Eu gosto de ler; amo até. Mas, convenhamos, nem tudo (quase nada?) é digno de amor. Ler só é uma atividade prazerosa se a leitura for capaz de proporcionar ao menos um desses benefícios: utilidade, informatividade ou satisfação estética. Se não for capaz de resolver um problema prático, nada acrescenta ao entendimento ou compreensão de mundo, nem se mostra bela em sua forma, quer rítmica, simbólica ou léxica, uma obra escrita não tem porque existir. Essa sensação me atingiu ao ler (infelizmente) o artigo de opinião publicado pelo pesquisador da FGV, Samuel Pessôa, na Folha de São Paulo desse domingo (28/9/2024): Lula Estressa a Economia.
O professor do renomado think tank escolheu como objeto uma crítica, feita pelo Presidente da República num discurso no Rio de Janeiro, contra a desigualdade salarial e uma alegada fala recente do presidente do Banco Central do Brasil; Roberto Campos Neto teria dito que a política de elevação do salário mínimo seria inflacionária. Claro, o Professor da FGV desaprova o posicionamento do Presidente Lula e se coloca ao lado do ocupante do posto máximo do BACEN. O argumento de Pessôa na sua coluna é uma reafirmação da tese ortodoxa de que estabelecer um piso de rendimento para os trabalhadores (no seu texto, sempre retratados como pobremente qualificados), descolada da evolução da produtividade do trabalho, tende a forçar os preços de bens e serviços para cima.
Não por acaso, o “pesquisadô” aproveita a deixa para alfinetar o conjunto dos trabalhadores brasileiros que, segundo sua perspectiva, são endemicamente menos produtivos. O porquê dessa baixa produtividade seria, por seu turno, exclusivamente creditado à baixa escolaridade da população. Em primeiro lugar, essa afirmação ignora a própria ciência econômica ortodoxa, que estabelece a produtividade do trabalho como uma função das variáveis (i) tecnologia, (ii) incorporação de capital e (iii) qualificação do trabalho. Segundo, ao discutir apenas a dimensão que se supõe derivar da tomada de decisão das pessoas, coloca-se sobre elas o peso (ou seria a culpa?) de nossos problemas estruturais. Mas, querido professor, e as outras variáveis da função? Por que desapareceram da vossa argumentação?
De fato, o grau médio de escolaridade da massa de trabalhadores no Brasil é, em termos comparativos, menor que a de países considerados mais produtivos. No entanto, talvez ainda mais importante, as tecnologias de produção e gestão empregadas no Brasil são defasadas, acumulando algumas gerações de atraso em relação àqueles países mais produtivos; Ao mesmo tempo, a composição orgânica do capital no Brasil se mostra mais intensiva em trabalho que daqueles países citados. Ou seja, a baixa produtividade do trabalho não recai somente sobre os trabalhadores, mas em grande parte deriva das escolhas e atuação da classe empresarial.
Historicamente, o empresariado brasileiro é (i) avesso ao estudo e, por extensão, refratário à investir em pesquisa e desenvolvimento, dependendo quase exclusivamente da inovação proporcionada pela universidade pública brasileira e custeada pelo fundo público de poupança, assim como também (ii) majoritariamente avesso ao risco, procurando o nível mínimo de inversões, ou optando por alternativas de capitalização no mercado financeiro tanto quanto possível, o que também se forma nas costas do Estado. Em verdade, o capitalista brasileiro está num patamar inferior, pois quase inteiramente dependente do aparato estatal para formar sua renda. Aqui encontramos a real causa da baixa produtividade do trabalho no país: o acanhado investimento privado de uma “elite” empresarial mais rentista que qualquer outra coisa.
Ademais, o salário mínimo só é inflacionário no Brasil devido a gargalos de oferta. As pressões inflacionárias no país se encontram no baixíssimo nível de investimento privado que historicamente assombra a economia brasileira. Por um lado, defasagem tecnológica e baixa incorporação de capital tomam a forma de plantas produtivas pouco flexíveis, em escala e escopo reduzidos. Por outro lado, diante de aumento de consumo, empresários, ao invés de expandir a produção para atender a demanda, optam por aumentar preços para tirar mais de quem pode pagar. No limite, não é o salário mínimo que produz inflação, mas a preguiça e incompetência de uma classe empresarial anêmica. A mesma que o senhor Samuel Pessôa decidiu defender (por preguiça ou incompetência?).
No Brasil, a inflação é causada quase exclusivamente pela tendência da classe capitalista local em querer amealhar (muito) mais do que o que lhe cabe na divisão do trabalho.
A grita contra o salário mínimo, devemos lembrar, tem outra causa: vontade de extrair do trabalho até a última gota de valor, remunerando-o abaixo da linha de subsistência. Nisso, o economista não passa de um boneco de ventríloquo. Enfim, o que estressa mesmo é “pesquisadô” de estimação defendendo a renda desproporcional e os arroubos golpistas de empresários, ou o salário exorbitante da tecnoburocracia que os serve. Daí, me resta vir até aqui compartilhar meu infortúnio: aquele artigo de opinião sem utilidade, falacioso e, cá entre nós, escrito num estilo de dar dó de feio, foi por mim lido, até duas vezes, devo admitir. Primeiro com surpresa; depois, para mostrar a farsa.
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