Resenha: “por uma Abordagem Etnográfica”

JAIME JÚNIOR, Pedro. Pesquisa em organizações: por uma abordagem etnográfica. Civitas – Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 3, n° 2, p. 435-456, jul.-dez. 2003.

O artigo Pesquisa em organizações: por uma abordagem etnográfica elaborado por Pedro Jaime Júnior[1] tem como objetivo (declarado) estimular/disciplinar o emprego do método etnográfico no campo de estudos organizacionais, e acaba por se tornar também uma apologia de suas potencialidades e uma advertência sobre os perigos de sua banalização. O autor divide o texto em duas partes: a primeira, uma revisão das discussões clássicas e contemporâneas sobre a etnografia; a segunda, uma reflexão sobre o uso do método na pesquisa organizacional. A primeira e maior se subdivide em quatro temas inter-relacionados, que se inicia nas (1) origens do método etnográfico; toca no debate sobre o (2) papel desta abordagem no campo da antropologia; passa por sobre (3) as questões epistemológicas envolvidas num estudo etnográfico a partir da (a) relação entre observador e observado e da (b) importância do discurso e do texto na sua elaboração; e finda numa (4) crítica da crítica pós-moderna e reafirmação valorativa do processo/resultado de um trabalho etnográfico.

Para tratar da etnografia, Jaime Júnior inicia resgatando a origem etimológica da palavra: segundo o autor, etno significa “cultura”, grafia significa “escrita”; [2] uma etnografia seria a descrição de uma cultura em particular. Em seguida afirma que as narrativas de viagens, sobretudo a partir do século XVIII, reservariam rudimentos etnográficos. No entanto, como método científico a etnografia teria surgido dos trabalhos de Franz Boas e Bronislaw Malinowski já na primeira metade do século XX.[3] Boas, nas palavras do autor, teria sido protagonista de um momento intermediário na gênese da etnografia. Seu trabalho junto aos índios da costa do pacífico na América do Norte não fora desenvolvido a partir de uma longa imersão em campo, os pesquisadores não chegaram a dominar a linguagem nativa, nem passaram por qualquer rito de iniciação que os identificasse como pertencente ao povo estudado. Segundo Jaime Júnior, o surgimento da etnografia foi o trabalho de Malinowski nas ilhas Trobriano na Nova Guiné. Este trabalho teria sido fundamentado em duas imersões de mais de um ano, com domínio da língua e rito de passagem.[4]

O autor afirma que foi Malinowski quem estabeleceu as bases para a pesquisa etnográfica, propondo até mesmo alguns princípios como: a necessidade do pesquisador dominar a literatura sobre o objeto; a imperiosidade da observação participante, de ir viver na aldeia e tentar deixar de ser um elemento estranho; e a importância de sistematizar o uso dos métodos de coleta. Malinowski, ainda segundo o autor, foi quem desmontou a dicotomia entre pesquisador e preposto coletor de dados em campo, a coleta seria tão importante que exigiria um especialista, ninguém melhor do que o próprio antropólogo para tanto.[5]

Quando toca na relação entre etnografia e antropologia, primeiramente Jaime Júnior oferece a contribuição de Claude Lévi-Strauss. Para este antropólogo francês, a etnografia, a etnologia e a antropologia seriam práticas autônomas, ainda que constituíssem três estágios de complexidade e amplitude de uma mesma pesquisa. A etnografia seria o estudo de um grupo humano particular; uma etnologia se fundamentaria na utilização de dados etnográficos para tecer conclusões mais extensas sobre onde convivessem muitos povos, em suas características geográficas, históricas, tecnológicas e institucionais; e, por fim, o papel da antropologia seria o de, usando tais conhecimentos, construir inferências universais sobre o homem.

Jaime Júnior a este contrapõe dois autores. Para Glifford Geertz a abordagem de Lévi-Strauss seria, por demais, influenciada pelo positivismo. Em sua visão, a antropologia não poderia ser definida pelo resultado de sua pesquisa, mas através de seu método: seria a ciência que se utiliza do método etnográfico. E, ainda, mesmo que a etnografia seja uma visão “microscópica” (p. 441) da realidade, esta também se proporia a lançar luz sobre grandes questões, só que a partir de uma ótica diferente. Já para Dan Speber, numa crítica também a Geertz, teria defendido que a etnografia se apresentaria como um movimento de interpretação do particular, em contraste com a antropologia que se configuraria numa explicação do que é geral: ambas, em síntese, formariam a ciência que tem o homem por objeto.

A terceira etapa do artigo trás considerações acerca de algumas críticas à antropologia clássica por uma corrente pós-moderna, que se cristalizou em duas discussões: a primeira sobre a complexidade da (1) relação entre observador e observado; a segunda acerca da importância do (2) discurso e da elaboração do texto antropológico.

Segundo Jaime Júnior, a relação observador/observado na abordagem etnográfica foi marcada por um fator institucional: o fim do imperialismo europeu na década de 50. Até 1950 a relação etnógrafo/nativo era colocada sobre o pano de fundo de uma tensão entre nação dominante e povo dominado, no qual o objetivo clássico era captar o ponto de vista do autóctone através de uma observação participante que preservava certo distanciamento: ou seja, uma relação de estudo do outro. O autor afirma então que, de 1950 em diante, com a reafirmação da autonomia dos povos e cessão da relação (direta) de dominação, a antropologia ganha outros contornos: (1) o objetivo no etnógrafo passa a ser o de compreender o outro e, no processo, compreender a si mesmo através do outro; (2) aquele contato se torna um “encontro etnográfico” (p. 443); e (3) o tipo de relação não é mais de estudo, mas de diálogo.

Nesta seara, Jaime Júnior destaca duas contribuições. Tedlock teria defendido que a etnografia não se constrói apenas sobre o diálogo, mas também sobre a observação do ato, e ainda no diálogo sobre o ato observado, o que formaria o campo da intersubjetividade humana. Crapanzano apontaria outro elemento complicador, pois além do diálogo direto travado entre o observador e o nativo – uma relação de aproximação que também esconde a tensão do interagir –, teria que ser considerada a existência de um diálogo oculto, de um não-falar que se imporia como para-mensagem na relação.

Quando toca no tema do discurso e da elaboração do escrito, fundamentado no trabalho de Marcus & Cushman (1991, apud Jaime Júnior, 2003), o autor afirma que há uma ruptura na formatação textual das monografias etnográficas clássicas em relação aos “estudos experimentais” (p. 446) pós-1950. O texto clássico seria marcado por: (1) uma pretensão por descrições totais daquelas sociedades; (2) uma tendência à “exegese do discurso nativo” (p. 445) no qual o pesquisador se propunha a condensar as muitas falas num “sujeito composto” (p. 445) e então desnudar o sentido real do discurso; e (3) sua elaboração em terceira pessoa, que indicava distanciamento, contrabalanceado pelo uso de “marcadores simbólicos” (p. 445) que assegurariam a legitimidade da presença em campo e pelo “foco nas situações típicas da vida cotidiana” (p. 445-6). Estes recursos de apresentação confeririam ao antropólogo certa autoridade de análise.

Em contraste, os já referidos estudos experimentais teriam por objetivo inclusive se colocar contra as convenções textuais utilizadas nos trabalhos clássicos. Segundo Jaime Júnior, Marcus & Cushman destacam como características retóricas destes trabalhos: (1) a despretensão de uma análise completa e foco em aspectos singulares; (2) certo “caráter auto-reflexivo” (p. 446) onde se procura atender a “duas tarefas simultâneas: a apresentação de uma interpretação cultural e a análise do processo de construção desta interpretação.” (p. 446); (3) uso da primeira pessoa do singular; e a (4) “multivocalidade” (p. 447), ou seja, assume o outro como co-autor do trabalho. Não só o etnógrafo e o autóctone são contemplados nesta multivocalidade. O leitor também é destacado como parte do processo, sendo a etnografia elaborada com vistas no público a ser alcançado, que pode ser tanto antropólogos preocupados com a forma do trabalho, como pesquisadores de outras áreas em busca de dados.

O autor ainda destaca a existência de três metáforas sobre a prática da etnografia. A primeira, clássica, seria a “metáfora da conversão” (p. 447), no qual o pesquisador é como um aprendiz introduzido no ambiente autóctone no qual tenta se converter em nativo para captar seu olhar. Uma segunda seria a “metáfora da tradução” (p. 447), onde o observador assume o papel de tradutor que vive com o nativo interpretando-o. Por fim, haveria a metáfora do diálogo, onde o etnógrafo se encontra com o outro para, juntos, pensarem sua relação.

Na quarta etapa da primeira parte do artigo o autor expõe algumas críticas contemporâneas aos questionamentos realizados pela corrente pós-modernista. Em síntese, os pontos mais presentes trazidos pelos autores são: (1) uma atenção exagerada sobre o próprio campo, sobre as etnografias realizadas pelos clássicos, ou as próprias limitações do método; e (2) uma demasiada observação do texto e do discurso, em detrimento dos trabalhos de campo. A principal conseqüência seria uma crítica prematura do método e da antropologia, ainda que tenham contribuído ao destacar os limites de sua forma e alcance.

A última e menor parte do texto é dedicada a uma pretensa síntese do uso da etnografia no estudo das organizações. Não há discussão, o autor se limita a elencar conselhos para quem deseja abordar a organização a partir de uma etnografia.[6] Seria esta a segunda grande parte do texto anunciada na introdução, (mal) tratada em apenas três páginas.

O ponto alto da conclusão alude a dificuldade de ensinar a pesquisar através da etnografia, destacando o papel da necessária exposição a resultados assim obtidos e da própria práxis no processo de aprendizado do método.

Em nossa opinião, o autor expõe muito bem ao longo do artigo algumas das inúmeras questões que cercam a etnografia em sua inserção no estudo antropológico. Porém, de repente, como que lembrasse que este trabalho tinha por objetivo inicial estimular/criticar o uso do método nos estudos organizacionais, o termo organização é inserido sem nenhum preparo ou critério. Não fica claro como (e mesmo se) cada autor referenciado enxerga a organização. Não se apronta um conceito para a organização, como se fosse um ente que dispensasse uma abordagem mais sistemática. Não é possível notar se a antropologia possui alguma preocupação com a organização, nem como ela se ocupa do fenômeno, nem sequer o porquê deste ocupar. O autor não tenta sequer dizer porque usar a etnografia para abordar a organização, o que acaba sendo sua grande falha.


[1] Pedro Jaime Coelho Júnior é administrador (UFBA), mestre em Antropologia Social (Unicamp) e doutor em Antropologia Social (USP), assim como também doutor em Sociologia e Antropologia na Université Lumière Lyon 2, na França. Atualmente é professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo. Tem interesses em abordagem sócio-antropológica das organizações; diversidade, relações raciais e gênero nas organizações; métodos qualitativos de pesquisa em organizações.

[2] Etnografia é uma palavra resultante da junção de dois radicais que, segundo Evanildo Bechara (2009), são de origem grega: etneo, que servia para delimitar os povos não-gregos; e graphos, que designava a escrita. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa: atualizada pelo novo acordo ortográfico. 17. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2009.

[3] O autor lembra ainda que a “tradição francesa” (p. 437) tem reivindicado nos últimos anos uma contribuição à etnografia. Mas afirma que seus principais representantes – Durkheim, Mauss e Lévi-Strauss – não podem ser considerados etnógrafos; sem, no entanto, explicar o porquê desta exclusão.

[4] Desta passagem podemos inferir o que Jaime Júnior considera como as características que definem uma etnografia legítima, algo que não declara abertamente em todo o texto: (1) a necessidade de uma longa imersão, ao menos “um ano”; (2) o domínio da linguagem nativa; e (3) a iniciação, um tipo de comprovante de pertencimento daquele pesquisador junto ao povo estudado. Estas três características não foram resgatadas de nenhuma referência ao longo do trabalho.

[5] O autor afirma que o trabalho de Malinowski proporcionou uma revolução paradigmática no estudo da antropologia, nos termos de Thomas Khun. Mas em seguida retrocede desta afirmação ao relembrar que a antropologia, como outras ciências sociais, não se encaixa neste quadro de sucessão linear de paradigmas dominantes como o proposto por Khun, já que modelos coexistem sem serem necessariamente substituídos por novas abordagens.

[6] Estas recomendações são: (1) partindo da inevitável tensão entre familiaridade e estranhamento, é importante manter o distanciamento; (2) a familiaridade não deve se tornar confusão entre observador e observado; (3) é necessária a prática do diálogo; (4) é preciso contemplar a dimensão política da organização, a distribuição dos recursos simbólicos e materiais; (5) a negociação da presença do etnógrafo deve ser cuidadosa; (6) nas organizações, o pesquisador necessariamente não assume uma posição de superioridade cultural, normalmente é encarado como igual, e muitas vezes se insere em uma posição hierárquica inferior; (7) é preciso domínio do referencial teórico; (8) é importante contextualizar o ambiente sócio-histórico da organização; (9) deve-se proceder a uma leitura das transformações históricas pelas quais a organização passou ao longo dos anos; (10) na passagem do campo ao texto é preciso construir a interpretação junto com os atores estudados; (11) a não-corroboração da interpretação pelo nativo não invalida a pesquisa, e pode inclusive ser objeto de análise.


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