Resenha: “Interesses, Conflito e Poder”

MORGAN, Gareth. Interesses, conflitos e poder: as organizações vistas como sistemas políticos. In: ______. Imagens da organização. Tradução Cecília Whitaker Bergamini, Roberto Coda. São Paulo: Atlas, 2009. p. 144-203.

Objeto desta resenha, o excerto Interesses, conflitos e poder é o sexto capítulo do já clássico trabalho elaborado pelo pesquisador inglês Gareth Morgan[1]: Imagens da organização  – Images of organization, Sage, 1986. Seguindo a proposta do livro, que apresenta diferentes metáforas que contribuiriam para auxiliar na análise do fenômeno organizacional, seu objetivo principal é demonstrar como este processo social complexo pode também ser comparado a um sistema político, no qual se articulam diversos e conflitantes interesses. O texto se divide em quatro partes articuladas: a primeira tenta encontrar na organização elementos de (1) sistemas formais de governo; a etapa subseqüente aponta como o processo organizacional é permeado e direcionado por (2) atividades de natureza política por parte dos indivíduos que o compõe; a terceira parte tece considerações acerca das características e desafios da gestão de organizações vistas como (3) sistemas políticos plurais; por fim, Morgan resume (4) as principais contribuições desta metáfora, assim como suas limitações e contradições. A seqüência original foi respeitada no processo de elaboração desta resenha.

Ao abordar “as organizações como sistemas de governo” (p. 147), Morgan enxerga no processo organizacional padrões políticos de articulação e governo que se assemelham às formas políticas sociais, especialmente no que diz respeito à origem e divisão de poderes e o exercício da gestão. Segundo autor, organizações podem ser: autocracias, governadas absolutamente por um indivíduo ou um grupo; burocracias, fundamentadas na instituição de um aparato legal/racional de regras formais; tecnocracias, nas quais o governo é centrado no imperativo do conhecimento especializado; conduzidas em regime de co-gestão, onde as partes interagem na formação de consensos e coalizões; representativamente democráticas, nestas os membros elegem representantes legais que possuem um mandato para defender seus interesses no uso do poder de governo; e/ou diretamente democráticas, naquelas onde todos os membros têm um direito igual de governar, e tomam parte das decisões diretamente.

Gareth Morgan defende que na realidade estas formas de governo não necessariamente apareceriam em seus formatos puros. Segundo sua visão, organizações seriam parcialmente permeadas por diversas estruturas de governança, dentre as quais uma poderia se destacar como dominante; ainda,  mesmo partes diferentes das organizações poderiam apresentar um sistema predominante diferente das outras, tanto por diferenças funcionais como hierárquicas.

Descrever a organização como um sistema de governo leva Morgan a propor a necessidade de analisar os instrumentos e as características da inserção dos indivíduos na atividade política das organizações, ou seja, enxergá-las a partir da noção de que são “sistema[s] de atividade[s] política[s]” (p. 152). Para tanto, o autor propõem a inserção de categorias de análise típicas das ciências políticas, como: (1) a configuração e a natureza dos diversos interesses no âmbito da firma; (2) a sistematização do conflito – suas causas e sua importância no processo organizacional; (3) e o uso e a distribuição do poder, suas fontes e sua natureza.

Ao abordar a categoria interesses, Morgan opta por tratá-la primeiramente no plano individual. Segundo sua explanação, os interesses de um indivíduo na organização podem ser concebidos em termos de “três domínios interligados e relativos a tarefas [que os indivíduos desejam exercer ou evitar], carreiras [ou aspirações de crescimento individual] e vida pessoal [elementos extra-firma que motivam a ação individual] de alguém na organização.” (p. 153, grifos nossos). O interesse individual, segundo o autor, seria formado no espaço contraditório de intersecção destes três planos, e se decodificariam em termos de ações e reações comportamentais em relação à organização e aos demais atores ali imersos. Quando passa ao plano coletivo, o autor destaca – usando o artifício da parábola – como, dentro das organizações, interesses individuais podem se aglutinar em de grupos e coalizões. Tais grupos se organizariam em torno de líderes com o intuito de enfrentar uma coalizão dominante, consolidar uma liderança já alcançada, e/ou mesmo resistir a agressões de coligações rivais.

Gareth Morgan afirma que “o conflito aparece sempre que os interesses colidem.” (p. 159). Normalmente as abordagens que o autor associa a metáforas organicistas ou mecanicistas da organização partem da concepção de que o conflito é uma disfunção. No entanto, a abordagem política visualiza o conflito como um elemento da dinâmica interna do grupo: seria inevitável graças à própria natureza social do processo organizacional; e apareceria tanto no nível pessoal e interpessoal como na relação entre as eventuais coalizões. Citando o sociólogo escocês Tom Burns, Morgan ainda defende que organizações são sistemas contraditórios de cooperação/competição nos quais “as pessoas devem colaborar na busca de uma tarefa comum, embora sejam freqüentemente colocadas uma em oposição a (sic) outra, competindo por recursos limitados, status e promoção na carreira.” (p. 160). Ou seja, a causa principal do conflito seria a competição pela disponibilidade de recursos escassos, tanto materiais – inversões de capital, salários, etc. –, como simbólicos – status, promoções, etc.

O autor inicia a seção sobre poder afirmando que este “[…] é o meio através do qual conflitos de interesses são, afinal, resolvidos. O poder influencia quem consegue o quê, quando e como.” (p. 163). Morgan diz não haver consenso na conceituação do termo – por vezes é apresentado como um recurso, outras como uma relação de dependência/dominação – mas opta pela definição de Robert Dahl: poder seria a capacidade de influenciar de pessoas a tomarem atitudes que normalmente não tomariam (DAHL apud MORGAN, 2009, p. 163). Ainda afirma que o poder na organização tem origens diversas, deste a autoridade, passando pela própria estrutura, até a perpetuação do poder por si mesmo; porém, apesar da longa lista[2] de possíveis origens desta categoria sócio-política, resgata a questão da sua natureza, se recurso ou relacionamento, para então reforçar a importância da análise do papel e da distribuição do poder na organização para sua melhor compreensão.

Este observar da organização como um ambiente contraditório de cooperação/competição formado por um mosaico de interesses em conflito e normalmente marcado por relações assimétricas, porém nunca inteiramente dominantes, de poder, Morgan batiza como uma “estrutura ‘pluralista’ de referência” (p. 191). O autor afirma que, ao chamar de pluralista, está se aproximando do conceito de sociedade pluralista, que se caracterizaria pela idealização da democracia liberal na qual o autoritarismo seria contido pelo jogo aberto dos interesses contraditórios no livre exercício de sua liberdade de negociação. Esta visão pluralista estaria em contraste com outras duas estruturas de referência: (1) a concepção unicista (ou organicista), que conceberia os sistemas sociais como unidades orgânicas nas quais os interesses dos indivíduos fundamentariam, e seriam substituídos por, um interesse geral; (2) e o que o autor chama de radical, para quem as formações sociais seriam marcadas por antagonismos de classe mediados por arcabouços de coerção e consenso.

De acordo com Morgan, na visão unicista a organização é contemplada como um sistema em busca de objetivos comuns a todos os indivíduos. O conflito é um fenômeno raro e indesejável, o poder é uma categoria ignorada e a atividade política é considerada perniciosa e irracional. A hierarquia é vista como absoluta e única fonte legítima de autoridade e poder; sindicados, grupos informais, interesses particulares, tudo isto é encarado como formas de abuso contra a racionalidade da firma.

Já a estrutura radical de referência é apresentada por Gareth Morgan como adepta da leitura da organização tal qual um campo de batalha entre grupos sociais antagônicos, cujos interesses seriam contraditórios e irreconciliáveis. A batalha intra-organizacional consistiria apenas na expressão de uma guerra social mais ampla, o conflito de classes. Mas, admitiria que a disputa direta pode ser suprimida num estado de latência através de estruturas ideológicas de dominação e/ou consenso. Esta estrutura de referência, segundo o autor, veria no poder, e nas assimetrias de sua distribuição, uma categoria fundamental. A origem e a distribuição de poder na organização, assim como o conflito, seriam enraizadas na própria procedência e repartição do poder no âmbito social mais amplo.

A estrutura pluralista de referência é apresentada por Morgan em oposição às estruturas unicista e radical. Sua ênfase se fundamenta na diversidade dos interesses individuais e dos grupos e coalizões. Portanto, assume o conflito como uma característica da qual não é possível escapar nas atividades organizacionais. O processo organizacional seria uma composição de interesses diversos em um equilíbrio precário, e nisto residiria a essência predominantemente progressista da firma. O poder seria uma categoria central para análise da firma; segundo o autor, “a organização é vista [por esta estrutura de referência] como uma pluralidade de detentores de poder obtido de uma pluralidade de fontes.” (p. 193).

Gareth Morgan defende que, na prática, existem organizações que funcionam de maneira mais próxima de uma ou outra destas estruturas de referência. Estes quadros ainda serviriam como fundamentos ideológicos da liderança, influenciando a atuação e a forma de direção dos administradores. Por exemplo, cita Morgan, a ideologia unicista pode muito bem fazer parte do discurso de um gerente que, na verdade, está preocupado em usar o inevitável conflito organizacional para alcançar seus objetivos, ou seja, um líder pluralista. O administrador assim qualificado é apontado no texto como um gestor do conflito; e o faz a partir de um estilo próprio que, segundo o autor, pode ser classificado em cinco categorias mais gerais, o competitivo, o colaborador, o compreensivo, o impeditivo e o acomodador. Ainda, cada perfil destes seria adequado para resolução de tipos específicos de conflito.

Segundo Morgan, vislumbrar a organização a partir da metáfora política permitiria enxergar a importância da multiplicidade dos interesses internos e dos jogos de poder daí advindos. Isto ajudaria também a colocar em cheque o pressuposto da racionalidade da firma, e de que esta seria um sistema integrado e orgânico, abrindo para compreensão a seara do fragmentado comportamento humano na firma a partir das tensões entre seus interesses individuais. Além disto, e por conta destes fatores, é possível também começar a discernir com maior clareza as implicações sócio-políticas da existência das organizações.

No entanto, ainda de acordo com o autor, esta leitura poderia levar a uma apostasia da política e a uma interpretação paranóica das ações individuais e coletivas, conduzindo a conclusões cínicas e atitudes egoístas. Uma abordagem extremista da política pode também esconder o potencial progressista do embate de interesses, e exacerbar desproporcionalmente suas virtuais disfunções. Morgan ainda tece uma crítica sobre a estrutura pluralista de representação na organização, afirmando que esta abordagem pode ser irreal e ineficiente para analisar organizações marcadas por assimetrias de poder, como de fato acontece.


[1] Morgan é economista – London School of Economics and Political Science, UK– mestre em administração pública – Univesity of Texas, Austin EUA – e Ph.D. em economia – University of Lancaster, UK. Atualmente é preceptor da York University School of Business, Toronto Canadá, onde tem pesquisado sobre formação educacional em administração, mudança organizacional, caos e complexidade na análise da empresa.

[2] Gareth Morgan sugere que na organização o poder pode se originar: (1) na “autoridade formal” (p. 164), citando os tipos ideais weberianos de liderança tradicional, carismática e burocrática; (2) através do “controle sobre recursos escassos” (p. 166); (3) na forma de usar a “estrutura organizacional, regras e regulamentos” (p. 167); (4) no “controle da tomada decisões” (p. 171); (5) com a capacidade de exercer “controle [sobre] o conhecimento e […] [a] informação” (p. 173); (6) no “controle das fronteiras” (p. 174), atuando nos limites inter-funcionais e inter-organizacionais em um sistema de mediação; (7) na “habilidade de lidar com a incerteza” (p. 176); (8) através do “controle da tecnologia” (p. 177); (9) controlando as organizações informais (p. 179); (10) no “controle das contra-organizações” (p. 181), daquelas instituições extra- organização, mas que exercem pressão sobre esta como sindicatos, instituições credoras, associações de acionistas; (11) no “simbolismo e administração do sentido” (p. 182), manipulando percepções simbólicas dos indivíduos no plano organizacional através do “[…] uso de imagens, [do] uso do teatro e [do] uso da arte de ganhar sem romper verdadeiramente as regras do jogo.” (p. 182); (12) na “[…] administração das relações entre os sexos” (p. 184), ou melhor, na gestão das relações de gênero; (13) no acesso ou aproveitamento de “fatores estruturais que definem o estágio da ação” (p.188), o que significa o acesso a elementos estruturais que, previamente, colocam poder nas mãos de determinados grupos ou indivíduos – por exemplo, numa relação Capital/Trabalho permeada por amplo exército industrial de reserva, o poder está desproporcionalmente alocado nas mãos daqueles que detêm os meios de produção; (14) e no “poder que já se têm” (p. 190), ou seja, o poder atraindo mais poder. No entanto o próprio autor alerta que esta não pode, nem pretende, ser uma lista exaustiva, dado as próprias incertezas na definição da natureza, da ontologia, da categoria “poder”.


Descubra mais sobre Administração Crítica

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Os comentários estão encerrados.

Site criado com WordPress.com.

Acima ↑