A Era da Pós-Verdade

Chegamos na era da pós-verdade. E agora, o que fazer com uma internet que mais parece um catálogo de anúncios numa lista telefônica, toneladas de informação falsa e a quase completa incapacidade de separar o joio do trigo? Existirá uma sociedade possível sob a sombra da máquina-mercadoria-publicidade? Onde foi parar a informação? Resta ainda alguma credibilidade?

A confiabilidade da informação que circula na internet nunca foi, de fato, notória por sua insuspeição. Desde tempo pré-digitais (marcador de temporalidade diferente para cada classe social), pipocam alertas sobre o quanto não se deve confiar nas informações que circulam na world wide (wild?!) web, de que ali perambulam estelionatários, aproveitadores e figuras mal-intencionadas, que se deve checar a informação (como fazer? talvez, ligando para suas fontes no governo, ou recorrendo a relatórios secretos de agências de inteligência…). A verdade é que, cada vez mais, ninguém minimamente racional e em sã consciência acredita muito rapidamente no que vem da rede.

Mais recentemente, a disseminação das ferramentas deep fake baseadas em protocolos de inteligência artificial é apenas mais um capítulo de uma longa história de abusos. Montagens fotográficas, documentos manipulados, conversas adulteradas, vírus lógicos entranhados em imagens aparentemente inocentes, golpes de vendas, há anos vivemos em uma savana erma e hostil, coalhada por predadores. É até um milagre termos chegado tão longe. Nesse sentido, a iA do fake e da mentira, longe de ser o ápice do risco, talvez seja a última pá de terra sobre qualquer pretensão de seriedade que se poderia esperar da WWW (não que eu acredite que não possa ficar pior, pelo contrário).

Desde já, nada, absolutamente nada que venha da rede pode minimamente ser considerado verdade. Mesmo as opiniões daquele articulista famoso, ou os posts do político que todos seguimos, podem ter sido hackeados, falseados, inventados, encenados, produzidos por iA generativa. Qualquer imagem, vídeo, voz, tem o potencial de ter sido falsificado num forno de algoritmos aprendentes. Assim, chegou o momento de dizer, a internet é como um show de luta-livre mexicano: tudo é encenado, tudo mentira, nada mais que uma telenovela para os que ainda tem paciência com dramalhões e patacoadas. Espero que as pessoas percebam isso cada vez mais; para mim, poucas (quase nenhumas) notícias são capazes de chocar, dado que a chance de ser mentira é grande demais. Não há em quê, quem ou onde confiar. Fim.

Essa é a era da pós-verdade. É tudo falso, do café ao documento oficial. Tão falso, que podemos pensar qualquer coisa e certamente encontraremos algo, uma pessoa ou algum algoritmo, que corrobore o devaneio, talvez por inocência, engano ou pura maldade. Se alguém duvidava que a existência fosse capaz de ironia, que não duvide mais: no momento histórico que conseguimos criar a mais complexa, elaborada, profunda e democrática máquina de informação jamais vista, a utilizamos quase exclusivamente para mentir. Bons tempos aqueles que vídeos de gatinhos e cabras montanhesas eram o ápice do mal-uso da rede e do computador.

Pausa para uma imprecação: alguém dirá que “a culpa não é da máquina e sim das pessoas”. E o que você sugere, amigo? Matar as pessoas e deixar a máquina? (pergunte-se!).

Enfim, talvez essa seja o som da trombeta que anuncia o ocaso da internet como fonte de informação. À medida em que se pode confiar cada vez menos no que circula na rede, já se percebe, ainda de forma restrita e localizada, movimentos no sentido de abandonar a existência virtual. Não são tão raros assim os casos de pessoas que fizeram o desmame digital, transitando para uma vida sem smartphones (ou seriam stupidphones?). Claro, os motivos para tanto são muitos. Mas, não é complemente impensável que mais e mais cidadãos e cidadãs comecem a sair das redes simplesmente porque a internet esta se tornando um ambiente tão tóxico, tão entregue ao crime, à mentira e ao desprezível, que pessoas não sejam mais capazes de suportar a carga psicológica de estar ali. É possível que num futuro, não tão distante assim, as redes sociais digitais, talvez a internet como um todo venha a ostentar fama semelhante a de zonas de prostituição, consumo de entorpecentes e jogo proibido.

Admito que será irônico (opa, ela, a ironia novamente) constatar no futuro que, no afã de arrancar até o último vintém de atenção (e lucro) das pessoas, as Big Tech terminem por destruir as fortalezas aparentemente inexoráveis sobre as quais se erguem. Oxalá seja o caso, porque, admito, não tem um plot twist que me agrade mais do que a velha estória do descenso da ganância de volta ao esgoto (de onde nunca deveria ter saído).


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