Um criminoso invadiu duas escolas em Aracruz no Espírito Santo atirando; deixou quatro vítimas fatais e muitos feridos. Menor, branco, filho de um policial militar sobre o qual recaem suspeitas de que fazia apologia ao nazismo nas redes sociais, o atirador cometeu os crimes ostentando uma suástica, alvejou professores, além de estudantes menores de idade.
Esse caso de violência tem sido debatido a partir de diversas camadas de análise, de forma rica por muitos articulistas. Mas, chamou muito a atenção uma história paralela. O jornal O Estado de São Paulo (Estadão para os íntimos) fez uma chamada para a notícia ilustrando-a com a imagem de mãos segurando uma arma, mãos negras, ostensivamente associando a violência à comunidade afrodescendente. A situação bizarra foi tratada como equívoco, depois retratado pelo jornal, assim como considerada um exemplo de “racismo estrutural”, mas eu penso que o problema é mais grave.
Na minha opinião, não se trata de uma mera escolha infeliz. Uma ilustração de matéria num dos maiores jornais do país passa por várias camadas de supervisão. Repórteres, redatores, ilustradores, diagramadores, editores, programadores web, todos ou quase todos graduados em áreas relacionadas à comunicação, com experiência e supervisão, se envolvem na produção de uma chamada. São muitas camadas de controle antes de ser veiculada uma informação, desde o furo, passando pela checagem, até a montagem e prova do material. Não me parece que uma estrutura assim incorreria num erro tão primário. Não acho que se trata de um mero engano decorrente de costume arraigado e inconsciente.
O “racismo estrutural” é conjunto de formas de relação de segregação e subsunção de raça, entranhado nas estruturas de sociabilidade. Este processo (ou conjunto de processos) se manifesta e se reproduz em formas aparentemente inocentes, como piadas, ditos populares de duplo sentido, músicas ou expressões, assim como na identificação subjacente de percepção de uma relação de superioridade/inferioridade entre grupamentos humanos distintos. Chama-se “estrutural”, pois sobrevive nas estruturas sociais — compostos simbólicos, arquetípicos, fundamentais, sobre os quais as relações entre indivíduos e grupos se erguem, como formas básicas de organização da sociabilidade —, de maneira até mesmo inconsciente.
No caso do “erro” do Estado de São Paulo, dizer que a escolha da imagem teria sido um caso de “racismo estrutural” significaria defender que, talvez, haja um protocolo de construção de peças de comunicação que faz uso de um banco de dados de imagem, donde aquela foi tirada e incluída sem reflexão, de forma inconsciente. Ter chegado a publicação seria, portanto, um encadeamento de erros quase inocentes, resultado das camadas estruturais de segregação racial que independem dos indivíduos. Não penso assim, por conta das já mencionadas camadas de controle envolvidas na publicação de um texto jornalístico.
Para mim, aqui mais pareceu um ato consciente e calculado de atenuar o componente de extrema-direita fascista subjacente. Uma mão negra representa violência, para eles, mesmo que a violência tenha sido perpetrada por um branco nazista, porque querem reforçar a pretensa diferença entre raças que justifica sua sensação (obviamente desprezível) de superioridade. Assim, tentaram atenuar o componente racista e nazifascista da agressão, remetendo aos preconceitos arraigados de raça de sua comunidade leitora.
Não vejo ali um engano e sim uma estratégia. Parece haver uma intencionalidade, uma sistemática racista, programada, consciente, com know how organizacional, que se esforça para perpetuar estigmas de segregação.
Não é um acidente decorrente da herança escravagista (o que atenuaria a culpa dos contemporâneos). É uma guerra aberta de raça manifesta numa escolha consciente de desinformação. Ali temos uma instituição que sistematicamente apoia a direita, a mesma direta que caminha para o extremo. A institucionalidade vai junto, ou perderá organicidade. Por isso, sinaliza com imagem o que não consegue formular em palavras (ainda). Na minha opinião, todo esse problema seria melhor captado pelo conceito de “racismo institucional”.
O racismo institucional é aquele arraigado nas instituições, nos protocolos oficiais de ação organizacional desde o estado, imprensa, polícia, até a empresa, perpassando procedimentos de trabalho, leis e outras formas de regulação e normalização. Os atores envolvidos não os reproduzem de forma inconsciente. Isto porque as instituições — mecanismos de ordenamento coletivo, que refreiam comportamentos desviantes, ao mesmo tempo em que estimulam comportamentos alinhados, reproduzindo uma lógica de poder subjacente — acomodam uma dinâmica de ação que articula o comportamento arraigado, estrutural, à escolha individual (ou de um coletivo) de forma consciente.
Em outras palavras, ao menos em algum nível, aquela imagem emergiu de forma consciente. Depois, já tendo sido feito o estrago simbólico que pretendia, assumiu-se um mea culpa que deixa tudo ainda mais estranho. O interessante é como todo o caso dialoga com a ideia de empresa, a uma máquina objetivo-subjetiva que se utiliza sistematicamente das formas de opressão para construir lucro. O jornal em questão é sim uma empresa, cujo principal objetivo é valorizar capital, isto por meio de uma atuação ideológica e enviesada que coloca em terceiro plano qualquer esforço de informar.
Um detalhe. É preciso lembrar que o racismo institucional funciona, no Brasil, como um meio objetivo de previnir o desenvolvimento econômico e social, impedindo secularmente que o país atinja seu pleno potencial produtivo-distributivo. Ao excluir extensas parcelas da população do acesso às benesses da modernidade, as classes autoproclamadas brancas impedem que negros, índios e outras “minorias” (a maioria) se sintam estimulados para a produção e mudança de suas próprias vidas. Estes são convencidos diuturnamente que não é possível chegar a espaços de liderança, a melhores condições de vida, exceto se, e somente se, se sujeitarem ao papel de capatazes e capitães do mato.
Os poucos capazes de furar os bloqueios, enfrentam tamanhas dificuldades que raramente atingem seus potenciais plenos. Assim, inovações, formas diferentes de enxergar a realidade, descobertas, são tolhidas desde a raiz, antes mesmo de poderem florescer.
Se perguntem: quantxs Einstein, Mandela, Currie, Luxemburgo, não foram perdidos para a fome? Para a violência nas favelas? Para a seca?
Interessante é que, se o racismo é consciente e planejado institucionalmente, significa que nossas elites brancas, em todas as instâncias, escolhem um país pior, mais pobre, com menor projeção internacional, democraticamente mais frágil, para perseguir o objetivo de manter as camadas não brancas em uma situação de controle e domínio. Isso fica muito evidente na observação da situação indígena, nas favelas de RJ, SP e SSA, enfim.
Um país que não valoriza o que tem de mais rico, uma população tão diversa, não poderá se desenvolver. Essa é a aposta do Estado de São Paulo e dos que representam, que na mediocridade eles se mantenham no poder.

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