Resenha: “A Sociologia Histórica de Adam Smith”

ARRIGHI, Giovanni. A sociologia histórica de Adam Smith. In: ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. Tradução Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 55-80.

O texto de Giovanni Arrighi[1] A sociologia histórica de Adam Smith é uma explanação das premissas tomadas pelo economista inglês acerca dos caminhos de desenvolvimento pelos quais as economias nacionais podem passar. A sociologia histórica smithiana, segundo Arrighi, apontaria duas alternativas, uma “natural” e outra “antinatural”. Estas se mostrariam como duas maneiras distintas de integrar as sociedades no plano econômico e político: a primeira por via da evolução “natural” das instituições desde a agricultura até o comércio – talvez algo mantido da relação que Smith nutriu com os fisiocratas franceses; e a outra induzida pela ação quase artificial do comércio ou, em termos de hoje, do Capital.

Nas primeiras partes do capítulo Giovanni Arrighi faz uma reflexão acerca de três mitos construídos sobre o pensamento de Smith que, uma vez esclarecidos, permitem montar uma compreensão acerca do se entende como sua sociologia histórica.

O primeiro mito remonta a concepção de que Smith teria defendido a auto-regulação econômica como padrão mínimo para progresso das economias. Segundo Arrighi, esta leitura esbarra na acepção de que o economista inglês objetivava dar ao Estado ferramentas para regular o mercado, a fim de que deste se obtivesse o melhor resultado econômico possível. Seria, na visão de Smith, utópico o estabelecimento de um mercado totalmente livre. Na concepção do autor, “o mercado [seria] como um instrumento de governo” (p. 57) e não um ente a parte, independente do interesse da sociedade.

Giovanni Arrighi ainda arrola na seara mítica a idéia de que Adam Smith enxergava no capitalismo “[…] um motor da expansão econômica ‘interminável’.” (p. 57). O autor demonstra que Smith já antecipara a noção de ganhos decrescentes no tempo, causados pela intensificação da concorrência decorrente da acumulação de capital; aliás, isto teria sido seu principal argumento para defesa do mercado, pois que esta intensificação da concorrência levaria os preços a níveis cada vez mais baixos, contribuindo para o bem-estar na população. Porém, acrescenta que, dentre as classes de renda, aquela que aufere seu sustento a partir do lucro tem uma capacidade maior de mobilização política. Segundo a visão de Smith, isto contribuiria para que, no exercício da defesa [política] de seus interesses, acabariam até mesmo comprometendo o “interesse social geral” (p. 62).

Por fim, seria também um mito a concepção de que Adam Smith defendia a divisão social do trabalho tal qual descrita no capítulo primeiro de A riqueza das nações. Segundo Arrighi, no texto de Smith se sobrepõe duas dimensões da divisão do trabalho: (1) a primeira que Marx chamaria de divisão técnica, a que ocorre na partilha de funções dentro das unidades produtivas; (2) a segunda, a divisão social, que é a segregação ampla de diferentes profissões em termos dos distintos produtos/serviços acabados que são capazes de prover, e que, de certa forma, constroem também distintas visões de mundo – contemplando também a divisão entre trabalho intelectual e trabalho braçal. Para Smith, a divisão social permitiria que, através da especialização, a sociedade auferisse sucessivos incrementos de eficiência nos processos produtivos. No entanto a divisão técnica observada na fábrica, por restringir e subaproveitar a potencialidade humana para o trabalho, tornaria o indivíduo cada vez mais atrofiado em suas capacidades cognitivas.

Tomando como eixo o caráter potencialmente positivo da divisão social do trabalho, Smith, de acordo com a exposição de Arrighi, enxergaria na sucessiva e continuada produção de excedentes – a partir da complexificação gradativa das atividades agrícola, manufatureira e industrial – a alternativa natural para o desenvolvimento das economias. Em termos simples, uma sociedade, partindo de uma economia agrária, produziria excedentes que propiciariam o surgimento da atividade manufatureira; os excedentes então emergiriam também desta atividade, sendo então conduzidos para o comércio estrangeiro.

Em contraposição a esta via natural, Arrighi destaca que Smith enxergou, historicamente, uma via antinatural – esta praticada pela Europa, sobretudo pela Holanda em sua época. A via antinatural de desenvolvimento consistiria, na concepção de Smith, num desenvolvimento do comércio sem passar, necessariamente, por uma gradativa transformação das atividades agrícola e manufatureira. Ao focar no comércio, as outras atividades seriam, então, desenvolvidas por conta da demanda comercial.

Em nossa leitura, enxergamos nestas duas alternativas de desenvolvimento em Smith, duas formas de integração nacional pela via econômica que, de certa forma, revelam uma tensão conceitual presente ainda no sistema smithiano. Smith parecia indeciso ante (1) a noção de que a terra – e, inevitavelmente as classes que desta auferem sua renda – seria o eixo dinâmico da atividade econômica de uma nação; e (2) a concepção de que o trabalho – aqui representado pelo comércio, já que ele rejeita que a simples troca gera valor – responderia pelo fundamento da economia.

Ainda, por discernir o Estado como uma entidade à parte da vida social e econômica, Smith parece não perceber a amplitude de seu papel enquanto instituição apenas articuladora das vias de integração; não nota que por detrás deste há interesses enraizados nas próprias estruturas econômicas, estes sim responsáveis pela coerência do processo sócio econômico. Quando o autor nota que é a classe de renda que aufere lucro a que tem maior capacidade de mobilização, tinha condições para daí concluir que o Estado, e mesmo o poder, advém da própria divisão social do trabalho; mas retrocede defendendo que o legislador tem o papel de resistir a estes poderes, ao invés de perceber que tais poderes se manifestam no, e através do, político e mesmo do técnico administrativo.

Graças a isto, Smith deixa de lado o fato de que, em ambas as alternativas de desenvolvimento que explica – tanto a antinatural como a natural –, o elemento norteador pode muito bem ser o Capital. Pois, é esta instituição que, de fato, mobiliza as demais esferas econômicas para suprir o comércio num desenvolvimento antinatural; e, de fato, é o desenvolvimento desta instituição que emerge da gradativa formação de excedentes, e acumulação, que Smith aponta ser o eixo integrativo da opção natural de desenvolvimento.


[1] Giovanni Arrighi (1937-2009), economista e sociólogo italiano, era professor de sociologia na Universidade Johns Hopkins, tendo lecionado também na Universidade Estadual de New York (suny Binghamton). Autor de diversos trabalhos de vulto, foi responsável por livros clássicos, como O longo século XX e Ilusões do desenvolvimento. Em seu texto mais conhecido, desenvolveu a teoria de sistema-mundo braudeliana para caracterizar a dinâmica ampla do modo de produção capitalista. Faleceu em 19 de junho de 2009, na cidade de Baltimore/EUA.


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