Recentemente tive a oportunidade de assistir um interlocutor que versava sobre finanças individuais e, dentre seus muitos insights, o palestrante afirmou que um de seus “segredos para o sucesso” é conhecer e copiar o comportamento de pessoas bem sucedidas. Seria reproduzindo a forma de agir de empreendedores badalados que se poderia encontrar maneiras de orientar nossas próprias ações. Como exemplo, ele afirmou que se espelhava muito no então homem mais rico do Brasil, Eike Batista. Não poderia ser um exemplo melhor.
Aconteceu que algum tempo depois abri uma destas revistas semanais de notícias e eis que para minha surpresa o celebrado Eike se apresentava relacionado em investigações por conta de relações suspeitas com o Estado – e, ainda que pesasse o benefício da dúvida, sua riqueza, em grande parte fictícia por ser baseada em valorizações nominais no mercado financeiro, havia minguado R$ 10 bilhões em apenas 12 dias segundo a revista Carta Capital de 30 de julho de 2008. Eu gostaria de dizer que naquele momento tive uma súbita reformulação do campo perceptual (tudo isto para não repetir a palavra insight) e finalmente tinha percebido a atitude que leva verdadeiramente ao enriquecimento, a fraude. Mas, não é verdade, eu já tinha consciência disto e admito que aguardava com alguma expectativa o momento quando (e, porque não, se) o referido bilionário cairia.
O que está em jogo não é o fato de que o empresário seja desonesto, ou algo assim. Ele, como todo cidadão, foi apenas acusado em uma investigação, e antes que possa ser condenado tem todo o direito de se defender – até a decisão judicial nada conclusivo poderá ser afirmado. Porém, este caso é simbolicamente interessante por aparentemente corroborar na prática uma tendência lógica do sistema capitalista: já que o valor é construído a partir do trabalho, só é possível enriquecer tomando valor que outras pessoas constroem.
A riqueza não brota em árvores, não é algo natural que possa ser tocada e analisada em seu estado bruto na natureza. As coisas da natureza ganham valor por que os homens, em suas relações uns com os outros e em suas relações de sobrevivência, socialmente instituem valor às coisas da natureza. Assim, é a coletividade que estabelece se algo possuirá valor, e então os indivíduos irão trabalhar para conseguir o bem que tenha aquele valor. Portanto, é nas relações humanas que surge a noção de riqueza, e, parece notório, é na quantidade de esforço necessário para obter algo que se encerra seu valor: ou seja, ao contrário do que afirma a lógica de utilidade marginal, é o trabalho que determina o valor das coisas do mundo.
Assim, aparentemente acumular riqueza significa trabalhar muito. Mas, esta afirmação tem limites, pois um homem não é capaz de produzir tudo, e mesmo que aprenda a produzir aquilo ao que a sociedade confira maior valor, por exemplo, diamantes, o que este indivíduo ganhará estará limitado ao que é capaz de produzir individualmente.
Como o empresário então se torna rico hoje em dia? São quatro os principais instrumentos de construção de riqueza.
1. Graças a acúmulos prévios de valor ele pode seqüestrar os instrumentos de trabalho (as máquinas, as ferramentas e o conhecimento técnico/tecnológico), e então obriga os profissionais a trabalharem para ele, de maneira que o empreendedor fica com a maior parte do que os outros produzem e assim acumula riqueza.[1] Quanto mais acúmulo prévio, maior sua capacidade de seqüestrar instrumentos de trabalho. É assim que surgem as fábricas, depois as empresas, depois os conglomerados e as multinacionais.
Ps: normalmente esse acúmulo prévio de riqueza, que Marx batizou com o termo “acumulação” primitiva, decorre, em algum momento, de apropriação indébita. Grileiros invadem terras comunais ou públicas por exercício da violência ou do favorecimento político. Contrabandistas e traficantes transitam de seus negócios ilícitos para os negócios criados com o intuito de lavar dinheiro. Famílias herdam propriedades e riquezas amealhadas por meio da escravidão. Estelionatários enganam pessoas, outras empresas, até mesmo governos, em golpes e esquemas (como veremos a seguir, eu creio).
2. Há ainda aqueles que compram bens onde são vendidos com preço baixo, para então vendê-los onde o preço é alto: estes sãos chamados especuladores. Geralmente, esta é uma forma de acúmulo prévio para então conseguir montar uma fábrica para poder acumular diretamente.
3. Existem também os que negociam com o Estado: criam uma rede de “amigos-pagos” dentro do governo, de maneira que os contratos, as licitações e as concessões sejam super-avaliadas e eles possam usurpar parte do valor do qual os cidadãos abrem mão para ter uma sociedade organizada.
4. E, por fim, aqueles empresários (ou grupo de empresários) que acumularam muito e cresceram muito, de modo que sequer existem mais mercados a serem explorados ou meios de vencer a concorrência, acabam por começar a emprestar seu dinheiro a juros, formando a assim o capital financeiro e especulativo nominal.
Porém, não significa que eles não ofereçam nada para a sociedade. Pelo contrário, graças a grande racionalização que criam na forma de trabalhar e usar os recursos, eles fazem com que os produtos tenham seus preços reduzidos, tornando alguns destes acessíveis à massa de trabalhadores. Além disto, são capazes de mobilizar grande quantidade de recursos para determinados tipos de produção que os trabalhadores individualmente não conseguiriam, fazendo surgir produtos e serviços cada vez mais avançados e complexos.
No entanto, estas formas de acumular riqueza destoam da auto-imagem que os empresários divulgam. Ainda que estes meios antiéticos sejam evidentes, quantificáveis e amplamente observáveis, os empresários se revestem de um discurso visivelmente distinto da realidade, afirmando que a riqueza é resultado de sua inteligência privilegiada. O que explica o fascínio que certos empreendedores exercem sobre algumas mentes mais despreparadas ou despreocupadas.
Isto é que chamamos de ideologia: criam sobre si um mito, uma forma de se ver, e então premiam (monetariamente) aqueles que concordam com esta visão distorcida. Como o poder econômico se torna poder político, ou seja, graças ao fato de que o dinheiro geralmente é uma excelente forma de influenciar opiniões, a maneira através da qual o empresário se enxerga e enxerga o mundo acaba sendo repetida por todos aqueles que desejam se tornar também empresários, ou estar à sombra de sua riqueza.
Quais são as conseqüências?
Primeiro, a máxima de que para acumular riqueza é preciso trabalhar muito acaba sendo inválida. Quando trabalha, parte do que o indivíduo produz de valor é sempre levada pelo empresário, então, ele nunca poderá acumular muito, a não ser que trabalhe em algo muito valorizado e, por ser uma classe com poucos indivíduos, tenha poder de barganha: como administradores ou economistas em posições de poder (alinhados ideologicamente com o capital), médicos, ou quando a programação de software era uma habilidade restrita a um pequeno grupo.
Segundo, a riqueza, apesar dos muitos discursos em contrário, tem uma raiz essencialmente antiética, baseada em alguma forma de exploração. Por exemplo: mesmo que alguém rico hoje nunca tenha explorado ninguém, pois recebeu seu patrimônio por herança, alguém de sua família no passado deve ter acumulado riqueza de alguma daquelas formas; ou há um senhor feudal ou um coronel de escravos como parte de sua árvore genealógica, o que não necessariamente pode ser usado como forma de defesa.
Por tudo isto, fiquei aqui observando o desenrolar do sucesso astronômico do empresário em questão com curiosidade e parcimônia. Não duvido da possibilidade que ele venha a ser uma boa pessoa, com boa índole até — afinal, a ideologia é algo verdadeiramente ofuscante, e realmente domina mentes e almas de maneira por vezes irreversível. Mas a riqueza é poder, e, como disse Lord John E. E. Dalberg Acton, “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”.
[1] Umas das chaves de compreensão da realidade aqui é esse termo “acúmulo prévio de valor”. Karl Marx chamava essa reserva de valor com o conceito de acumulação primitiva, um estoque de riqueza que o capitalista precisa ter antes de se tornar empresário. Pois, como se forma essa acumulação primitiva? David Harvey — seguindo os passos de Marx — nos oferece uma pista: por meio da guerra, roubo, grilagem de terras, expulsão ou assassinato de povos tradicionais, assim como através da cessão indébita de terras públicas, empréstimos junto ao governo que não serão pagos. Em outras palavras, na origem da riqueza quase sempre se encontra um crime. Harvey chama isso de “acumulação por desapossamento”, ou seja, por meio da apropriação indébita e violenta da propriedade alheia.
* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2008, já estudante de graduação no Bacharelado em Ciências Econômicas da UFBA, logo depois de concluir o Bacharelado em Administração na mesma Universidade, eu escrevia um blog com esse título, Administração Crítica. Foram muitos textos elaborados com aquele ímpeto do estudante de graduação, de recém formado, com colocações pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).
Em 2010 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal. Em minha opinião, revelam um cuidado teórico pouco refinado (acho que nem tenho ainda), mas já uma vontade enorme de fazer ciência crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, de que podemos querer mais do que reproduzir os saberes mainstream.
Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o escrito, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero —, deixa de pertencer a nós.
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