O coringa

Recentemente, assisti o filme Coringa (Joker, EUA, 2019) de Todd Phillips com Joaquin Phoenix, numa circunstância muito particular. Já estávamos sob a ameaça da pandemia de Covid-19 em dezembro de 2020. Já faziam meses que eu e minha família, esposa e filha, estávamos em home office, home schoolling. Em parelelo, eu vinha lendo de forma seguida os livros mais recentes do sociólogo carioca Jessé Souza, especificamente, A Elite do AtrasoA Tolice da Inteligência Brasileira e A Guerra Contra o Brasil.

Um aposto… Jessé tem uma tese de que a sociologia clássica brasileira serviu de fundamento intelectual e político para a hegemonia da burguesia agro-industrial paulista no país, por meio da construção falaciosa de uma imagem do povo e da cultura popular como corrupta, personalista e irracional. Essa seria a explicação do endêmico “complexo de vira-latas” brasileiro, que endeusa o estrangeiro e subvaloriza o local e o autóctone. Tudo isso, segundo Jessé, teria por objetivo justificar a exploração e o abandono social das classes populares pelos capitalistas, resultando numa sociedade fraturada pelo auto-desprezo, individualista e, ao mesmo tempo, cordata ao ponto de se deixar explorar.

Em Coringa, um personagem com problemas mentais e socialmente desajustado por seguidas humilhações individuais e sociais, passa por uma trajetória de auto-empoderamento por meio da descoberta da violência e do desprezo. Ao final, aquele personagem galvaniza a insatisfação popular contra os processos de exploração e humilhação social e se metamorfoseia como um agente do caos, mas, interessantemente, também como ponto de convergência de ume reação contra as frustrações típicas do mundo de abandono e individualismo possível sob a égide do capital.

Essa plot me chamou a atenção por dois motivos. O descenso da personagem rumo a dissociação completa expõe, de certa forma, o risco generalizado em se enfrentar uma situação social de crescente desmantelamento de estruturas de sociabilidade, como o emprego, a educação, a saúde pública, a confiança na classe dirigente, a emersão do fascismo. Um enfrentamento que indivíduos travam desaparelhados e desassistidos, de frustração em frustração, que pode levar à uma situação de rompimento com o compromisso de integração social harmônica.

Em segundo lugar, pelo fato de que o filme utiliza do vilão cartunesco, exagerado e ficcional, como amálgama visual do desconforto existencial de nosso tempo. Trata-se do mesmo desconforto que o brasileiro, segundo Jessé, guarda dentro de si, acusado pela elite de irracional e fonte de todos os problemas, impávido diante da pilhagem do Estado que é realizada, na verdade, pelo capital financeiro e pelos grandes empresários, enquanto um criminoso comum anti-lidera o país em direção ao caos.

A solução da plot, alguns podem argumentar, é disfuncional: diante do peso dos desafios o indivíduo dissocia e opta pela violência aparentemente gratuita. Mas, esta é a amargura de nossos dias. O Estado, seus aparatos de segurança, violência e controle parecem irresistíveis. A ideologia propagada pela mídia é onipresente, totalizante, sem brechas para alternativas, para o contraditório. O imenso poder da corporação capitalista é inimaginável. Diante de tamanha estrutura de dominação, o que fazer? No plano individual, como resistir? São perguntas por si só opressoras, assustadoras.

Espera-se, do ponto de vista de quem está ganhando em nossa sociedade, que nossas respostas para essas questões sejam “nada!” e “impossível!”, respectivamente. O limite da mobilização individual é a dissociação e o crime de pequenas proporções, o que é bem ilustrado pelo caminho do Coringa de Joachim Fênix. Resta compreender o subtexto. Diante de desafios tão grandes a única saída é coletiva, com ampla mobilização, engajamento organizado e, é preciso dizer, disposição para chegar em medidas extremas. Isto porque a reação, a história demonstra, será violenta.


Descubra mais sobre Administração Crítica

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Os comentários estão encerrados.

Site criado com WordPress.com.

Acima ↑