Uma eulogia (ou uma crítica) do(s) conceito(s) de Administração…

Hoje vivemos no mundo da empresa, das burocracias de Estado e das grandes corporações. Tudo que tocamos, fazemos ou sonhamos com, é mediado, de alguma maneira, por firmas capitalistas e/ou organizações criadas para oferecer suporte na acumulação de capital. Por detrás dessas instituições tão presentes no dia-a-dia que se tornam invisíveis, o mote principal, universal até, é o da perseguição pelo o lucro e pelo ganho exponencial. Sua capilaridade e tamanho impõem formas de agir e pensar que invadem constantemente o espaço das pessoas comuns.

Os mais diversos princípios de gestão escaparam do espaço restrito do mundo corporativo, do métier exclusivo das reuniões de negócios, e transitam entre nós como velhos conhecidos. “Eficiência”, “planejamento”, “produtividade”, “público-alvo”, “empreendedorismo”, essas e muitas outras palavras de nosso quotidiano revelam uma hegemonia não apenas econômica, mas simbólica, social e política da lógica empresarial. Essa lógica tem um nome, um termo que representa os muitos conceitos úteis à empresa, todo um campo de ciência dedicado: a administração.

“Administração” também é uma palavra de livre trânsito nas conversas, humores e pensares, dos bares da esquina aos espaços onde socializa a classe invisível (ricos, empresários e outros seres fantásticos). O problema, porém, é que seu significado aparentemente auto-evidente se encontra, de fato, cercado por véus de ideologia, imerso em brumas da superficial literatura de aeroporto e da auto-ajuda de enriquecimento pessoal. Esse breve texto tem por objetivo, portanto, enfrentar as confusões que podem cercar a simples questão de O Que é Administração?

Porém, não é uma tarefa fácil, já que a administração tem sido apresentada de muitas diferentes maneiras. Desde uma forma de controle e exploração, até promessa de sucesso e destaque econômico e social; de instrumento de cooperação à fonte de todos os males e conflitos. Assim, não garanto responder a questão categoricamente, mas tão somente apresentar algumas camadas de (in?)compreensão sobre o conceito e a prática que representa. Talvez com o intuito deixar mais questionamentos que certezas ao fim, de modo que não deixemos de refletir à respeito.

É possível iniciar com uma aproximação etimológica. A palavra portuguesa “administração” é formada pelos radicais latinos Ad dar direção (ou controlar) — e Minister, que significaria servo. A partir de seu radical etimológico, poder-se-ia assumir que administrar é algo como direcionar ou controlar as ações e decisões de alguém numa posição subalterna, como se o outro não pudesse fazê-lo sozinho, tal qual um incapaz a ser dominado por um ser a ele superior, o qual diz tudo o que deve fazer.

Em inglês, a palavra correspondente à nossa administração é “management” (existe na língua ianque o termo “administration“, mas é mais frequentemente utilizado para gestão do Estado). Management, por sua vez, foi formada a partir do radical também latino Manus, que pode significar tanto mão como poder, ou mesmo autoridade. A palavra management surgiu no inglês arcaico para designar, entre outras coisas, a ação de conduzir um cavalo por meio das rédeas, e pode muito bem ser traduzida como manipulação. Hoje, sintomaticamente, a utilizamos para lidar com pessoas sob o jugo da empresa.

Essas duas palavras, juntas, dão o tom da noção de senso comum da administração, que tem o sentido de dirigir, comandar, liderar, exercer a autoridade sobre algo ou alguém. Isto pressupõe uma separação entre as atividades de trabalho e de gestão; o mando dialeticamente põe em lados opostos a ordem e a execução. Pressupõe-se, por meio delas, que o operário, o servo, o trabalhador, não possui aptidão para coordenar seu trabalho, o que deve ser feito por alguém que lhe é superior, cujo trabalho é dirigí-lo. De certa forma esta primeira aproximação é desencorajadora, pois administradores podem se sentir em conflito diante de tal rol de atribuições aparentemente tão pouco nobres. Nos voltemos então para seu devir teórico e prático e quem sabe assim podemos revelar mais.

Normalmente o livro de Frederic W. Taylor, Princípios de Administração Científica (1911), é usado como marco primordial da ciência da administração. É lícito afirmar que a atividade social da administração já existia desde muito antes, pois articular fatores de produção para se atingir objetivos é uma prática inerente à sociabilidade humana, desde as antigas civilizações até o moderno capitalismo ocidental. Tanto o é que Aristóteles já falava em administração aproximadamente a 2.500 anos atrás.¹ Taylor apenas contribuiu para o início sistemático e independente do estudo sobre os fenômenos administrativos — e mesmo esse “pioneirismo” precisa ser relativizado por conta da existência de obras anteriores e/ou contemporâneas como as de Henri Fayol, Adam Smith, Jeremy Bentham, David Hume, entre muitos outros.

Em seu livro, Taylor enumera um rol de ações para garantir que o trabalhadores produzam sem reclamar, listando controles físicos e psicológicos. Fayol, por sua vez, reforça o papel institucional do gestor, num sentido amplo, mas também está ali (nem tanto) escondido o comando e o controle entre suas atribuições. E desde então, a assim chamada teoria “geral” da administração vem produzindo práticas, conhecimento e formas para ajudar no controle do trabalho, em como melhor vender seu produto, em como derrubar os concorrentes ou mesmo como envolver estes de modo a que, juntos, controlem o trabalho, vendam produtos e assegurem seus lucros. A teoria da administração, os ramos incidentais da administração funcionalista e os estudos organizacionais, formam um grande conjunto de sugestões de controles físicos e psicológicos para garantir que os trabalhadores produzam — e comprem o que produzem —, contribuindo para a criação do lucro capitalista.

Na prática a administração como a conhecemos hoje — gestão do trabalho no ambiente da empresa capitalista e suas instituições sociais de suporte, batizadas como burocracias por Max Weber — é fruto da revolução industrial. Pesquisadores das linhas autonomistas, como Harry Braverman e André Gorz, demonstram que a separação entre a atividades de trabalho e de gestão se deu ainda no século XVIII, para proporcionar aos capitalistas de então um maior controle sobre operários, já que são estes quem contribuem com o único fator de produção capaz de fazer surgir valor novo.

Os primeiros administradores profissionais, os capatazes, estavam nas fábricas para assegurar que as pessoas cumprissem suas cargas horárias de 18 horas, acordar as crianças que adormeciam nas máquinas e, quando necessário, punir moral e fisicamente os indolentes. Poderíamos inclusive aqui estar falando de fábricas na China de hoje em dia, ou das manufaturas da industria têxtil no interior de São Paulo, operadas por imigrantes em situação análoga à escravidão, e esta não seria uma descrição muito diferente da realidade.

Historicamente, a administração então tem sido a atividade funcional que tem o papel de garantir a formação de valor novo a ser apropriado pelo capitalista, sua realização e reinvestimento para alimentar o crescimento de capital. Custe o que custar (humana, ambiental e institucionalmente falando). Ainda um tanto longe do ideal de um campo de saber contributivo para a civilização, precisamos encarar.

Se a teoria mainstream sobre o que é administração não nos parece alvissareira, nem tampouco sua prática se mostra eticamente inspiradora, devem portanto os administradores assumir a carapuça de vilões do mundo contemporâneo e auxiliar os capitalistas em sua missão de consumir e/ou sequestrar todos os recursos da terra por mero egoísmo e ganância? Não tão rápido..

A articulação organizada de fatores para um objetivo, já dissemos isso, é algo inerente à sociabilidade humana. Logo, a administração não é essencialmente capitalista, tampouco pró-lucro em sua natureza. Apenas se encontra assim organizada por conta da história recente de seus usos e abusos.

Esse campo de saber — termo que prefiro no lugar de ciência para caracterizar a administração — se consolidou num contexto o qual a gestão econômica capitalista se tornou elemento estruturante da realidade, por intermédio da instituição ora dominante, a firma. Mas a igreja católica gestava, assim como as tribos nativo-americanas, os feudos, a grande cidade da Roma antiga e mesmo os ditos bárbaros que tanto a atormentavam. E, quando o capitalismo deixar de existir — a questão não é SE o capitalismo vai acabar, mas sim sobre, quando acabar, o que restará do mundo para nós —, ainda nos sobrará nas mãos o problema de alocação de recursos para atingir objetivos, assim como distribuir riquezas.

Ou seja, o problema da gestão transcende a conjuntura histórica do capitalismo.

Em minha opinião, é possível que exatamente na administração encontremos a maior chance de emancipação das pessoas. Para uma tarefa tão desafiadora será necessário um grande esforço coletivo, para o qual a gestão — a articulação de fatores, recursos, interesses e vontades — será essencial, isto se quisermos efetivamente superar o modo de produção capitalista e criar algo novo para colocar em seu lugar. O mundo capitalista é contraditório. Esta é uma de suas contradições: no conjunto de conhecimentos criado com fins de controlar os servos do capital, manipulando-os para produzir e comprar incessantemente, reside a esperança da articulação coletiva dos trabalhadores.

Conforme prometido, temos agora uma pergunta que parece muito mais complexa do que no início, afinal, o que é administração?

A administração hoje é, e tem sido há muito tempo, um sinônimo de controle e de exploração sobre o trabalho alheio. Mas (quase?) como tudo que é de raiz social, a administração é o resultado de relações sociais e da ação humana concreta; é uma prática coletiva, relacional, história e dinâmica, que remonta a necessidade social de articulação de recursos para produzir e distribuir riqueza. Então, “assim como as pessoas e as palavras”, a administração pode ser tudo, até mesmo uma base para a mudança estrutural que tanto precisamos. “Basta” (como se o mais difícil fosse assim tão simples) que venhamos a agir coletivamente para que realize o seu potencial crítico de mudança radical.


¹ Embora a economia reivindique para si a palavra em grego antigo Oikonomos como prova da ancestralidade de sua ciência, na verdade este vocábulo significava “administração do lar”.


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