Acordamos com notícias que podem, ou não, ser verdadeiras, mas que tanto faz, afinal de contas. Na TV, muitas vezes é mais informativo compreender o mundo assistindo às ficções, de tão realistas que se vendem, do que os telejornais, essas versões pasteurizadas e anódinas de nossas antigas pornochanchadas.
Nesse ínterim, bebemos café descafeinado, leite sem lactose, manteiga livre de gordura, cerveja sem álcool, água saborizada. Comemos doce d’onde se tirou o açúcar, salgado onde não há sal e, pasmem, carne que se é, de fato, ou ao menos de direito, vegetal.
Nos divertimos com realidade aumentada virtualmente, nas tais redes sociais onde a presença é opcional, na programação interativa da grade de TV, sonhando com as vidas mais interessantes da ficção, ou nos bares, anestesiando o corpo e o espírito que doem, aquele das horas de labuta, este da existência de faz-de-conta.
Muitos se escondem no pseudo anonimato da internet para, enfim, serem quem efetivamente são, colocar pra fora tudo que realmente “pensam”, arrotar o que se passa em suas entranhas. O cheiro, porém, está longe de agradável. Literalmente. Outrora imaginávamos que as redes sociais virtuais ressaltavam nosso pior por engano, hoje sabemos ser um projeto.
Atuamos no dia-a-dia com as fachadas que nos convêm. Exibimos as mais belas máscaras, adornadas com o fino da ourivesaria em filigrana, porque no fundo não possuímos faces.
Aprendemos onde não se faz, mas trabalhamos onde não se aprende. A escola-empresa, a universidade privada (privada!), reúne a mais narcísica coleção de indivíduos em constante defesa do indefensável, terra-plana, capitalistas, violência simbólica, tortura e ditadura, pregando num (cada vez mais) lotado deserto, despejando bijuterias baratas como se atirassem pérolas. Nesse interim, a universidade pública definha, agregada a (ou vítima de) um Estado parasitado por carrapatos e vermes*
* desde já apresento excusas aos vermes e carrapatos pela comparação.
Já a empresa, que se enxerga como o único repositório de toda a virtude, desperdiça, destrói, arruína, corrói, escarnece, vilipendia as cidades, a natureza, as almas humanas, algumas desumanas. Trabalhadores em desespero, com fome, labutando por jornadas impossíveis, em troca de migalhas insuficientes, em total abandono material, é o mais profundo desejo do empresário, do usurário, do mercenário, do milicianàrio.
Ouvimos as mentes mais vazias enquanto silenciamos os sábios. Censuramos a arte. Não escutamos os alertas. Não acreditamos na verdade em troca de nós apegarmos à falsidade. Calamos diante do ódio, da violência, da ignomínia, para gritar contra o amor. Odiamos o saber, mesmo numa época em que o mais difícil é ignorar.
Em nós, os esforços de mudança se concentram no corpo, nos músculos, na pele, no cabelo, naquilo que caminha inadiavelmente para um único e derradeiro fim. Mas a nossa mente, o que em nos é plenamente moldável, infinitamente até, quiçá imortal para alguns, escolhemos enrijecer.
Privilegiamos a aparência, talvez não porque subvalorizemos a essência, mas porque ninguém mais tem paciência para olhar além; a não ser que seja expressa em 144 caracteres. Fazemos, afinal, quase tudo por esse “olhar” vazio de um “like”, de um clique, como migalhas de uma atenção que almejamos, mas somos incapazes de oferecer.
Decerto essa é a era da sur-hiperrealidade: tudo é não sendo de tal forma, que a melhor chance de sê-lo é o não-ser, e vice-versa; o parecer-ser-não-sendo, essa falsa síntese dialética, aparentemente é o único estado do possível para uma existência de faz-de-conta, embora inclusive um meio caminho. Nos encontramos num momento pivot, numa encruzilhada histórica (cômica?), quando o mais indicado é fingir ser mesmo o que se é de fato, se não em ato, ao menos em estardalhaço, como que parodiando toscamente o poeta descrito e vivido (?) por Pessoa.
E assim, bem…
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