Resenha: “As Organizações Vistas como Culturas”

MORGAN, Gareth. A criação da realidade social: as organizações vistas como culturas. In: ______. Imagens da organização. Tradução Cecília Whitaker Bergamini, Roberto Coda. São Paulo: Atlas, 2009. p. 115-144.

Gareth Morgan[1], no quinto capítulo de seu famoso livro, toma como objetivo examinar as organizações vendo-as enquanto fenômenos culturais. Isto significa conceituar a firma[2] como um mosaico de mitos, rituais e concepções de senso comum, características de um grupamento social complexo. O capítulo se divide em três partes: a primeira parte defende três argumentos – inicialmente o autor tenta demonstrar como a organização é um fenômeno cultural em si mesmo; em seguida defende que sua atividade é influenciada pelas particularidades culturais das sociedades nas quais está inserida; então aponta que, internamente, a organização possui uma cultura própria, além de subculturas distintas e talvez até mesmo conflitantes. Na segunda parte do capítulo Morgan toma esta assertiva da organização enquanto possuidora de cultura e a aprofunda, propondo que a cultura organizacional é o resultado de uma estrutura de representações e realizações mais ou menos comuns a aquele grupo de pessoas. O texto é finalizado, tal como os demais capítulos do referido trabalho, com algumas considerações acerca das contribuições explicativas e dos limites impostos à capacidade performativa desta metáfora.

Inicialmente Gareth Morgan tenta esboçar um conceito para cultura. Este termo acaba sendo definido como algo que denotaria o fato de “que diferentes grupos de pessoas têm diferentes estilos de vida.” (p. 116). No entanto, na seqüência do texto e graças à recorrência do uso, é possível perceber que o autor assume a cultura como um conjunto de “idéias comuns, crenças e valores” (p. 117) referentes a um grupo social.

Citando Robert Presthus, Morgan alega que as organizações são um fenômeno cultural fundado em modos de socialização próprios, as quais compõem o que chama de “sociedade organizacional” (p. 116). Indivíduos que vivem neste tipo de coletividade teriam relações mediadas por organizações e por sua racionalidade técnica, desde a coordenação e divisão do trabalho até a fruição do lazer. Também cita Emile Durkheim ao defender que a expansão das organizações acabaria por solapar os padrões tradicionais de sociabilidade, substituindo o marco de coesão nas culturas pré-existentes por um conjunto fragmentado de valores baseado na divisão social do trabalho e na ética da fábrica. Ainda, o disseminar da empresa, da lógica fabril, poderia ser definido como a formação de uma sociedade industrial em escala mundial.

Entretanto, segundo o autor, mesmo que o crescimento e a disseminação das organizações imponham às sociedades um conjunto de idéias comuns, crenças e valores baseados na ética da empresa, estas não deixam de ser influenciadas pelas muitas culturas com as quais acabam mantendo contato. Morgan cita o exemplo de como alguns pesquisadores atribuíram a fatores culturais o sucesso da indústria automobilista japonesa sobre a americana nas décadas de 70 e 80; alude também ao fato de como tais análises tendem ignorar elementos históricos e institucionais daqueles acontecimentos. Mas, com base no autor, mesmo assim seria possível observar traços de distinção entre as organizações originárias de diferentes países: (1) como nos EUA, onde a firma se funda num individualismo competitivo; ou como na (2) indústria inglesa, que exibe marcas de uma histórica e acirrada luta de classe; ou ainda no fato de (3) nas empresas japonesas parece sobreviver os traços coletivistas tão característicos da rizicultura local, associados à ética de serviço que compunha o código samurai.

Gareth Morgan declara também que a organização, além de ser um elemento cultural e estar inserida em dessemelhantes estruturas sociais, ainda guardaria dentro de suas fronteiras um complexo de formas de pensar, mitologias e normas de conduta próprias: ou seja, haveria uma cultura singular em cada empresa. Esta “cultura organizacional” (p. 125) seria também permeada por subculturas: tanto porque as empresas são formadas por profissionais oriundos de diversas áreas do conhecimento, que inevitavelmente contribuem trazendo modos de agir e falar próprios; como porque as grandes multinacionais têm colocado em contato, num mesmo ambiente de trabalho, pessoas provenientes de distintos grupos étnicos e mesmo de diferentes países; ou ainda por conta de que cada casta na hierarquia funcional encerra um modus vivendi particular. O choque entre estas subculturas, segundo o autor, poderia descambar em conflitos desagregadores ou, ao contrário, se harmonizar em torno de um objetivo maior. De modo geral o embate se manteria num ponto do continuum entre os extremos.

O autor, na segunda parte do capítulo, empreende duas linhas argumentativas: (1) afirma que cultura é resultado das representações interpretativas da realidade que são comuns a muitos indivíduos; e, sendo assim, (2) as organizações são complexos representativos socialmente construídos cuja existência é principalmente subjetiva.

Citando o sociólogo Harold Garfinkel, Morgan afirma que “[…] a natureza de uma cultura [é] encontrada nas suas normas sociais e costumes […].” (p. 133), regras não-escritas de socialização às quais indivíduos aderem inconscientemente e reproduzem diariamente. O reproduzir automático dos códigos tácitos de comportamento é o que o autor citado denomina realização. Isto contribuiria para formação do substrato subjetivo que batizamos por cultura. Morgan ainda cita o psicólogo Karl Weick ao defender que “[…] o processo através do qual configuramos e estruturamos a nossa realidade [é] um processo de representação.” (p. 134, grifo do autor). A exposição destes dois conceitos seriam maneiras de afirmar que a realidade grupal é construída pela ação consciente-inconsciente dos sujeitos, o que conferiria à cultura um aspecto dinâmico, resultado do encontro psicossocial dos indivíduos. Cultura seria uma representação coletiva da realidade, e mesmo talvez a realidade em si.

Partindo desta premissa, Morgan assevera que a organização é, enquanto fenômeno cultural, composta principalmente pelas construções de realidade que são comuns aos seus membros. Desse modo, as regras, as estruturas, as políticas, os procedimentos, entre outros, seriam apenas manifestações de um processo mais profundo, ou seja, meros “artefatos culturais” (p. 136) que trazem para o campo objetivo algo que existe de fato no plano subjetivo. Além disto, haveria um significado simbólico implícito em cada costume, cada forma de agir; estes seriam os meios que o já referido substrato coletivo da organização encontraria para emergir. O autor opera indiretamente uma dicotomia entre realidade objetiva e subjetiva da organização, tendendo a ver nas expressões materiais e comportamentais meras manifestações do que seria a verdadeira firma – algo por detrás da aparência, que se esconde e se revela através destas expressões.

Segundo Gareth Morgan, uma  das principais contribuições desta metáfora para o entendimento da realidade organizacional está em desmitificar a aura de racionalidade da empresa e expor seus elementos subjetivos de existência. O autor afirma que “as organizações modernas são mantidas por sistemas de crenças que enfatizam a importância da racionalidade.” (p. 139); mas suas ações seriam muito mais pautadas por irracionalidade e costume do que, necessariamente, por uma aplicação sistemática da razão. A estrutura simbólica seria, portanto, um nível de realidade mais concreto do que a material. Morgan também credita a esta abordagem o entendimento de que a organização é mantida coesa graças à cultura, esta “amálgama normativa” (p. 140) que confere significado e sentido ao trabalho.

Uma terceira contribuição apontada pelo autor é a noção de que a organização contém uma interpretação própria do ambiente; além disto, percebe-se que a organização se relaciona com este ambiente através, permeado e orientado pela sua cultura. Partindo da premissa de que é a estrutura simbólica quem erige a realidade, é possível afirmar, então, que as representações construídas pela empresa edificariam – ou contribuiriam para edificar – o espaço na qual está inserida. Por fim, Morgan destaca que a mudança organizacional pode ser explicada como, na verdade, uma mudança na estrutura de valores e símbolos daquele grupo social. Assim, para que seja significativa uma tentativa de mudança, ela necessariamente precisaria transcender o mero limite das aparências materiais.

Porém, mesmo que a capacidade explicativo-interpretativa desta metáfora seja sólida, Morgan nota do lado performativo as questões mais intricadas. Seria, a seu ver, difícil promover transformações efetivas na cultura da empresa, pois as muitas variáveis em jogo – que incluiriam o arcabouço representativo dos indivíduos ali imersos – tornaria particularmente complexa a atividade de antever o efeito de certos estímulos. Ainda, haveria também uma dificuldade em adequar idéias comuns, crenças e valores que pudessem atender os interesses individuais e coletivos; o que passaria, inclusive, pela formação e articulação destes interesses – tema tratado no capítulo seguinte a este no já referido livro.

Ao final, o autor articula uma quase-advertência. Exorta a não se ver na cultura da organização uma variável a mais, e sim parte determinante da totalidade social que é a empresa; algo que, pairando imanente ao que se mostra num primeiro olhar, a matéria física e comportamental, confere-lhe sentido e significado concreto.


[1] Morgan é economista – London School of Economics and Political Science, UK– mestre em administração pública – Univesity of Texas, Austin EUA – e Ph.D. em economia – University of Lancaster, UK. Atualmente é preceptor da York University School of Business, Toronto Canadá, onde tem pesquisado sobre formação educacional em administração, mudança organizacional, caos e complexidade na análise da empresa.

[2] Ao usar o termo “organização”, Morgan demonstra pretensão de estender suas formulações a esta categoria mais ampla no lugar de direcioná-las para algo mais estrito como a “empresa”; o que parece ser bastante razoável numa metáfora como a da cultura. Porém, seus exemplos são amplamente fundamentados em realidades empresariais, uma subcategoria de organização, distinta pela sua particularidade teleológica, que não cabe aqui ser desenvolvida. No decorrer desta resenha escolhemos usar como sinônimos, por motivos de simplificação e por acreditarmos que não destoará das intenções do autor, os termos “organização”, “empresa” e “firma”. É necessário, todavia, deixar claro que em nenhum momento Gareth Morgan se refere a seus exemplos utilizando os conceitos de “firma” ou “empresa”.


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