Nos círculos da esquerda, desde o alto até as bases, dos gabinetes do parlamento até as salas de aula, viceja um misto de incredulidade e pessimismo nos últimos anos. Isso se manifesta de duas formas, o onipresente clamor por uma “autocrítica” que nunca é suficiente, e uma desesperança paralisante em torno das pautas e bandeiras da esquerda, como se não pudéssemos mais lutar pelo fim da opressão, mas tão somente para manter os grilhões que hoje ostentamos como “direitos”. Mesmo depois das vitórias de A. M. Lopez Obrador no México, Luiz Arce na Bolívia e Alberto Fernández na Argentina, a esquerda parece pedir desculpas ao cosmo por sua existência, como se houvesse uma culpa a expiar.
Não concordo com a tese de que na guinada à esquerda da latino América, da qual hoje só se enxerga escombros, se tenha “perdido uma oportunidade”. Essa fala faz crer que os governantes à esquerda de Brasil, Paraguay, Equador, Uruguay, Argentina, Bolívia e Venezuela (por vezes, do Chile) das primeiras duas décadas do século XXI, tiveram uma chance clara e limpa de fazer diferente, mas esbarraram na própria incompetência.
Os acontecimentos recentes seriam uma evidência de que a esquerda não está apta a proporcionar bons governos, dizem alguns. Ou pior, as tais acusações de corrupção, que apareceram como mangas no verão, mostrariam a degeneração moral de quem se diz crítico, afirmam os mais exaltados.
Na verdade, cada um desses governos, de Lugo no Paraguay à Chaves/Maduro na Venezuela, do Brasil de Lula e Dilma à Argentina dos Kirchner, nunca viram um mês sequer de paz em seus mandatos. Desde o dia um, os assim chamados governos pós-neoliberais foram abertamente enfrentados, seja pelo mercado financeiro (que é composto por um punhado de instituições de alcance global, chamados de “abutres” não sem um fundo de razão pelos Kirchner), seja pela indústria de mídia — que, não, não são jornalistas, nem deveria fazer parte do que se entende por imprensa, pois seu objetivo nunca foi informar, mas manipular ideologicamente as populações que mantêm reféns —, ou mesmo por grupos fascistas violentos que, embora pequenos, ganharam dimensão e expressão graças à cobertura desproporcionalmente favorável daquela mesma mídia.
Cada movimento desses governantes sofreu um escrutínio nunca antes visto na história. Suas falas eram interpretadas da pior maneira possível. Suas muitas vitórias foram escondidas. Seus pequenos equívocos foram inflados ao ponto de se tornarem crises cuja enorme projeção só rivalizava, em contraste, com o vazio de seus fundamentos. E mesmo suas vidas pessoais, a reboque da (infantil) prática norte-americana de tornar público o que não é da conta de ninguém, foi vasculhada de modo que a menor humanidade — dessas comuns, vistas em qualquer um de nós, como, ora vejam, sexo, álcool e férias — se tornou notícia escabrosa e prova de devassidão.
Em todos os países as campanhas difamatórias surtiram efeitos, com viradas de mesa e debacles eleitorais. Assim, Argentina, Chile, Equador e Uruguay foram disciplinados por uma guinada à direita. Noutros, nos quais as urnas insistiram em não respaldar a intentona direitista, se operaram os golpes “constitucionais”, como no Paraguay e no Brasil. Onde nem isso surtiu efeito, como na Venezuela, milícias armadas e tentativas de formação de governo paralelo, sob assistência do serviço secreto norte-americano e a chancela do Departamento de Estado dos EUA, incitaram uma situação de guerra civil, desabastecimento e violência. A Bolívia sofreu uma quartelada, um escancarado e clássico golpe militar, com todos os itens típicos, da incompetência de gestão à plot twists de “inesperados” golpes dentro do golpe.
A criação de situações arranjadas de insatisfação popular, com protestos puxados por agentes da CIA, grupos políticos financiados pela Rede Atlas e processos judiciais arranjados por advogados “formados” sob a batuta do programa de “Jovens Líderes das Américas” (leia-se, iniciativa de programação ideológica de futuros tomadores de decisão na América Latina) é um roteiro já batido. A Nicarágua passou por isso na primeira metade do século XX, o Chile de Allende, o Brasil pré ditadura empresarial-militar, a “primavera” árabe, desde então, tudo isso é mais do mesmo. Já deveríamos estar vacinados.
Na minha opinião, a única crítica que se precisa fazer contra a esquerda latino-americana é acerca de ter embarcado na narrativa da desesperança. Os governos pós-neoliberais proporcionaram a maior melhora de qualidade de vida da história dos países onde chegaram. Seus políticos hoje são popularíssimos, seus projetos são racionais, sua lógica de interpretação de realidade é acertada e, claro, seus erros são justificáveis. Em nossa luta, fomos grandes e seremos lembrados como tal.
Por isso não se pode abandonar o objetivo da esquerda, qual seja, o fim das opressões. A extinção da propriedade privada do capital nunca deveria ter saído de nossa pauta. O pleito pelo avanço das contrapartidas de trabalho legalmente regimentadas (alguns, desinformados, chamam de “direitos essenciais”) nunca deveria ter saído do primeiro plano. Redução de carga horária de trabalho, mais dias de descanso semanal remunerado, políticas compensatórias/reparatórias da escravidão e das invasões europeias, maior tempo de férias, melhores salários, políticas de equiparação de oportunidades para mulheres, maiores proteções sociais sustentadas pelo Estado, tudo isso precisa voltar. E temos que discutir a revolução, o arrancar dos dedos do capitalista, pois apenas uma esquerda que assusta é uma esquerda respeitada.
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