Resenha: “Economia Solidária e Dádiva”

FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de; DZIMIRA, Sylvain. Economia solidária e dádiva. Organizações & Sociedade, vol. 6, n. 14, p. 141-183, jan./abr. 1999.

França Filho e Dzimira[1] apóiam, neste artigo, uma leitura do ato da dádiva localizando o fenômeno como possível estruturante da ação solidária. Os autores concluem, numa tentativa de antecipação a possíveis críticas, que a economia solidária seria um fenômeno social concreto o qual, por sua peculiaridade ontológica, carece de uma abordagem que transcenda o “triplo reducionismo economicista-mercantil, utilitarista (teórico) e metodológico” (p. 169), para o quê propõem o conceito maussiano de dádiva. Este artigo se divide em três grandes partes: (1) começa conceituando e expondo os fundamentos da economia solidária; (2) na seqüência se realiza uma resenha do conceito de dádiva na obra de Marcel Mauss; (3) e então se concretiza uma releitura daqueles fundamentos à luz da concepção maussiana de dávida.[2]

De acordo com França Filho e Dzimira, a preocupação com a economia solidária teria emergido na França a partir da “crise da chamada sociedade salarial” (p. 143, grifos dos autores). Crise esta que se caracterizaria pela diluição da instituição do emprego formal, e conseqüente exposição da incapacidade da díade mercado/Estado em gerir eficazmente a reprodução econômica da sociedade. Com o desemprego, seguindo a exposição dos autores, surgiram formas de ativismo na sociedade civil com intuito de preencher as lacunas da economia formal, que se configuraria como um terceiro setor – em oposição ao Estado e ao mercado –; ou, como uma economia solidária.

França Filho e Dzimira observam que na França a economia solidária surge com uma subdivisão do que é conhecido por economia social. A primeira incluiria a disseminação de ações que normalmente são associadas às práticas típicas de relações de parentesco, somando atividades de mediação indivíduo/ambiente social para melhoria de qualidade de vida. Nisto residiria uma principal diferença com a terminologia anglo-saxônica de terceiro setor, pois este último, segundo os autores, se definiria como “[…] organizações privadas com objetivos públicos” (p. 145) congregando cinco características: formalidade; independência; não-lucratividade; base voluntarista; e natureza privada. Ou seja, a economia solidária seria uma subcategoria também do terceiro setor.

À economia solidária, na exposição de França Filho e Dzimira, é creditada três dimensões: econômica, social e política. Em sua dimensão econômica, os autores chamam atenção para o trabalho de Laville, que teria observado a economia em geral constituída por três níveis, “mercantil, não mercantil e não monetário” (p. 146, grifos dos autores): a economia solidária seria, nesta visão, não uma opção à economia mercantil, mas uma tentativa de integração entre estas facetas. França Filho e Dzimira, ainda seguindo Laville, afirmam que, na sua dimensão social, a economia solidária se fundaria num sistema de associação que não visa simplesmente uma satisfação de utilidade individual: a associação em si seria um objetivo, baseado num “princípio de reciprocidade” (p. 148). Deste associativismo solidário emergiria também, segundo os autores, novas oportunidades para atuação política: seja pelo fato de que o enfrentamento dos problemas sociais conduza a experiências de democracia direta, seja por propiciar uma reflexão sobre o papel das outras esferas da sociedade na superação de tais situações, seja por conferir aos grupos certo pendor pela iniciativa e pela autonomia.[3]

Segundo os autores “[…] a especificidade da economia solidária reside na hibridação de economias (dimensão econômica), na prática de serviços solidários de proximidade (dimensão social) e na afirmação de sua ação enquanto projeto (dimensão política).” (p. 152), o que os leva a se perguntarem como poderiam abordar tal fenômeno sem recorrer a aqui já referida tríplice redução econômica/utilitária/metodológica. Para tanto, propõem o conceito de dádiva, que resgatam da contribuição de Marcel Mauss.

Na segunda etapa os autores resgatam a concepção de dádiva elaborada por Marcel Mauss, proposta por este ao observar as sociedades arcaicas na tentativa de encontrar bases antropológicas para o fenômeno econômico. Mauss, de acordo com França Filho e Dzimira, teria pontuado que naquelas sociedades a dádiva perpassaria o interesse econômico ou a satisfação de necessidades elementares – seu caráter seria essencialmente coletivo. Tratar-se-ia de um “fato social total” (p. 153), tanto por ser reproduzido por todos os indivíduos daqueles grupos, como por estar imerso nas muitas dimensões da vida prática. Nas sociedades contempladas por este pesquisador, a dádiva se dividiria em três momentos constituintes, mas entrelaçados: o oferecer, por parte do que cede; o receber, pelo beneficiário; e o devolver, também pelo beneficiário.[4] Segundo Mauss, esta noção de dádiva ainda estaria presente na sociedade moderna, sobrevivendo no seio das relações que não fossem mediadas pelo mercado, e mesmo este influenciando.

Os autores constroem três linhas de argumentação crítica baseadas no conceito maussiano de dádiva: (1) o mercado não seria, como é defendido pela economia ortodoxa, o fundamento natural de distribuição dos meios de sobrevivência das sociedades – pelo contrário, as lógicas de troca nas sociedades arcaicas parecem muito mais influenciadas pela necessidade de relação e socialização do que pela mera reprodução utilitária; (2) os indivíduos não se motivariam para garantir sua sobrevivência, logo, uma motivação meramente econômica – haveria, na verdade, uma teia complexa de motivações que poderiam ser orientadas por quatro tipos ideais, “[o] interesse em, [o] interesse por, [a] espontaneidade e [a] obrigação” (p. 161, grifos dos autores); (3) a dádiva não poderia ser bem compreendida pela corrente holista, que prega a imperiosidade coercitiva do grupo, muito menos pelo individualismo, que privilegia a ação singular livre – a instituição da dádiva seria, nas sociedades arcaicas, um duplo agir coletivo/individual de obrigações e decisões livres, o que exigiria um novo paradigma, ou o abandono de paradigmas, para sua compreensão.

Na última seção, França Filho e Dzimira voltam às dimensões da economia solidária, revendo-as a partir da conceituação de dádiva de Mauss. No que diz respeito à dimensão econômica, afirmam que a dádiva maussiana ultrapassa a dicotomia entre mercado e solidariedade, pois na dádiva o ato espontâneo inclui, também, uma mensuração de valor. Ou seja, o dar, o receber e o devolver não é uma ação puramente desinteressada, nem puramente calculista, mas ambos, podendo uma ou outra prevalecer em determinado contexto de relação.

A dimensão social da economia solidária, tensionada pelo idealismo que lê o voluntário como um desinteressado em oposição ao um indivíduo beneficiado utilitarista, tornar-se-ia mais clara com a concepção de dádiva. Se a dádiva concilia o cálculo à espontaneidade, ela permitiria ver no voluntário um indivíduo interessado, mas na relação, e no utilitarista um nível de dês-interesse: ou melhor, seria possível escapar das simplificações de papéis e observar os atores como complexos de interesses/dês-interesses em seu agir.

A dádiva ainda permitiria observar a relação entre associação e democracia em sua essência: não seriam pólos, ou elementos distintos, mas identidades em níveis diferentes; o associativismo seria a própria democracia em ação. Isto, pois a dádiva permitiria conciliar a concepção imperativa do social à liberdade individual ao verificar que a ação do indivíduo pode ser descrita como um dúplice de obrigação e decisão individual, onde a imposição coletiva é mediada pela possibilidade da negação/aceitação.

Neste sentido, os autores acabam por defender que o conceito maussiano de dádiva, ao quebrar a estrutura lógica linear da natureza do agir social no âmbito do indivíduo – numa aproximação do que seria uma dialética –, pode trazer um significado mais completo para a ação solidária. Acreditamos aqui que os autores poderiam ter reformulado também o conceito de economia solidária, talvez inclusive abandonando o termo “solidário”, que, no nosso entendimento, perde sentido diante da dádiva maussiana, exatamente por solidariedade pressupor dês-interesse.

Talvez coubesse inclusive uma pretensão maior, como denominar o que estão afirmando como economia real, por exatamente ser capaz de trazer novo significado à ação econômica e a tomada de decisão individual de um modo mais geral. O aspecto solidário se tornaria menor, visto que esta seria, de fato, uma situação particular na qual a condição antropológica da troca se manifestaria. Isto permitiria uma revisão mais extensa inclusive do agir-no-mundo dos indivíduos ao contestar os pressupostos da ortodoxia econômica, trazendo nova luz para o entendimento das relações intra e inter organizacionais. Quem sabe não fosse possível ousar mais, e contestar a economia em seu próprio campo?


[1] Genauto França Filho é bacharel, e mestre, em administração (Ufba), com doutorado em sociologia (Universidade de Paris VII). Atualmente é professor e pesquisador da Escola de Administração da Ufba, onde conduz pesquisas na área de economia solidária e economia do terceiro setor. Sylvain Dzimira é doutora em sociologia, professora de ciências econômicas e sociais no liceu Francs-Bourgeois em Paris, colaboradora do Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales – MAUSS – e pesquisadora associada ao Laboratório de Sociologia, Filosofia e Antropologia Política da Universidade de Paris VII. Tem interesses de pesquisa na contribuição de Marcel Mauss para compreensão da ação e atividade política da sociedade civil.

[2] A argumentação dos autores, como alertado nos parágrafos introdutórios, aborda principalmente contribuições de autores franceses e toma por base especificamente o contexto desta vertente de ação/estudo na França. Nesta resenha optamos por conferir especial atenção às partes mais conceituais que permitiriam, no nosso entendimento, uma maior compreensão do fenômeno, deixando de lado momentos mais descritivos do problema da economia solidária na França.

[3] Observando o caso francês, os autores notam que as economias solidárias viveriam naquele momento uma tensão, esta causada pela aproximação de tais práticas com o governo e com o mercado, o que tanto poderia gerar uma dependência com uma desvirtuação das finalidades primeiras dos movimentos. Estas tensões seriam principalmente do embate de lógicas diferentes de apropriação do econômico, e do conflito dos interesses oriundos daquelas esferas de existência da economia geral: mercantil, não mercantil e não monetário.

[4] Há, no texto, uma particular atenção pelo devolver: o objeto dado tinha que ser devolvido naquelas culturas, pois o pertencimento era um vínculo de alma; a alma do objeto estava ligada àquele que o havia ofertado, como se a condição última de posse fosse aquela oferta.


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