. Como se as estruturas amplas que dão o tom da dinâmica de acumulação capitalista não mudassem de fato, como se, apesar de determinar a dinâmica histórica mais ampla, elas mesmas fossem estáticas. Isto é perfeitamente coerente com a proposição de uma economia-mundo que se expande exportando seu modus vivendi, mas parece esbarrar no fato de que a própria transformação histórica cria, faz surgir, formas diferenciadas de acumulação – como aponta François Chesnais, em seu Mundialização do capital.
[1] Fernand Braudel (1902-1985) foi um historiador francês associado à Escola dos Anais. Nos léxicos é classificado como historiador de influência estruturalista, por propor uma leitura da história condicionada por macro instituições sociais responsáveis pela dinâmica histórica. Participou da equipe francesa convidada na década de 30 para organizar a Universidade de São Paulo. Esteve associado à Ecole Pratique de Hautes Etudes (Paris) de 1938 até sua aposentadoria em 1968.
[2] BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo. Tradução Telma costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 3. v.
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