Nos últimos anos, as empresas que se especializaram em distribuir obras artísticas e intelectuais, principalmente aquelas que compõem as indústrias fonográfica e cinematográfica americanas, têm orquestrado batalhas jurídicas contra sítios que disponibilizam músicas e filmes na internet. Pessoas que compram obras originais e, dai, disponibilizam seu conteúdo na rede, têm sido taxadas como piratas – um termo criado para classificar os assassinos, ladrões e degenerados [oficiais ou não] que assolam os mares desde tempos imemoriais. Além disto, internautas que trocam arquivos na net têm sofrido com ameaças de sanções legais, até mesmo com alguns exemplos de condenação, por simplesmente partilhar produtos pelos quais pagaram pela posse.
O argumento das empresas para tamanha comoção é simples: é preciso defender a propriedade intelectual dos artistas; e a melhor maneira de fazer isto, segundo sua opinião, seria através de regulação via mercado. Defendem-se afirmando que, se os artífices de bens desta natureza não forem pagos, deixariam de produzir. Em nossa opinião, esta concepção transforma a obra artística em uma mera mercadoria, além de reduzir o literato, o artista, o músico, etc., à um indivíduo cujo interesse primordial é meramente material e egoísta – o que pode muito bem ser verdade em casos específicos, mas dificilmente explica a classe como um todo.
É muito fácil concordar com a idéia de que todo trabalho deve ser remunerado de acordo com a sua contribuição; o que é preciso perguntar é se a regulação via mercado é a melhor forma de fazê-lo. Distribuir a produção artística e intelectual a partir da tradição capitalista realmente conduz a uma alocação justa e eficaz? Contribui de fato para o bem-estar da humanidade? Mais: realmente o interesse dx artista e dx intelectual é assegurado desta forma?
Um trabalho intelectual, seja qual for, só é possível porque x autor tem acesso a conhecimentos que estão previamente disponíveis para a humanidade: desde as técnicas de escrita, desenho, pintura, escultura e luteria, até aqueles que aguçam a capacidade criativa e servem de inspiração, como os romances clássicos, as grandes obras da filosofia e da arte. Logo, uma “criação” intelectual não é obra de um indivíduo, mas resultado da coletividade, de toda a educação que ele teve e das impressões do mundo no qual vive. Ainda que se argumente que obter educação é, de fato, um exercício de esforço individual, a verdade é que a maior parte desta fica disponível para o acesso de maneira gratuita – ainda mais hoje em dia, quando quase tudo se dispõe por meio da internet.
A formação individual, misto de cognição, aprendizado e experiência, só é possível graças ao passado cultural no qual se bebe, o que implica que um indivíduo deve a toda coletividade humana sua própria individualidade. A obra artística só é parcialmente resultado de um breakthru individual: ela pertence, de fato, à sociedade.
Além disto, uma obra científica ou artística só encontra sentido se for referendada pela coletividade. A arte só tem valor se a humanidade conferir a ela importância; e um verdadeiro interessado na arte, na ciência, deseja ver suas idéias sendo difundidas e aceitas. No entanto, a comercialização, e conseqüente restrição de acesso que esta prática exige, limita a capacidade daquela idéia ou criação chegar a ser importante.
Não tem valor algum uma sinfonia brilhante que nunca será ouvida por interessados os quais não podem pagar para assistir a sua execução; da mesma forma, limitar o acesso para aqueles que detêm riquezas, dado a natureza pouco contemplativa das personalidades cujo objetivo de vida é meramente acumular e ostentar, é o mesmo que atirar pérolas aos porcos; artigos acadêmicos, se publicados em revistas de acesso pago, podem inclusive constranger o desenvolvimento da ciência; obras de arte em coleções particulares simplesmente não existem, são reduzidas ao estado da farsa. A prática de comercializar a obra intelectual simplesmente diminui a importância da obra por torná-la inacessível.
É preciso ainda destacar que a comercialização premia muito pouco o autor, mas enriquece o atravessador, fazendo com que as empresas editoras, gravadoras, corretoras, seguradoras etc. amealhem a maior parte da riqueza produzida pela atividade intelectual/artística. Estas firmas não têm mérito algum na produção, mas defendem efusivamente a propriedade intelectual. De fato, se um acadêmico tentar viver da venda de seus artigos, jamais conseguirá se sustentar porque demora muito tempo para se produzir algo significativo, mais ainda para convencer a comunidade acadêmica a ler e empregar suas descobertas.
Por conta disto, a maior parte da renda dos bons pesquisadores advém das instituições com as quais colaboram como professores. Mas o editor junta inúmeros pesquisadores debaixo de sua marca, fazendo com que a escala de obras lhe forneça uma riqueza enorme sem, no entanto, em nada ter contribuído para sua produção. O mesmo ocorre com os artistas da música. Se colocarmos de lado os casos excepcionais das grandes estrelas que vendem milhões de cópias de seus CDs – raríssimos –, a maior parte dos artistas encontra nos shows e apresentações que fazem a parcela mais significativa de sua renda. Na verdade, comercializar a obra intelectual serve ao capitalista e não ao intelectual.
Por outro lado, a mercantilização da atividade artística/intelectual cria uma distorção de qualidade nos resultados; em outras palavras, a maior parte da produção torna-se imprestável. Há dois fatos que demonstram isto.
Em primeiro lugar, é sabido que quando uma atividade se torna ou se insere num mercado lucrativo, isto atrai pessoas desejosas de explorá-la; é assim com a exploração de minérios tanto como na arte ou na academia. O resultado é que se multiplicam não artistas inspirados, mas oportunistas ansiosos por fazer fortuna. Estes produzem industrialmente, sem brilho, de maneira repetitiva e usando fórmulas já desgastadas, desde que o produto seja vendável.
Por outro lado, como a indústria é dominada por empresas, são mais valorizados os “artistas” que oferecem melhor resultado financeiro, os que gastam menos para produzir e vendem mais e que, também por conta disto, são piores. Na literatura, os livros que dão lucro são best-sellers de gosto duvidoso; na música, os Pop Stars chegam a ser elevados à categoria de culto à imagem, exatamente por possuir pouca substância; na ciência, se privilegia a quantidade das publicações em detrimento da qualidade da pesquisa. Ou seja, ao usar a razão mercadológica como forma de distribuição do trabalho intelectual e artístico, tem se contribuído para que a arte e o conhecimento percam qualidade e relevância.
Ainda, a mercantilização da produção artística e intelectual, por acabar focando a produtividade em detrimento da qualidade, faz com que muito seja produzido. Como lembramos no tópico anterior, grande parte com qualidade duvidosa. Em meio à esta quase infinita quantidade de informação, o que é verdadeiramente bom acaba sendo ofuscado pelo que é “pop”, causando um subaproveitamento dos esforços louváveis, e superestimando o que é ruim e efêmero.
Assim, um bom artigo científico sobre qualquer assunto é arrolado no mesmo nível que dezenas de artigos ruins, diminuindo a probabilidade de ser lido pelos pesquisadores e alcançar o impacto que mereceria, já que é impossível fazer varreduras completas do que é produzido. Muitas excelentes músicas nunca chegam a ser conhecidas, tanto porque artistas badalados geralmente chamam toda a atenção independe da qualidade do que compõem, como porque há muito sendo elaborado.
A grande questão em jogo por detrás do combate à pirataria, que é o direito de mercatilizar o produto artístico e intelectual – esta é a verdadeira face do direito de propriedade – não é, de fato, assegurar os melhores interesses dos artistas e intelectuais. E sim, garantir aos atravessadores capitalistas sua lucratividade.
Apesar dos autores terem o direito de se apropriar dos louros do que produzem, o sistema de propriedade intelectual atual não contempla a contribuição da coletividade para a obra, não distribui a informação de modo que ela se torne relevante, não premia justamente o autor, mas o capitalista que o contrata; faz com que haja um retrocesso de qualidade na produção; e multiplica tanto o volume do que é produzido sem qualidade, que as obras boas ficam ofuscadas na torrente de estímulos ruins. Ou seja, o modelo de distribuição através do mercado simplesmente faz o contrário do que promete aos produtores de bens desta natureza.
Em uníssono a indústria do entretenimento reclama o direito dos idealizadores de bens imateriais, como o direito de usufruir da recompensa de seu trabalho, sendo o mercado a maneira “racional” de fazê-lo. Para além do argumento de que é muito estranho pensar que as empresas, pretensamente dotadas de um elevado senso de dever moral, simplesmente estão a zelar pelo direito a liberdade dos indivíduos, em si algo deveras estranho, nós questionamos aqui esta certeza de que obra artística/intelectual deva ser distribuída via mercado. E concluímos que, sem sombra de dúvida, existem extensos prejuízos sociais e individuais ao escolhermos esta forma de regulação. A verdade desnuda é que a empresa está defendendo exclusivamente seu próprio interesse, o qual passa por cima inclusive daqueles que dizem defender.
* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2008, já estudante de graduação no Bacharelado em Ciências Econômicas da UFBA, logo depois de concluir o Bacharelado em Administração na mesma Universidade, eu escrevia um blog com esse título, Administração Crítica. Foram muitos textos elaborados com aquele ímpeto do estudante de graduação, de recém formado, com colocações pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).
Em 2010 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal. Em minha opinião, revelam um cuidado teórico pouco refinado (acho que nem tenho ainda), mas já uma vontade enorme de fazer ciência crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, de que podemos querer mais do que reproduzir os saberes mainstream.
Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o escrito, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero —, deixa de pertencer a nós.
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