No saber filosófico, a palavra “fenômeno” está associada desde a antiguidade ao seu duplo complementar, a coisa-em-si, o nuômeno, a essência. A partir do diálogo de Sócrates relatado por Platão em Timeu, podemos inferir que ali o fenômeno se refere ao que é percebido pelos sentidos de forma empírica e, portanto, é transitório e inconstante; uma aparência. Essa inconstância, na filosofia platônica, se mostrava uma evidência de que se tratava de uma fonte frágil de saber, pois a Verdade, enquanto tal, deveria ser perene e constante. A essência à qual o fenômeno (transitório e inconstante) se relacionava seria, por sua vez, a Verdade, pois esta sim imutável e constante: a representação dos fenômenos em termos de conceitos abstratos, que residiriam no mundo das ideias. Dessa forma, para Platão o conhecimento sobre o fenômeno era algo incompleto, uma sombra. A verdade só poderia ser inteiramente alcançada por meio da reflexão (Stern, 2008).
Um movimento oposto, em alguns aspectos, viria a tomar forma na filosofia aristotélica. Aristóteles leva a entender que o saber não precede a experiência, mas o inverso. Na medida em que são expostos às experiências sensíveis, os indivíduos abstraem das observações dos fenômenos particulares aquilo que lhes é único, para então formar, com as características comuns percebidas, uma ideia ou conceito (Bronstein, 2016). Nesse sentido, a dicotomia entre a verdade essencial como produto do saber sistemático da razão [episteme] e a superficialidade do fenômeno resultado da mera opinião [doxa] persiste, mudando apenas o procedimento para se chegar à Verdade, dedutivamente em Platão (Stern, 2008) e indutivamente em Aristóteles (Bronstein, 2016). Esse dilema fundamental acerca da origem do conhecimento — se empírica ou idealista —, perpetuar-se-ia nos muitos sistemas filosóficos ocidentais (O’Brien, 2013) até que Immanuel Kant propusesse sua síntese.
Na filosofia kantiana, o mundo dos fenômenos compõe a única realidade cognoscível que pode ser acessada pela razão, pois, a relação do indivíduo com o meio externo se dá por intermédio de categorias de percepção não oriundas do objeto em si, mas imprimidas sobre a experiência a partir do sujeito e de seus limites perceptuais, por isso, transcendentes. Assim, o evento empírico, o qual permite a formação dos juízos sintéticos a posteriori — que na filosofia kantiana são a base para quase todo o saber válido—[1], é percebido por intermédio dos sentidos, sob a influência dos pressupostos perceptuais que se encontram ontologicamente entranhados no cerne da razão humana (Kant, 2001).
Nesse sentido, o fenômeno aparece como a tradução do mundo concreto possível, em termos de uma construção mental realizada por meio do emprego das categorias de percepção. Como resultado, além do fato de que Kant estabelece uma dicotomia irreconciliável entre sujeito e objeto de conhecimento, é preciso destacar que o objeto a ser conhecido, enquanto fenômeno, é construído pelo sujeito na medida em que ele não necessariamente coincide com a realidade objetiva da coisa-em-si. No entanto, Kant não nega a existência dessa realidade concreta, apenas afirma que não é cognoscível, pois as pessoas podem somente e apenas conhecer as impressões que a coisa-em-si exerce sobre seus sentidos; impressões que, por sua vez, são organizadas no âmbito do intelecto por meio das categoriais transcendentais da razão humana, como a causalidade, o tempo, o espaço etc. Não se trata de um relativismo pueril, já que essas categorias seriam, segundo o filósofo, naturais da humanidade enquanto gênero, portanto compartilhadas igualmente por todas as pessoas.
O fenômeno nessa concepção é a única forma possível de relacionamento com a existência, portanto, a única realidade passível de ser conhecida. Adiante, filósofos fenomenologistas, como Edmund Husserl, Martin Heidegger, entre outros, levaram essa concepção ao extremo, chegando a questionar a própria existência de uma realidade concreta. Sua sugestão é que apenas o fenômeno é digno de atenção reflexiva. Nesse sentido, o fenômeno aparece como uma existência eminentemente abstrata, cujas características e dinâmicas de manifestação são percebidas de forma única e particular a partir de um ponto de vista, por que são imprimidas pelo observador — tanto o é, que o método fenomenológico se propõe a se aproximar do conhecimento por meio da soma de muitas perspectivas diferentes e concorrentes, porém deixando a entender que aquele conhecimento será sempre parcial e localizado (Stegmüller, 2012). Logo, mesmo que clame uma relação com a experiência, o fenômeno social é um processo a priori, pois o conteúdo dos objetos a serem conhecidos se encontram no observador, no sujeito de conhecimento, antes mesmo da própria trajetória do conhecer.
A contribuição de Hegel parte de uma crítica daquela dualidade fundamental, que persistia na filosofia kantiana, entre o sujeito de conhecimento e o objeto a ser conhecido (James, 1980). Para Hegel, ao invés de existirem separadamente, sujeito e objeto compunham um todo indissociável e dialeticamente relacionado. Os movimentos da razão no sentido de conhecer e se autoconhecer — cuja expressão mais avançada seria a fenomenologia, por meio da qual se alcançariam conceitos no âmbito da composição de um saber absoluto — eram para filósofo os verdadeiros responsáveis pela dinâmica histórica da humanidade. Na medida que a razão se depara com desafios de conhecimento, seu esforço em alcançar conceitos, ao mesmo tempo transforma a si mesma e a própria realidade, assim se manifestando historicamente por meio do devir dos acontecimentos. Para Hegel, o conhecimento da totalidade seria o verdadeiro objetivo razão, o qual se atingiria ao superar a dicotomia entre o fenômeno e a essência por meio da síntese dialética, cujo produto seriam conceitos absolutos (James, 1980).
Na crítica realizada por Marx à Hegel em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos (2008) e também na Crítica da Teoria do Direito de Hegel (2010), a concepção de dialética hegeliana recebe uma nova interpretação. Marx também acreditava que a dinâmica histórica se dava por meio da síntese de opostos dialeticamente entrelaçados, porém na sua opinião esses opostos se formavam não no campo das ideias, mas no âmbito da materialidade concreta; da mesma forma, a síntese não seria decorrente da evolução da razão, mas da luta social de homens concretos ao tentar resolver seus interesses irreconciliáveis. Seriam os processos de emersão e síntese de contradições estruturais nas relações sociais, que dariam lugar a novas relações contraditórias, os verdadeiros responsáveis pela dinâmica histórica. Tal qual explicam Marx e Engels (2011) na Ideologia Alemã, as formas abstratas que representam no plano da ideia essas contradições seriam ideologias, no sentido de se conformarem como interpretações enviesadas (portanto, parciais e incompletas) do mundo concreto a partir das posições de interesses das classes que as produzem.
A essência se manifestaria na dimensão das relações sociais que, uma vez estabelecidas, formam nos seus participantes as impressões ideais com as quais procuram organizar sua existência. Se na instância dos fenômenos as expressões sensíveis parecem dominar a percepção e o agir dos atores sociais — compondo assim um mundo de “pseudoconcreticidade” (Kosic, 2002, p. 15) —, estas se enraízam de fato no âmbito dos laços necessários entre as pessoas, na dinâmica de seus relacionamentos, nas coisas-em-si, nas formas de associação, troca e convivência social que se encontram por trás das aparências. A possibilidade ou não do fenômeno se referenciar a uma materialidade vulgar não é o objeto de Marx — inclusive suas críticas Ad Feuerbach (Marx & Engels, 2011, p. 533) sugerem uma insuficiência epistemológica do materialismo de Hume e Locke —, pois que, afirmam os autores, a questão da verdade é uma problemática da prática, o que a condiciona à história, a qual, em última instância, seria reflexo da dinâmica das relações sociais. São, portanto, as relações sociais que dão significado às manifestações fenomênicas; são a sua verdadeira essência.
No entanto, essa relação entre essência e fenômeno não é meramente uma dicotomia entre verdade e falsidade para Marx e Engels. Os traços aparentes dos fenômenos, que são captados pelos sentidos na superfície dos comportamentos de atores individuais e coletivos, são os prolongamentos aparentes — pois que percebidos episodicamente, de forma não-sistemática, ou por meio de procedimentos que privilegiam suas condições imediatas — de dinâmicas sociais longas, arraigadas em estruturas de relacionamento e representação mediatas e perenes (Kosic, 2002). Por conta disso, sua forma e apresentação esconde as relações por detrás não necessariamente por estratagema, mas graças ao encobrimento de perspectiva por proximidade. Abordar a coisa-em-si, a essência, não seria um processo de desvelamento, mas de aprofundamento, por meio de um “détour” (Kosic, 2002, p. 13) a partir do método dialético. Fenômeno e essência formariam, portanto, uma totalidade dialética (Kosic, 2002): a percepção do conjunto formado pela forma imediata de manifestação, mais as relações sociais mediatas, que são históricas e estruturais.
Referências
Cristaldo, R. C. (2011) A indústria brasileira de construção civil entre 1964 e 1979: a constituição das bases para o processo de internacionalização (Publication No. C331) [Master Thesis, Federal University of Bahia]. https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/7626
James, C. L. R. (1980). Notes on dialectics: Hegel, Marx, Lenin. London: Allison & Busby.
Kant, I. (2001). Crítica da razão pura (M. P. dos Santos & A. F. Morujão, Trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Marx, K. & Engels, F. (2011). A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (L. C. Martorano, N. Schneider & R. Enderle, Trad.). São Paulo: Boitempo.
Marx, K. (2008). Manuscritos econômico-filosóficos (L. C. Martorano, Trad.). São Paulo: Boitempo.
Marx, K. (2010). Crítica da filosofia do direito de Hegel (R. Enderle & L. de Deus, Trad). São Paulo: Boitempo.
Kosik, K. (2002). Dialética do concreto (C. Neves & A. Toríbio, Trad.). Rio de Janeiro: Paz & Terra.
O’Brien, D. (2013). Introdução à teoria do conhecimento (P. Gaspar, Trad.). Lisboa: Gradiva.
Stegmüller, W. (2012). A filosofia contemporânea: introdução crítica (2.ed.). (A. Fiorotti & E. A. Royer, Trad.) Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Stern, P. (2008). Knowledge and politics in Plato’s Theaetetus. Oxford, UK: Oxford University Press.
[1] De acordo com a exposição de Kant (2001) em A Crítica da Razão Pura, o conhecimento humano se dá como a formulação de juízos — o que pode-se entender por conclusões lógicas —, que podem ser analíticos ou sintéticos. Os juízos analíticos são aqueles decorrentes da mera decodificação de um conhecimento já previamente estabelecido e que, portanto, não apresentam um saber novo. Por sua vez, os juízos sintéticos são decorrentes da adição de informações novas, que acrescentam algo que não se sabia antes. Segundo Kant, só é possível acrescentar alguma informação nova a um saber por meio da experiência empírica. Assim, os juízos sintéticos a posteriori seriam os únicos capazes de formar novos saberes válidos. A exceção seriam as ciências formais, a lógica e a matemática, que avançariam também por meio de juízos sintéticos a priori.
Descubra mais sobre Administração Crítica
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
Deixe um comentário