Resenha: “o materialismo histórico e as relações internacionais”

HALLIDAY, Fred. Um encontro necessário: o materialismo histórico e as relações internacionais. In.: HALLIDAY, Fred. Repensando as relações internacionais. Tradução Cristina Soreanu Pecequilo. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. p. 61-86.

O texto em questão é o capítulo 2 do mais conhecido trabalho de Fred Halliday[1] no Brasil, no qual o autor apresenta uma leitura das relações internacionais – abordando tanto o campo de conhecimento como de suas questões principais – a partir da tradição marxiana. Este capítulo segundo procura ressaltar a potencial riqueza do materialismo histórico como variante explicativa para área das Relações Internacionais e seu(s) objeto(s); assim como apresenta os principais desafios para tanto em forma d’algumas insuficiências explicativas da teoria.

O autor divide o texto em seis partes:

  1. Na primeira tece considerações acerca da [parca] influência do materialismo histórico nas RI;
  2. Em seguida relaciona o marxismo aos três principais debates no campo – utópicos v.s. realistas, tradicionalistas v.s. positivistas, Estado v.s Sistema Internacional – destacando como o materialismo histórico, ao menos nos dois primeiros, não consegue se inserir propriamente, além de apontar a insuficiência do estruturalismo como seu representante. Mas lembra que para o debate entre a noção de Estado e o Sistema Internacional a teoria produziu resultados significativos para propiciar sua insersão;
  3. Então destaca o potencial explicativo do materialismo histórico para as Relações internacionais, destacando sua característica como teoria totalizante e seu interesse histórico acerca de temas caros à área;
  4. Daí expõe o que chama de “paradigma materialista histórico” (p. 73), indicando quatro temas centrais para sua aplicação na análise das Relações Internacionais, (a) a centralidade dos fatores sócio-econômicos, (b) a importância da análise da determinação histórica, (c) o destaque para a noção de classe social e (d) concepção de que o conflito é “fator dinâmico fundamental da política no sistema internacional e nas sociedades individuais.” (p. 79);
  5. Na seqüência Halliday indica, de acordo com sua interpretação, fatores que limitam a aplicação desta corrente teórica na análise do internacional, destacando como negativas suas tendências totalizantes e determinísticas (ao menos de uma parte dos adeptos), e principalmente sua incapacidade de explicar a autonomia relativa da esfera política, o nacionalismo e a democracia capitalista duradoura;
  6. Por fim, ressalta a capacidade explicativa da teoria, sua independência em relação aos contextos históricos auto-intitulados seus herdeiros – URSS, etc. –, e também o que acredita serem suas insuficiências preditivas acerca dos desdobramentos do modo de produção capitalista.

Halliday, apesar de não deixar claro no texto em questão, aponta para o fato de que o marxismo esteve à margem da discussão sobre relações internacionais não exatamente por insuficiência explicativa, mas por decisão ideológica. Assim, abre precedente para avaliar o próprio campo como um instrumento ideológico motivado por interesses integrativos por vezes distintos. Não por acaso o utopismo kantiano parece mover o discurso dos políticos norte-americanos no início do século XX, enquanto a academia inglesa se reveste de realismo; também não parece ser obra do imprevisível que o realismo é remodelado pela academia norte-americana no pós-guerra, tornando-se dominante com a inclusão dos avanços da teoria dos jogos e do ideário econômico-liberalista, entre outros.

De fato, se a Administração enquanto campo surge como teoria e prática integradora das unidades produtivo-distributivas do modo de produção capitalista, as Relações Internacionais parecem emergir com a mesma função no plano macro institucional. Como se, em paráfrase ao axioma hermético, a negação do conflito – ou seu uso para benefício da classe/fração/país com maior poder – deveria se dar simetricamente tanto embaixo no plano da produção, como em cima, no plano da circulação. E, também por isto, as práticas dominantes destas áreas de conhecimento parecem não ser motivadas tanto pelo avanço do estado da arte, mas principalmente pelos conflitos e interesses que preenchem seus objetos.[2]

O marxismo enquanto teoria que defendia, à sua época, um necessário esforço teleológico em direção à ruptura, apresentava, entranhado à sua proposta, análises de como o sistema internacional tal qual a própria nação – e nisto talvez sobreviva a tendência moderna à simetria dos planos de existência social –, se caracterizavam pela noção de conflito de classes. Classes estas cujos interesses talvez não pudessem ser conciliados, afinal.

Por ser uma abordagem tendendo à ruptura, não haveria possibilidade de ser incorporada a campos cujos objetivos eram integrar. Logo, tanto a Administração como as Relações Internacionais tardam a ler-se marxianamente, e quando o fazem, denota Halliday ao tratar do estruturalismo nas RI, tomam leituras já “limpas” de sua característica revolucionária.[3]

Uma questão interessante é a aposta de Halliday para a capacidade explicativa da analise marxista das RI, desde que esta se dispa de suas características teleológicas. Poderá, de fato, uma teoria abrir mão de seus projetos e manter sua força explanatória?

Ainda que sejam fortes os argumentos de que é limitada a possibilidade de uma teoria em explicar a totalidade, e de que rupturas não necessariamente são capazes de criar maior justiça social, acreditamos que a teoria que abre mão destas premissas torna-se integradora e conseqüentemente insuficiente.  Neste processo, pode acabar por soterrar sua força explicativa e verte-se, como diz Halliday acerca da tendência capitalista à guerra em Marx, em história. Abandonar o desígnio da ruptura é o mesmo que abraçar o projeto integrador – pois não há ciência isenta de objetivos, todo conhecimento é teleológico mesmo que não o explicite.

Por conta disto, acreditamos, os grandes debates das RI são apenas marginalmente contemplados pelo materialismo dialético: a função integradora do campo inevitavelmente condiciona o debate, enquanto que a tendência à ruptura da teoria o tangencia; as questões que interessam à ruptura são diferentes das que servem à integração.

Isto se torna bastante evidente quando o próprio Fred Halliday elenca como as categorias marxianas podem auxiliar na análise da política internacional. Se a RI se redefinir como relações entre formações econômico-sociais distintas – o que significa incluir o conflito de formas-pensamento e interpretações de mundo (filosóficas, científicas, religiosas, tradicionais) distintas – o campo parece se mostrar ontologicamente insuficiente. A questão que se forma é: será o discurso científico, delimitado pela formação econômico-social dominante, o palco que melhor contempla o embate dos interesses e formas de expressão das muitas formações econômico-sociais que coexistem no sistema internacional?

Dizer que sim, como parece sugerir o texto de Halliday ao defender um materialismo histórico que abandone seu objetivo próprio, significa assegurar a supremacia do projeto integrador de quem, anteriormente, definiu as regras de relação – as “leis de funcionamento” – do campo de debate.

Acreditamos, portanto, que é esta a verdadeira tensão que o texto levanta. Pois, ao defender o uso do materialismo histórico como padrão de análise – e não mais como instrumento de projeto de classe e/ou político –, parece o fazer como um apelo para a incorporação de suas capacidades interpretativas ao projeto de integração capitalista. Ou seja, se esta interpretação for correta, um texto que pretensamente crítico se mostra, em sua essência, ainda mais sistêmico do que o trabalho d’algum daqueles declaradamente pró-capitalistas, como um Josef Schumpeter ou um Hans Morgenthau.


[1] Fred Halliday é licenciado em Ciência Política (Queen’s College – Cambridge), mestre em Política do Oriente Médio (University of London) e doutor em História Internacional (London School of Economics – LSE). Foi professor e pesquisador de relações internacionais da LSE durante mais de 20 anos. Desde 2008 Halliday é pesquisador do ICREA (Institució Catalana de Recerca i Estudis Avançats) e professor no IBEI (Institut Barcelona d’Estudis Internacionals).

[2] Bervely Silver (2005) demonstra como a mobilidade do capital no século XX esteve associada ao surgimento e supressão de conflitos capital/trabalho no mundo. Fabrício Moreira, em dissertação de mestrado em fase de defesa na Faculdade de Ciências Humanas da Ufba, aponta para o fato de que os desenvolvimentos da teoria da administração estão, também, vinculados à emersão de conflitos capital/trabalho – usa a tese de Silver como eixo explicativo para o processo. Ver: SILVER, Bervely. Forças do trabalho: movimentos trabalhistas e globalização desde 1870. Tradução Fabrizio Rigout. São Paulo: Boitempo, 2005.

[3] De fato, os Estudos Críticos de Gestão – ECG – são principalmente pós-modernos, feministas, estruturalistas, revisionistas, psicanalistas, etc. A leitura materialista histórica de gestão, pode-se dizer que é ainda hoje incipiente e até mesmo tímida. Ver: FOURNIER, Valérie; GREY, Chris. Na hora da crítica: condições e perspectivas para estudos críticos de gestão. Revista de Administração de Empresas – RAE, vol. 46, n. 1, p. 71-86, jan./mar. 2006.


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