Aprende-se desde muito cedo que no mercado vigora a “lei da selva”. Em muitas oportunidades esse lugar — metafórico ou não — onde se encontram vendedores e compradores de bens e mercadorias, é descrito como uma floresta assustadora, ou uma savana erma, repleta de predadores à espreita da caça. Na Universidade, nos seriados de TV, nos filmes hollywoodianos, ou mesmo nas películas francesas, a metáfora do mercado como um espelho da vida selvagem anima discussões e plots, algumas até com um tom crítico, sobre a natureza dos negócios.
Será que essa metáfora é adequada para descrever o mercado?
Na selva, animais não competem entre si por ganhos maximizados, sejam materiais ou simbólicos, mas se harmonizam numa cadeia alimentar de interdependência onde, sim, há caça, luta e morte, mas em nome da sobrevivência e reprodução. A “lei da selva” não é uma lei do mais forte, tampouco privilegia o que acumula desenfreadamente, mas sim destaca o melhor adaptado, aquela que se encontra em equilíbrio com o meio ambiente natural, que convive com outras espécies sem ameaçá-las.
O mercado não funciona como uma selva. Empresas, pessoas, quando estão doing business, não buscam apenas sua sobrevivência. Suas ações e planos não são destinados a encontrar proteção contra intempéries ou saciar as necessidades primárias mais imediatas. Não atingem um equilíbrio com seu ambiente. No mercado se persegue o lucro. Ou melhor, não apenas o lucro, mas o lucro máximo, o lucro que desloca o oponente, o lucro que deixa terra arrasada para os demais. Não se espera apenas um bom desempenho, mas um desempenho que o coloque acima dos demais.
No mundo da empresa há perversidade, orgulho, sadismo, inveja, crueldade e ignomínia que não existem na natureza. Na competição de mercado não basta sobreviver. Simplesmente alcançar uma meta é insuficiente. O sucesso só é completo quando outros não sejam capazes de igualar. Não se deseja apenas amealhar riquezas e confortos, como também impedir o acesso dos demais. Muitos cursos de ação são escolhidos não apenas para aumentar ganhos, mas também para causar sofrimento e diminuir o bem-estar de inimigos, concorrentes e até mesmo de associados.
Chega-se ao ponto de colocar em risco a sociabilidade para causar o mal. Produtos prejudiciais à saúde são insistentemente oferecidos sob as mais diferentes maquiagens, manipulações publicitárias são a forma mais comum de convencimento, poluição, assédio, assassinatos, grilagem de terras, lobbying, até mesmo conflitos armados são fomentadas no mundo dos negócios em nome de um lucro um pouco maior no trimestre.
Tudo isso contribuindo para que o mundo se torne um local cada vez mais inseguro de se viver. Algumas pessoas ameaçam seu próprio bem-estar apenas para garantir que outros fiquem mais distante de seus objetivos, numa posição inferior. Em alguns casos, o objetivo é causar dor. O prazer de alguns advém do infortúnio alheio. Para muitos, não é o suficiente ter, é preciso ostentar, numa tentativa de comunicar a inferioridade dos demais.
A selva não é uma boa metáfora para o mercado.
O funcionamento do mercado na verdade se aproxima muito mais do que era um sanatório no início século XIX. “Loucos” os mais variados convivem caoticamente, enquanto suas agendas contraditórias e autodestrutivas se encontram em constante fricção.1 Todos se encaixam debilmente num cenário de papéis apenas aparentemente delimitados, onde um grupo de médicos e enfermeiros, que pouco ou nada compreendem do fenômeno da “loucura” que ali se manifesta, tentam controla-los, medica-los e coordena-los. Isso se não estiverem experimentando e abusando deles, ou mesmo sendo envolvidos e manipulados por seus delírios e sintomas.
1 Peço aqui ao leitor uma licença para empregar a palavra “loucos” na acepção histórica do termo, considerando o contexto em questão (sanatório do início do século XIX), uma vez que é o reflexo de uma compreensão preconceituosa e, em grande parte, ignorante da condição de doença mental. O artifício retórico tem a função de caracterizar o mercado, não as condições que outrora foram caracterizadas dessa maneira. Assim, rejeito qualquer proximidade que esse comentário possa ter com uma postura capacitista.
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